Tudo Menos Economia

Por

Bagão Félix, Francisco Louçã e Ricardo Cabral

Ricardo Cabral

31 de Janeiro de 2018, 19:44

Por

Jubileu de dívida nos dias de hoje?

Muitos cidadãos consideram que as dívidas devem ser pagas e, por isso, pode parecer-lhes leviano ou chocante que se defenda que o país não deve pagar integralmente a sua dívida pública ou externa.

Note-se que duas das grandes invenções das sociedades modernas foram a criação de empresas com personalidade jurídica própria, que nomeadamente são contribuintes fiscais, e a separação do património dos accionistas e gestores do património de alguns tipos de empresas, em particular, as sociedades de responsabilidade limitada e sociedades anónimas.

É consensualmente aceite que estas sociedades podem, em certas circunstâncias, reestruturar ou não pagar (integralmente ou não) as dívidas que possuem, nomeadamente através da figura da insolvência e liquidação.

Juízos morais acerca do pagamento de dívida afiguram-se enviesados porque se não for possível ao devedor pagar a sua dívida, por ser excessiva, essa dívida nunca será paga. E, sendo assim, interessa resolver tal situação quanto antes em vez de se adiar o problema sine die.

Como argumentam Viriato Soromenho-Marques e Stuart Holland talvez o problema esteja no significado da palavra dívida em alemão – “Schuld”- palavra que significa também “culpa”, no que constitui uma ironia da História porque foi a dívida das reparações da primeira Guerra Mundial, acordada pelas potências vitoriosas em Versalhes em 1919, contra a opinião do então conselheiro do primeiro ministro inglês – John Maynard Keynes – que terá levado à ascensão de Hitler e dos nazis ao poder na Alemanha e, por conseguinte, à segunda Guerra Mundial. A “dívida” e a “culpa” misturaram-se então tragicamente.

Contudo a história da dívida persegue a civilização há milénios. De acordo com o dicionário Priberam, um dos significados da palavra jubileu, do latim jubiliaeus, ano do jubileu judaico, consistia na remissão de servidão e de dívidas de 50 em 50 anos.

Michael Hudson e Charles Goodhart argumentam, num artigo recente publicado pelo prestigiado Centre for Economic Policy Research e republicado na UNZ Review, que os jubileus de dívida eram utilizados pelos reis na Suméria cerca de 2500 anos antes de Cristo (AC), na Babilónia em 1600 AC e na Assíria no primeiro milénio AC, tendo sido posteriormente adoptados pela lei judaica. Também na Grécia antiga terá sido uma prática adoptada pelos “tiranos” – palavra que na altura não tinha o sentido pejorativo que hoje tem – para libertar o povo das suas dívidas à elite aristocrática. Segundo Hudson e Goodhart, foi principalmente o facto desta prática ter sido abandonada na última fase do Império Romano que levou ao seu colapso.

Hudson e Goodhart argumentam que é necessário que existam na sociedade moderna uma espécie de “jubileu de dívida” para ultrapassar desequilíbrios profundos da economia e da sociedade que não podem ser resolvidos de outra forma.

Embora também defendam que nas sociedades modernas, com os seus sistemas financeiros hiperdesenvolvidos, não seria razoável implementar um “jubileu de dívida” como no passado, porque teria efeitos redistributivos muito significativos e excessivos. No que quase parece um programa eleitoral não ortodoxo para um potencial Governo Corbyn (Trabalhista) em Inglaterra, propõem cinco medidas para implementar uma forma de “jubileu de dívida” dos tempos modernos orientada para objectivos específicos.

As medidas propostas são as seguintes:

– Com o objectivo de criar uma classe alargada de proprietários, a concessão de apoio estatal a compra de casa própria, na forma de uma injecção de capital até 15% do valor da casa, limitado ao valor mediano do preço das casas no ano anterior. Ou seja, o Estado teria uma participação acionista não remunerada na habitação própria das famílias;

– Injecções públicas de capital nas pequenas e médias empresas para colmatar o que é referido como uma falha de mercado no financiamento do sector privado (banca) à pequena iniciativa empresarial;

– Substituição dos empréstimos a estudantes universitários por injecções públicas de capital. Os empréstimos públicos utilizados, por exemplo, na Inglaterra e nos EUA, para financiar os estudos universitários de jovens, resultam no acumular de dívidas significativas de modo que o endividamento ao longo de décadas desses jovens tornou-se, em muitos casos, uma questão política e social importante nesses países;

– A atribuição de determinado património monetário a todos os bebés nascidos num país, património que somente poderia ser utilizado na maioridade;

– Para financiamento desse novo “dote” aos bebés é proposta a criação de um imposto sobre terra urbana, provavelmente a pensar no caso de Inglaterra onde famílias aristocráticas possuem grande parte das terras, com grande valor económico, dos principais centros urbanos. Como muitas vezes a terra não é vendida mas alugada por 99 anos, a propriedade reverte sempre para os descendentes dos proprietários originais.

São propostas, sem dúvida, inovadoras.

Mas os autores somente abordam neste artigo os desequilíbrios internos nas economias nacionais.

Que tipo de “jubileu” para a Zona Euro?

 

 

Comentários

  1. “…palavra dívida em alemão – “Schuld”- palavra que significa também “culpa””

    Caro Cabral deveria saber que a cultura germânica é uma cultura pré-histórica, isto é, é uma cultura desenvolvida sem a escrita. Os termos que usam são relativos a um vida sem escrita.

