Tudo Menos Economia

Por

Bagão Félix, Francisco Louçã e Ricardo Cabral

António Bagão Félix

23 de Outubro de 2017, 08:48

Por

A aldeia desprezada até ao tutano

transferirPerda de vidas e de haveres de trabalho árduo em vilas e aldeias de Portugal são a mais negra expressão de uma “modernidade” injusta, discriminatória e divisória. Nesta “modernidade” a cidade esmaga a aldeia, o interior esvazia-se e o litoral atafulha-se, o consumo desenfreado erradica a poupança geracional, a exaltação do novo definha o respeito pelo velho, a memória esvai-se na ditadura do presente e até o valor útil da vida se hierarquiza e a morte é desigual.

Um qualquer grupo pago pelo Estado (ou seja, nós) reclama, grita, faz greve, tem tempo mediático, para no fim, recolher os frutos. Os pobres, os velhos, as pessoas sós, os artesãos e pequenos agricultores sem férias, não têm esse poder da rua. Nem muito, nem pouco. A sua escassa apetência eleitoral (até as sondagens os ignoram) torna-os politicamente irrelevantes. Não têm voz ou a sua voz não chega ao poder. E as notícias dão mais importância a uma qualquer parvoíce urbana do que à genuinidade rural.

Tudo em nome de um utilitarismo pérfido e injusto e de um economismo desumanizado. A aldeia deixou de ter extensão de serviços essenciais públicos, posto de saúde, policial e dos correios, agência bancária, escola, estradas e transportes facilitadores, sinal televisivo e redes de telecomunicações estáveis. Como se podem fixar jovens onde os quase únicos empregos são os do poder local (partidários) e de IPSS? O que se espera quando se fecha uma escola porque não é “rentável” ou se atrasa uma minudente infraestrutura básica porque é muito custosa per capita? Agora tudo online, que importa se o aldeão não sabe trabalhar com as maquinetas? O mundo virtual de amanhã segregou o mundo real de ontem, o deles. Lá, já quase não se nasce, o lar de idosos cresce e o cemitério aumenta.

As leis da economia utilitarista têm prevalecido brutalmente sobre as leis da Natureza. O campo está submetido a uma indisfarçável cultura do descarte, da indiferença e da insensibilidade, apenas abanada por dramas como os que agora aconteceram, com compulsivos anúncios de medidas, às vezes, para mais tarde jazerem esquecidas. A aldeia é ofendida por quem governa na e para a cidade: “têm de ser mais proactivos”, “não me faça rir a esta hora”, “têm de ser resilientes” (esse anglicismo de cidade, parvo, distante e ora em moda, que, na aldeia, felizmente, não entendem). A aldeia é dizimada pela “via rápida” da política impositiva do actualismo, que despreza a política do tempo que está para além do tempo eleitoral ou da sondagem seguinte. Somos mais dotados em tecnologia, mas mais pobres em humanismo e em Natureza. Discutimos até à náusea 0,1% do PIB que não representa mais 1,4 euros por mês para cada habitante, ao mesmo tempo que, só neste século, 2.530.000 hectares foram destruídos, sem que o tal PIB tenha dado sinal de alarme. E porquê? Porque este indicador não considera a depreciação do “capital natural”. Se tal sucedesse, a destruição de floresta teria provocado diminuição sensível do PIB, tal qual uma família fica mais pobre depois da devastação da sua propriedade. E, aí, outro galo cantaria na política e nos políticos dos números e das estatísticas.

Bem resumiu o Presidente da República na sua notável, sábia e humanista intervenção: “olhar para os dramas de pessoas de carne e osso com a distância das teorias, dos sistemas ou das estruturas […] é passar ao lado do fundamental que é o que vai na alma dos portugueses”

Ou como escreveu Tólstoi: “se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”. O problema é que há muita gente e políticos que não sabem o que é a aldeia, dizem que não têm orçamento para a tinta e a universalidade não passa dos seus liliputianos gabinetes.

