Tudo Menos Economia

Por

Bagão Félix, Francisco Louçã e Ricardo Cabral

Ricardo Cabral

12 de Novembro de 2017, 18:09

Por

As décimas “estruturais” dos gambozinos

A polémica que se instalou em torno das críticas da Comissão Europeia (CE) à proposta do Orçamento do Estado de 2018 (OE2018) justifica que se volte ao tema do saldo estrutural, conceito ininteligível para o comum dos mortais e variável não mensurável, ou seja, uma literal caça aos gambozinos económicos, que é em si reveladora dos graves problemas da União Europeia, porquanto se preocupa em demasia com as décimas “estruturais” dos gambozinos, descurando temas muito mais importantes para o desenvolvimento económico e social da União.

Vejamos como têm evoluído as previsões da Comissão Europeia:

Na previsão da Primavera de 2017 para Portugal, a CE previa crescimento económico de 1,8% e um saldo orçamental de -1,8% do PIB em 2017. Previa igualmente que o saldo orçamental em 2018 fosse de -1,9% do PIB.

No final de Junho de 2017, quando apresentou as recomendações específicas para Portugal da CE em Lisboa, Carlos Martinez Mongay (da DG ECFIN) referiu que o saldo estrutural seria -2,0%, -2,2% e -2,4% do PIB potencial em 2016, 2017 e 2018, respectivamente, ou seja, uma revisão em baixa das estimativas da CE do mesmo indicador, apresentadas em Fevereiro de 2017 (de -2,2%, -2,3% e -2,6% do PIB potencial em 2016, 2017 e 2018, respectivamente).

Na previsão de Outono, divulgada a 9 de Novembro, a CE revê o crescimento económico em alta para 2,6% em 2017 e 2,1% em 2018 – valores quase idênticos aos previstos pelo Governo português no OE2018 –, e revê as estimativas para o saldo orçamental e para o saldo estrutural. Estima agora um saldo orçamental de -1,4% do PIB em 2017 e 2018, ou seja uma melhoria de 0,4 p.p. e 0,5 p.p. em 2017 e 2018, respectivamente. E estima que o saldo estrutural seja de -2,0%, -1,8% e -1,8% do PIB potencial em 2016, 2017 e 2018, respectivamente. De novo, uma melhoria do saldo estrutural, em relação à previsão de Primavera da CE, de 0,5 p.p. e 0,8 p.p. do PIB potencial de 2017 e de 2018, respectivamente.

E, numa carta recente em que pede esclarecimentos ao Governo, argumenta que a proposta do OE2018 resultaria numa melhoria do saldo estrutural de 0,4 p.p. do PIB, ou seja, presumivelmente de -1,8% do PIB potencial em 2017 para -1,4% do PIB potencial em 2018.

O Governo argumenta que a melhoria do saldo estrutural de 2017 para 2018 é de 0,5 p.p. do PIB. A orientação geral da própria CE para países com dívida pública acima de 60% do PIB em situação económica “normal” é de um ajustamento estrutural em cada ano superior a 0,5 p.p. do PIB[1] (p. 6). Mas a CE argumenta que Portugal está obrigado a seguir a recomendação do Conselho da União Europeia de 12 de Julho de 2016 – à data Portugal ainda estava sujeito às regras do procedimento por défices excessivos –, que obrigaria a uma melhoria anual do saldo estrutural de 0,6 p.p. do PIB.

Ou seja, as divergências relativamente ao OE2018 concentram-se sobretudo em décimas do PIB de diferencial em relação à melhoria do saldo estrutural, o tal gambozino!

Em suma, a previsão de Outono da CE representa uma melhoria significativa das anteriores previsões, que estimavam défices estruturais mais elevados. Isto é, a CE está com uma postura algo menos crítica em relação à política orçamental portuguesa. Não parece, por conseguinte, haver razão para tanto “alarido”.

Portugal é um país com uma elevada dívida externa e pública. Os técnicos da CE arriscam menos dando um cartão amarelo-quase-vermelho ao Governo do que dando um cartão verde. Não são penalizados pelas autoridades europeias se forem excessivamente prudentes, como sugerem as sucessivas revisões em baixa do défice e em alta do crescimento económico, mas sê-lo-iam se dessem um parecer favorável para posteriormente as contas públicas portuguesas não evoluírem favoravelmente.

Parece pois necessário mudar este estado de coisas, alterando os incentivos e as responsabilidades dos técnicos da Comissão Europeia. Excesso de prudência na condução da política orçamental é tão ou mais nefasto do que excesso de optimismo, porque tem consequências práticas enormes nas políticas orçamentais dos países membros, na actividade económica e no desenvolvimento do país no curto, médio e longo prazo. Por isso, prudência e optimismo não deveriam ter lugar em análises económicas por parte de serviços técnicos da União.

As melhorias do saldo estrutural, segundo a CE, têm sido muito inferiores à melhoria registada no saldo orçamental. Entre 2016 e 2017 o défice orçamental nominal, sem medidas extraordinárias, deverá cair mais de 1 p.p. do PIB (de 2,5% do PIB em 2016 para um défice inferior a 1,4% do PIB em 2017). No entanto, para a CE, o saldo estrutural apenas melhora 0,2 p.p. do PIB nesse período. E, como já antes referido, em breve, poder-se-á dar o caso de Portugal registar excedentes orçamentais e ainda assim, não vir a cumprir as regras de melhoria do saldo estrutural em mais de 0,5 p.p. do PIB em cada ano.

Por outras palavras, a meta do fim do ajustamento orçamental (o designado Objectivo de Médio Prazo, ou OMP), continua a ser sistematicamente afastada, à medida que o país se aproxima dessa meta, em resultado da metodologia adoptada pela CE.

Por conseguinte, serão o OMP e a melhoria do saldo estrutural miragens nunca alcançáveis?

E será que faz sentido cumprir essas regras em tais circunstâncias? Não serão regras para inglês ver? Quem irá impor sanções a Portugal se, por exemplo, registar um saldo orçamental de +0,25% do PIB e, segundo a CE, um saldo estrutural de -1,5% do PIB? Não haverá gambozinos mais importantes para caçar?

 

 

 

 

 

[1] Nos documentos da CE, o ajustamento do saldo estrutural (não mensurável) é definido em percentagem do PIB (mensurável), mas a CE apresenta as estimativas do saldo estrutural em percentagem do PIB potencial (outra variável não mensurável).

Comentários

  1. A questão não é a sanção, pois só essa minúcia verificatória e o escrúpulo do resultado decimal é já de si a prova mais que provada da imensa desconfiança dos europeus por este deficitários crónicos. Isso é assim desde o tempo da pandilha do Cavaco até às culminâncias do trafulha.

    Todo o cuidado é pouco com esta gente manhosa e eles sabem isso.

    Porque é que os países do norte e centro da Europa (alguns ex-cortina de ferro) têm uma dívida publico muitíssimo inferior à nossa e um nível de vida muito superior?

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Tópicos

Pesquisa

Arquivo