Gosto de observar e divertir-me com situações diárias em que já não nos detemos para pensar. Hoje, resolvi fazer uma digressão por substitutos ou erzats alimentares que, todavia, continuam a estar umbilicalmente ligados ao nome do original. Paradoxos que se usam com intrigante naturalidade.
Um café sem cafeína é, talvez, o mais popular, no fundo dizendo que se quer um café … sem café. Dantes havia, também, o café de cevada e, em vias de extinção, essa mistura entre o café carioca e o citrino a que se chamou carioca de limão. Continuando na recusa da maldita cafeína, um chá sem ser chá (isto é, uma infusão) é uma ilusão, seja o dito chá o ocidental preto ou o oriental verde. Por exemplo, chá de tília, com todo respeito pela tília é o mesmo que pedir café de parreira. Também bastante antiga é a margarina que faz-de-conta que é uma manteiga. E por causa da obsessão dietista, há agora esse contra-senso de chocolate sem cacau.
Devido aos omnipresentes diagnósticos de saúde em tenra idade, aumenta o consumo de leite sem lactose, quer dizer de leite sem o açúcar do leite e de cereais sem glúten, onde, só há o arroz e o milho e o reabilitado painço antes dado à passarada. Nos cereais, há, ainda, um caso que acho divertido, o arroz selvagem, que é um arroz que não é arroz. É a semente da espiga de uma gramínea de nome Zizania, que não da Oryza que nos dá o arroz verdadeiro. É como se, ao invés, se chamasse ao arroz autêntico zizânia domesticada. Também estão em voga os queijos sem leite, uma notável invenção de software gastronómico, assim dispensando o leite coagulado da vaca, da cabra, da ovelha ou da búfala.
Quanto à fruta o caso mais curioso é o do ananás, mas, curiosamente, por razões opostas. É frequente ouvir-se em restaurantes ananás não, prefiro abacaxi. Literalmente é o mesmo que dizer ananás não, prefiro ananás, pois que ananás e abacaxi são a mesma infrutescência cujo nome varia apenas em função do lugar de cultura (por cá é o ananás, no Brasil e América Central é o abacaxi, mais doce).
Também já foi mais efectiva a diferença entre água da torneira e água dita mineral, pelo que começa a perder sentido dizer água sim, mas mineral…
Já a cerveja sem álcool é uma forma de pagar a espuma com a ilusão de que não tem um pingo de álcool. O mesmo com um refrigerante sem açúcar, como se isso existisse.
Aproximando-se o Natal, o bolo-rei pode agora mudar de sexo (perdão, de género) para rainha. Um bolo-rei que não é bolo-rei porque lhe falta a fruta cristalizada, o que não impede que alguém diga que o melhor bolo-rei é o bolo-rainha. Quanto a dizermos que nos calhou a fava do bolo-rei, trata-se de uma imagem do passado, pois que a dita leguminosa foi ostracizada por uma qualquer ASAE.
A propósito de bolachas, há a bolacha de água e sal, uma denominação sugestivamente dietética, mas que esconde o muito que tem para além daqueles componentes. Qualquer dia, vamos ouvir pedir-se um quilo de bolachas de água e sal… sem sal.
Há um ponto intrigante quando observo uma catrefada de produtos biológicos que ostentam o prefixo bio (os outros biológicos serão só lógicos?). É que logo me ponho a pensar como cheguei até aqui sem os bio, eu que nem uma sua alternativa geológica – a sopa de pedra – costumo comer! Ah nos bio, temos os hambúrgueres vegetais, uma contradição lesa-carnes.
Saindo da alimentação, que não de consumo, que tal comprar um jornal não jornal, isto é, sem notícias. Conheço alguns. E aquela moda parva de os telejornais televisivos se iniciarem antes da hora que lhes dá o nome? Jornal das 20 horas às 19 horas e 58 minutos? Ou a dos programas de futebol sem futebol?
Fantástica crónica. Hilariante. Perfeito retrato da nossa Língua e do estado mental que lhe subjaz.