 

Comentários

  1. Pois é, falta-lhe perceber, Bagão Felix, que o capital natural não é depreciado pelo PIB, seria essencial perceber que é a depreciação do capital natural que faz crescer o PIB. A natureza é o único produtor de riqueza no planeta, tudo o que existe provém dela, de uma forma ou outra. O drama é que tudo é extraído dela a custo zero, remunerando principescamente os homens que a delapidam, sendo mesmo remunerados quando arde uma floresta e morre gente. Mas não se pense que há inocentes nestas aldeias. Todos participam, ou por afinidade ou por despreocupação tácita no infortúnio. Ali ninguém vive do eucaliptal ou do pinhal, aparte as empresas do sector, mas todos procuram fazer uns cobres com a pobre floresta, quiçá para comprar um jipe novo ou mais um apartamento na cidade,. Esta é a mentalidade do aldeão bem-sucedido. Nas aldeias isoladas vive-se do consumo, não se produz nada, toda a gente tem um tractor mas este não serve para mais nada senão para lavrar incessantemente as terras até à erosão, o importante é ter um tractor e uma multitude de alfaias, dá dinamismo ao sector da maquinaria. A fruta, em geral de fraca qualidade devido à erosão das terras, cai de madura sem que ninguém a apanhe, no entanto compram e plantam árvores de fruto todos os anos, o consumo é o norte e os governos aplaudem, o PIB cresce. Mas não é só o capital natural que se destrói, também o capital financeiro que provém dos fundos EU são estoirados em projectos de investimento obscuros que, arrasando por vezes áreas de floresta autóctone, visam fundar olivais ou outros pomares contemplados nos incentivos, tudo com o último grito na irrigação gota a gota, que depois são abandonados e invadidos pelas silvas, tudo em nome do consumo, o ingrediente milagre que nos projecta no crescimento económico. Os dramas, esses, não só reconfiguram o parque tecnológico afecto ao consumo, como alimentam os grandes debates no sector da comunicação, tal como propiciam o desmedido protagonismo do Presidente da Republica, que não perde uma para roubar esse protagonismo aos que têm mesmo algo para contar e que não sejam discursos de circunstância.

  2. O mundo rural é o mundo medieval, é o tal mundo das trevas vindas da instauração do cristianismo no século IV. É o mundo dos servos da gleba, em que as pessoas eram indexadas às terras e subalternas ao dono delas. O que tem de bom essa miséria chamada ruralidade?

    Civilização decorre de civitas, da cidade, a antítese do feudo rural medieval. A cidade é anterior à ruralidade, por muito estranho que pareça à cristandade (ela própria uma barbárie também mais recente que a civilização).

    A ruralidade começa a transformar-se na idade moderna e torna-se obsoleta na idade contemporânea. A agricultura passou a ser a industria agro-alimentar. O labrador deixou de ser o poder local e passou a ser o boçal local, cujo trabalho tosco não tem qualquer valia. A ruralidade é um folclore mantido a subsídios. Que pena do mau viver que a ruralidade produz.

    Há sempre saudosistas da miséria. Porque não vai o caro Félix viver miseravelmente numa aldeia do interior? Dedicar-se a técnicas obsoletas e respectivos resultados miseráveis. Porquê manter uma estrutura produtora de miséria?

    Porque não colocar as pessoas onde tenham melhor vida e tornar o interior num parque natural? O que importam mais, as pessoas ou os territórios? Ou as fantasias de um mundo que nunca foi decente, nem natural.

    Porque é que se devem manter as pessoas em locais onde ficam longe de tudo e todos, e têm má vida? Para manter a tradição medieval do servo da gleba, para o indivíduo continuar a ser tido como parte de uma terra sem poder sair dela? A direita é sempre saudosista da miséria, do atraso e do mau viver. Enfim, cristãos.

    O que vale o mundo rural para a humanidade? A ruralidade é um episódio escabroso na história da humanidade, o tempo das trevas cristãs, da insalubridade e respectivo mau viver.

    Há muito que a ruralidade deveria ter desaparecido, juntamente com a religião que a determinou. Mas isso é contra as crenças das criaturas para quem a luz é coisa do lúcifer (portador da luz), e rezam que o homem existe para sofrer.

