Como todas as paixões, o deslumbramento faz bem à saúde. Anima a circulação, eleva o espírito, compõe a alma. Tudo coisas boas. No entanto, há um problema: o deslumbramento, curativo de tantas maleitas, também tolda a visão, pois o ser amado ocupa todo o universo, a sua voz enfeitiça os passarinhos, os seus passos moldam o tempo. Para os comentadores, a doença dá mais grave: como alguém lembrava, deixam de ver o que está à frente do seu nariz. Creio que é o que se passa com o deslumbramento Centeno e o maravilhamento europeu, agora renascido, logo que há alguma coisinha para oferecer, um presidente simpático no Eurogrupo.
Fazia falta, o défice tem sido tremendo nos últimos anos, com a crise dos refugiados e o acordo com a Turquia, os muros no centro da Europa, o Brexit, as eleições desbaratadas, a incapacidade de relançamento económico, a bolha financeira, a teimosia das “reformas estruturais” para baixar salários, tudo retratos da desagregação europeia. Agora, a pergunta é: e Centeno que pode? Desconfio que ele próprio e o primeiro-ministro terão resposta mais prudente e que sabem que os maravilhadores se estão a esticar.
Um bom critério é olharmos para o que está à frente do nosso nariz, os sinais importantes desta semana na União. O primeiro é que foi votado o Orçamento europeu no Parlamento. Nunca um Orçamento tinha sido aprovado nestas condições: menos de metade dos votos a favor (295, havendo 154 contra e 197 abstenções) e pela primeira vez os socialistas não o apoiaram, rompendo uma tradição de sempre (aprovaram no Conselho e abstiveram-se no Parlamento, a política tem razões que a razão desconhece). As críticas são substanciais: o Orçamento é em termos reais menor do que nos anos anteriores, continuando uma trajectória de desmantelamento das políticas sociais e económicas comuns. Mais, corta a ajuda ao desenvolvimento, desguarnece a Europa na resposta aos refugiados, não responde nem aos riscos nem à realidade. O Orçamento não vê a Europa à frente do nariz, para usar a mesma metáfora. Os maravilhadores podiam começar a falar dos factos.
Mas talvez o segundo sinal seja ainda mais expressivo, porque demonstra o desarranjo das instituições, ou o cansaço e a desorientação dos mandantes. A Comissão Europeia apresentou as suas propostas para a “reforma do euro” e outros grandes desígnios. Já é pelo menos a terceira versão: houve os cinco cenários para proporem “a Europa a duas velocidades”, houve depois um sexto cenário que Juncker desencantou, há agora este mapa. Como era de esperar, ocupa-se mais do poder da própria Comissão do que da Europa: quer que o tal ministro das finanças europeu seja o comissário da pasta e vice-presidente da Comissão. Lá sairia Centeno meio do mandato, reduzido a um funcionário de transição. Depois, tudo o resto é mercearia: não há subsídio de desemprego europeu, não há transferências, não se passa nada.
Teresa de Sousa, europeísta encartada, constatou a óbvia “indiferença” com que os governos receberam as propostas da Comissão, entendendo-as como “ruído desnecessário”, ou até como desespero na defesa dos seus poderes. Assis, que nem por isso deixou de pedir a Costa que aproveitasse o embalo para uma “clarificação” (“clarificação” é o termo para eleições antecipadas por quem tem pudor de o dizer), também deitou água na fervura. Eles, que olham para a frente do nariz, notam que o que se está a passar é o empastelamento da decisão, exactamente como nos últimos anos.
Será assim? Cuidado. O chamado Tratado Orçamental, uma manigância de 2012 para consagrar as normas ajustativas e recessivas, entrará na ordem jurídica europeia pela porta do cavalo dentro em pouco. A máquina move-se. E não é uma maravilha, não é Centeno quem comanda, é a nossa velha conhecida, a austeridade.
Não há Europa senão como nome de um continente geográfico. Nesse continente há nações e Estados e instituições supranacionais e supraestaduais militares como a NATO ou civis como a chamada UE. As criaturas que frequentam essas supraestruturas são escolhidas por, no essencial, estarem disponíveis para amordaçar os povos e as nações através dos seus Estados capturados financeira, económica e militarmente. O projeto europeu é de empobrecimento através da precariedade e para o concretizar as democracias são um pormenor descartável. Estas manobras de comunicação visam alimentar os propagandistas de serviço para evitar que nas próximas eleições para o chamado Parlamento Europeu a maioria dos eleitos sejam eurocéticos. É o que se poderia chamar dar lustro a uma democracia que nunca o foi. A operação Centeno faz parte dessa grotesca comédia.
A globalização ganhou vida própria e as economias que a semearam não a controlam por falta de inovação, iniciativa, criatividade, eficácia e competitividade. Atónitos convenceram-se de que só lhes resta o empobrecimento, o fim do Estado social e a precariedade para competir com a China, a Índia, o México, etc. Outros convenceram-se de desenterrar os derrotados das últimas grandes guerras dos dois lados do Atlântico como o está a fazer Trump para recuperar a notoriedade perdida. Nada disso serve a humanidade.
Também na Europa há coisas esquisitas que ganham com menos de metade dos votos.
Já agora, eurodeputado (ou deputado da nação) que se abstenha numa votação, rua. Ou sim ou sopas.