Entre março e agosto de 2007 começaram a surgir notícias estranhas no mundo financeiro. Alguns fundos de investimento foram liquidados pelos bancos que os tinham criado, ainda poucos. Mais preocupante, as exageradas variações de preços de algumas acções sugeriam algo estranho. Uns tempos depois, mas só uns tempos depois, um director financeiro de um grande banco admitiu em público que tinha notado que a probabilidade estatística de ocorrerem oscilações da mesma dimensão, face ao que se conhecia do passado recente, era menor do que a de alguém ganhar 42 vezes seguidas a lotaria britânica, o que, é de reconhecer, seria bom de mais para ser verdade. Esse director começou a vender os títulos que tinha em carteira, mas a maior parte da tribo financeira continuou a acreditar que estava tudo conforme. A partir do verão e do outono de 2007, no entanto, já não era possível ignorar os sinais: aumentou o número de hipotecas em incumprimento, as bolsas entraram em pânico, bancos faliram, começaram os resgates de grandes empresas, como a maior seguradora mundial, veio logo depois a crise das dívidas soberanas, e tivemos uma década de austeridade.
Olhemos então para trás, para a década que passou. Em 2007 saíamos há um par de anos de uma recessão e de uma crise política. Essa recessão, pelo padrão que agora podemos medir, foi moderada: assustou, não destruiu. A crise, provocada pela invasão do Iraque, dividiu a Europa (a França e a Alemanha condenaram-na, mas Blair, Aznar e Durão Barroso juntaram-se a Bush) e incendiou o Médio Oriente. Mas o problema mais profundo, que aliás estas precipitações só sugeriam, era o gigantismo de um sistema financeiro, alimentado pelas privatizações, pelas rendas de parcerias público-privado e pelas desregulamentação, que canalizava as poupanças, os excedentes, as ilusões e as falcatruas para um enriquecimento vertiginoso de uma plutocracia que pairava acima dos Estados e imune aos sobressaltos das democracias. Foi assim que começou a pior recessão em oitenta anos.
Dez anos depois, o inventário do que foi corrigido é confrangedor. Alguns Estados endividaram-se para nacionalizar as perdas bancárias, o que serviu de pretexto para medidas de austeridade que continuaram a encaminhar para o sistema financeiro uma parte do produto nacional (em Portugal, como noutras economias, isto chama-se “saldo primário elevado”). Na UE foi aprovado um Tratado Orçamental que define regras de compressão económica por vinte anos. No Reino Unido, em Itália, Espanha, França, Holanda, Áustria e outros países, os sistemas partidários foram abalados por aventureiros, pela corrupção, pela descrença ou mesmo pelo desprezo das populações. E nada indica que isto fique por aqui. Na Hungria e noutros países, a transformação vertiginosa de forças políticas tradicionais deu o poder a uma extrema-direita de botas cardadas.
Dirá o optimista que houve outras mudanças, estas para melhor, e lembrar-se-á certamente da inundação de liquidez criada por Mario Draghi na zona euro, que salvou das aflições das taxas de juro as economias mais atacadas. Mas pode-se também notar que, com este remédio, a valorização dos activos financeiros se acentuou, ou seja, ganharam os que já tinham beneficiado da bonança anterior, e se formam novas bolhas especulativas.
Temos portanto alguns governos nacionais mais frágeis mas mais autoritários, economias enfraquecidas, de volta à girândola financeira, e instituições democráticas mais submetidas ao interesse imediato de poderes assimétricos. Dez anos depois, o que agora não se pode dizer é que desta vez ninguém notou os sinais, pois eles são demasiado evidentes – chegamos ao ponto em que os que festejam Macron já só esperam salvar a Europa com a facilitação dos despedimentos, a promessa mais solene do jovem césar.
Acabou por não dizer se a situação do sistema bancário é ou não melhor do que há dez anos. Porque foi isso em grande medida que levou justamente às políticas de compressão económica (também entre nós, embora por cá houvesse muita dívida pública escondida que a redefinição do perímetro orçamental a seguir à crise pôs a nu). O argumento que venderam à classe média (que é quem paga impostos e com quem se ganham as eleições) foi de que era necessário tal esforço para lhe salvarem as poupanças. E a lógica foi aceite. O argumento inverso, de que é necessário regressar a políticas inflacionistas e de desvalorização competitiva, assim como à repressão financeira dos bancos, esse ainda ninguém o conseguiu vender em lado nenhum (Le Pen foi esmagada por Macron no debate também por isso e aqueles que votaram em Corbyn estavam à espera que perdesse), até porque ninguém parece capaz de explicar quem substituirá os malfadados mercados no financiamento do Estados (essas políticas alternativas baseiam-se justamente no acumular de défices mais ou menos elevados, o que torna os Estados mais dependentes da dívida). Compreende-se, quem tem poupanças ou recebe pensões, sabe que vai perder rendimentos, assim como quem está a pagar a casa sabe que vai ter que arcar com juros mais elevados. O problema, Professor, é que andamos há anos a discutir Política, sem discutir Economia. O seu esforço para esclarecer quais os riscos da adoção destas políticas e também quais as oportunidades, faz de si, e do Prof. João Ferreira do Amaral, dos poucos que se preocupam realmente com isso. Do resto, vêm argumentos de natureza moral, que, como o exemplo da Grécia bem mostrou, não interessam a ninguém, porque as guerras ganham-se com armas (políticas bem desenhadas, neste caso) e não com princípios… Enquanto os riscos e as oportunidades das políticas alternativas não forem bem quantificados, não vamos mesmo a lado nenhum…
As políticas não interessam a ninguém… Interessam a quem emprestou o dinheiro é o recuperou. Tina, quer apenas dizer, não voltamos a emprestar.