    Carpe diem caro Félix, os servos da gleba (rurais), que ainda sobram, devem ser libertados da gleba, deixarem de serem servos, e acabarem de vez com essa miséria vinda das trevas da cristandade.

  3. Os partidos políticos que, desde 1974, se têm sucedido nos Governos – PS, PSD e CDS – são responsáveis pelo estado em que o país se encontra.

    A questão tem vindo a ser particularmente aguda desde 2005, isso mesmo, desde o 1º. Governo Sócrates. Para trás a degradação esteve sempre presente: de notar que até pelos apelidados defensores dos trabalhadores vieram a público notícias de mau comportamento ético(vide UGT e José Manuel Torres Couto, militante do PS).

    O PSD teve o seu “momentum” com o BPN; o PS tem vindo a “notabilizar-se” com mais clareza desde 2005 – Governos Sócrates(vide acusação da Justiça de 2017, 11 de Outubro). Muitos milhões desviados e a fina flor do regime em evidência negativa.

    Em 2017, este PS de Costa, comete erros políticos de palmatória e o resultado está à vista: mais de 100 mortos, floresta destruída e muitos milhões de prejuízos. A vida dos mais abandonados destruída. Faltaram decisões após a devastação de Pedrogão. Claramente laxismo e incompetência.

    O CDS, claramente responsável pela cedência aos interesses da indústria de papel, com Cristas como executante do favoritismo, tem a subida lata de, com uma pressa suspeita, fabricar uma moção de censura.

    Esta trindade de partidos tem levado o país ao precipício: criação de clientelas e usando e abusando de lugares no aparelho de Estado e adjacências para criação de empregos e
    favores.

    Em eleições futuras em quem o Povo Português pode exercer as suas escolhas? Em França, no corrente ano, os partidos tradicionais desapareceram do sistema. Toda a gente sabe o que se tem passado. A alternativa em vigor – Macron – não está a resultar. Novas tentativas da sociedade civil em França podem vir a aparecer. Os franceses prescindiram dos seus partidos políticos dominantes: o PS e os Republicanos vivem a agonia. Em Portugal os acontecimentos recentes convidam a reflectir sobre isto.

    Veja-se o seguinte: o alíbi do Governo de Passos/Portas para colocar uma austeridade destruidora – a chamada destruição criativa – foi criar em Portugal uma “Singapura”, uma economia altamente dinâmica. Por essa “Singapura” passaram cortes nos mais abandonados, aqueles que não se deslocaram para as zonas litorais. Então, fecharam-se escolas, com o argumento do declínio demográfico, suprimiram-se Comarcas, serviços de Correios, fecharam-se sucursais de bancos, incluindo da CGD, com o objectivo de racionalizar custos, tendo em vista o aperto das instituições europeias, O resultado está à vista: desertificação e abandono do interior.

    Estes três partidos -PS, PSD e CDS – merecem o desprezo e o repúdio do Povo Português. Não podem ser escolhas válidas – os escândalos sucedem-se; num país pobre e com poucos recursos é forte a tentação de possuir cartão rosa, laranja ou azul para arranjar vida melhor. E subir o salário mínimo para 600 euros é um sonho irrealizável…as preocupações são outras: satisfazer as clientelas e as elites.

    É necessário realizar associações da Sociedade Civil como alternativa.

    Estes senhores da trindade referida não têm condições para continuarem nas listas eleitorais. À vista de todos o “rei vai nu”. O aspecto é triste.

    É necessário mudar. Os risos de felicidade na noite de 1 de Outubro, por parte de António Costa, Carlos César e Ana Catarina Mendes, converteram-se em rostos fechados passada uma quinzena – eles pensavam que Pedrogão estava esquecido. Agora, têm como certeza que, com toda a probabilidade, o 1 de Outubro de 2017 não mais se registará, pelo menos nos próximos anos. Estamos, em Portugal, com um problema de credibilidade dos partidos políticos. E isto é muito grave e leva tempo a apagar.