    Como deve perceber facilmente não existe dívida quando não há escrita. A contabilidade não existe sem escrita.
    Toda a conversa, sobre economia, das criaturas com cultura germânica são analfabetismos de quem não tem essas práticas no seu quotidiano, e ainda menos na sua cultura.

    O que percebe um germânico de dívida, e de economia, se não tem sequer esses conceitos na sua língua? Não tem os conceitos na língua porque não tem essas práticas culturais, como é fácil de perceber.

    Portanto caro Cabral, não será melhor ter uma análise mais inteligente sobre o que está à frente de todos (o analfabetismo germânico nas questões de economia), ao invés de tentar esconder o sol com a peneira?

    Mas, claro, não coloque em causa a delinquência e as práticas da barbárie pré-histórica, que ensina como sendo “economia”, na universidade.

  2. Bah… Reparei agora que se propõe um imposto sobre as terras urbanas (mas não sobre os edificios que lá estão). Em todo o caso se o objectivo declarado do imposto é apenas financiar a aquisição de propriedades, e aqueles que pagaram o imposto voltam a receber o mesmo quando “vendem” (alugam) as suas propriedades, não me parece que vá resultar em grande descida dos preços das mesmas. Ou seja, se o imposto aplicado a estes grandes proprietários não lhes dá realmente nenhum prejuízo, então também não há motivo para estes se desfazerem das suas colossais propriedades. As elites mantêm o seu feudo, e os preços continuam o seu caminho de subida. Pelo menos é o que me parece…

    Chamo a atenção para os dois últimos links que Ricardo Cabral colocou no seu artigo. São brutais. Não fazia ideia que isto acontecia desta forma.

    https://canalordinaire.wordpress.com/2013/10/19/who-owns-london/

    https://www.newstatesman.com/business/2013/08/you-do-know-when-you-buy-london-flat-youre-not-really-becoming-owner

    .

  3. Jubileus periódicos são sempre bem vindos mas essa possibilidade não pode servir de desculpa nem deve ofuscar o facto de existir um sistema financeiro onde todo o dinheiro é criado a partir da dívida de alguém. Um sistema onde pelo menos parte do dinheiro fosse criado sem dívida, em que todos tivessem direito a dividendos sociais, e em que toda a moeda tivesse associada uma taxa periódica, à semelhança das moedas propostas por Silvio Gesell, ajudaria muito a diminuir as desigualdades, os privilégios excessivos dos mais ricos e também impediria as dívidas acumuladas de atingirem as proporções que hoje tomam.

    Em relação às propostas de Corbyn de financiamento da habitação convém esclarecer que isto muito provavelmente se deverá ao facto de os preços das casas em boa parte do Reino Unido serem cada vez mais incomportáveis. Neste sentido não sei se pôr o estado a pagar parte da bolha não será apenas jogar gasolina na fogueira. Uma política de taxação de propriedades acumuladas que estejam acima de um certo valor faria possivelmente muito mais sentido. Isto e uma política de construção de habitações estatais a preços razoáveis.

  4. O artigo é interessante e fornece matéria de reflexão importante. Obrigado por isso, e pela excelência renovada deste espaço.

    Mas continuo a crer que é sempre mau orientar uma economia com base no calote. E na esperança de um ‘jubileu’ ainda menos. Isso minaria completamente a relação económica e interpessoal baseada na confiança. Nas ultimas décadas em Portugal achava-se legitimo negociar com base na perspectiva do calote a pregar à parte contrária. Até se tinha por inteligência a manigância fraudulente na relação contratual, desde que resultassem vantagens imediatas – pois a vida empresarial tinha um limite e a justiça encarregar-se-ia de protelar a própria justiça até um tempo suficiente distante… Uma miséria, mas isto é tido como ser português esperto.Ora, isso é um erro. Isso é um erro grave. Esta mentalidade nasceu em sectores dito ‘esclarecidos’, em oposição à velha mentalidade da honra, e de honrar a palavra. Estes sectores ‘esclarecidos’ e ‘progressistas’ consideravam isso, e ainda consideram, um atavismo dos tempos da ‘velha senhora’ . Agora veja-se o resultados. Eles estão expressos em números… e no peso actual do Serviço Da Dívida Soberana… E a Tugalhada a guinchar…

    É tirar ilações. Mas se vier o Jubileu… quero ver com atenção o que vem a seguir…

  5. O pensamento económico está presente desde a Grécia Antiga, a partir dos cidadãos livres. Então, os deuses desciam à terra para resolver os problemas dos homens, nas cidades-Estado(como Atenas e Esparta, curiosamente com regimes e mentalidades diferentes). As propostas de Hudson e Goodhart seguem o paradigma dos gregos antigos. Para o caso europeu, seriam uma boa solução – abordagem plena dos problemas envolventes(habitação, PME, instrução e formação, natalidade/fecundidade). A questão é que o liberalismo económico se conjuga nos antípodas desta proposta, que o post faz aproximar aos trabalhistas da actualidade em Inglaterra, não perigosos radicais de esquerda mas tão-somente social-democratas em busca do tempo perdido.

    Muitos problemas tem Portugal. Relembro o post anterior que deixou pistas de entendimento.O país, Portugal, está numa situação que se pode designar por pouco auspiciosa. A conjugação dos dados da dívida pública e do PII são preocupantes, com acentuado agravamento depois de 2008. Portugal entrou no labirinto do endividamento externo, a pior forma de subjugação de um Estado. Evolução relativamente ao PIB português(Ano/Dívida Pública/PII-Endividamento externo):

    1995 / 60% / -8%

    2000 / 50% / -60%

    2016 / 130% / – 105%

    O endividamento externo passou de – 8% para – 105%.

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