    1. Aditamento – A questão do PIB não se adequar a todas as situações económicas

      Assunto por diversas vezes abordado pelo autor do post. Como sempre, uma questão interessante

      A opinião de diversos economistas centra-se numa questão utilitária:o PIB deve ser visto como instrumento de trabalho, nascido na segunda metade do século XX, definido como valor monetário dos bens de serviços e consumo que, num determinado período de tempo, em geral o ano civil, são produzidos numa economia.

      É claro que no caso das calamidades acontecidas na floresta de Portugal podemos fazer recurso de um outro indicador: o indicador da sustentabilidade do território, isto é, aquilo que se vai transmitir às gerações vindouras, já acusaria as perdas ocorridas em Julho e Outubro deste ano no âmbito dos incêndios. E o indicador ecológico certamente daria conta das mesmas perdas. Qual o impacto da área ardida no contexto económico? Qual a perda económica que será estimada, no tocante ao impacto no rendimento de empresas e famílias afectadas?

      O PIB actual parece estar adaptado a uma economia onde ainda a mercadoria é dominante.

      Numa sociedade onde o Modo de Produção Capitalista seja dominante o actual conceito de PIB permanecerá. De qualquer forma, no caso da floresta, do ponto de vista da sustentabilidade e da ecologia, as perdas são evidentes. Quando as teorias do decrescimento fizerem a sua inevitável aparição – com este frenesim, à Trump, de crescimento a qualquer custo, o Planeta entrará em colapso – o conceito do actual PIB deverá ser reformulado, privilegiando os temas da ecologia e da sustentabilidade.

      Em suma:o conceito de PIB está ligado ao Modo de Produção Capitalista. Quem se lembra de Marx e dos esquemas de Reprodução Simples e Alargada, achará alguns pontos de contactos com os chamados valores acrescentados brutos(VAB´s) para contabilizar o PIB, embora a preocupação de Marx fosse a mais-valia extorquida na produção de manufacturas. Na Revolução Industrial em Inglaterra, na transição da produção artesanal caseira isolada para a massificação da produção em fábrica, a preocupação foi medir a extorsão do trabalhador pelo patrão – a exploração cifrava-se na diferença entre o valor produzido e o valor do salário que lhe era pago.

  4. Excelente post. Infelizmente cada vez mais raro este tipo de reflexão na cidadania da contemporaneidade, ela própria já bem arrebanhada e forçada à mansidão no redil do ‘utilitarismo’.

  5. Estamos governados por quem não se interessa. Por políticos de esplanada. Por um conjunto de oportunistas que chegaram ao poder por caminhos que os envergonham. Estão instalados em Lisboa e não tencionam ir onde os problemas existem. Sujar o fato com cinzas e velhos mal-cheirosos? Não, obrigado. Marcelo deu um exemplo magistral de humanidade ao ir falar com as pessoas. Não lhes foi resolver problema nenhum em concreto. Foi-lhes mostrar que o país está solidário com eles, ainda que o Governo não esteja. E conseguiu fazer a diferença na vida daquelas pessoas. Só falta Costa e os seus camaradas perceberem o que é que significa perder tudo o que se tem na vida.

  6. Mais um interessante e oportuno texto do caro Félix. “em nome de um utilitarismo pérfido e injusto e de um economismo desumanizado” as pessoas do interior são desprezadas e empurradas de lá para fora… e depois vêm os mesmos “utilitarismo e economismo” hipócritas com dispendiosos programas propagandeados para levar pessoas a fixarem-se no interior. Faz-me lembrar a hipocrisia malabarista da produção de sumo de fruta seguida da venda da fibra porque afinal faz falta, ou da venda de pinho sangrado seguida da venda do verniz senão a madeira estraga-se. Ainda hoje no radio um autarca de Oliveira do Hospital falava nisso, exemplificou com uma escola que foi fechada por ter só dezasseis alunos… e que só num ano houve meia dúzia de pais que mudaram de habitação para seguirem os filhos na cidade… e pergunta se só uma descarga de um avião não pagaria um ano do professor nessa aldeia.

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