Jaime Santos. Quando tu votas em alguém é na esperança de que perca? A sério? Então quem votou em Corbyn não queria que ele ganhasse. Mas então pq não votaram em quem realmente queriam que ganhasse?
Também não percebo como é que podes dizer que ainda ninguém conseguiu explicar quem é que substituirá os mercados (banca privada) no financiamento dos estados quando sempre existiram grupos a explicar como é que os estados se podem financiar sem estarem dependentes exclusivamente de mais dívida ou mais impostos (exemplos: http://positivemoney.org/ , http://www.monetary.org/ , https://www.sovereignmoney.eu/ , etc…).
E repara também que nenhuma destas organizações propõe desvalorizar a moeda para exportar mais.
Ah e não vamos mesmo a lado nenhum enquanto partidos que se dizem contra o status quo financeiro continuarem a fazer da criação e distribuição de moeda um assunto tabu. Terão estes partidos telhados de vidro? Estarão eles próprios a tentar manter (secretamente) o status quo financeiro?
Francisco Louçã, esqueceu-se de referir que o principal problema e a face mais medonha do sistema financeiro é o facto de actualmente toda a sociedade (estados, instituições e pessoas) estar dependente do continuo aumento da dívida global para que continue a existir moeda em circulação. Já por outro lado, enquanto todos os governos escolhem estar dependentes da banca para ter dinheiro na economia e fingem ignorar que o podem criar sem pedir licença a ninguém, os bancos podem criar do nada todo o dinheiro que quiserem para alimentar as tais bolhas especulativas de que falou. Agora pergunto, porque é que o BE, PCP e outros partidos que se dizem de esquerda nem sequer referem isto? Estarão também eles dependentes de doações e empréstimos da banca?
Bem dito!. Melhor só o “efeito Aznar”
Caro Professor:
Solicito o favor de considerar o comentário de hoje, pelas 14,31 horas, como substituto do anteriormente enviado, hoje, aproximadamente pelas 00,30 horas, que, por razões que desconheço, não foi publicado.
Antecipadamente agradecido.
Cumprimentos.
O que não se pode ultrapassar e vencer é o unanimidade em torno da receita única: mais ou menos é o TINA(“There is no alternative”), embora com outra roupagem. “A receita estratégica de Jeremy Corbyn não poderá nunca ser aplicada pelas esquerdas no continente”, disse-nos o adjunto de David Dinis no “PÚBLICO” de 12.06.2017. E o experimentado Vicente Jorge Silva(VJS), também acrescentou(“PUBLICO”, 11/06/2017:”Imprevisível, de facto, um líder tão pouco carismático…típico representante do velho socialismo britânico de extracção trotskista…regresso ao Estado-Providência a nacionalizador dos velhos tempos do Labour…”. É preciso esclarecer que pretender nacionalizar os Correios, os serviços de fornecimento da Água e os Caminhos de Ferro não se pode interpretar como “nacionalizações”. São serviços básicos. Em muitos países são serviço publico. Em Portugal os Caminhos de Ferro e a Água são públicos(maioritariamente pelas autarquias). E os Correios foram públicos até há pouco tempo. Quanto ao Estado-Providência em Inglaterra, VJS não estará informado da sua condição de degradação, fruto da austeridade de Cameron de sete anos e de existência de miséria extrema em Inglaterra, a exemplo de Portugal e outros países, com a proliferação de sem-abrigo e ajuda alimentar a subir exponencialmente desde 2008. Logo, a proposta de Corbyn é perfeitamente pertinente e somente com a ambição de ser SOCIAL-DEMOCRATA. E a melhoria do Estado-Providência tem algo de KEYNESIANISMO. Os defensores do TINA já não concebem sequer que se possa falar em SOCIAL-DEMOCRACIA e KEYNESIANISMO. É A TENTAÇÃO TOTALITÁRIA, argumento que tiram da algibeira como arma de arremesso político a toda a hora.
Quero deixar um conselho aos defensores deste TINA recauchutado: as cinco mudanças assinaladas por VJS no seu artigo de Domingo passado(Reino Unido:Brexit; USA:Trump; Portugal: geringonça; França: desaparecimento dos partidos políticos do sistema; Reino Unido: Corbyn) podem, por contágio e necessidade pertinente, disseminar-se, como já aconteceu em Espanha(Podemos e Cidadãos) e Itália(Grillo). Não radicalizem o discurso sob pena de assumirem o comportamento típico de Velhos do Restelo, que não sentem o pulsar da mudança para um novo mundo mais igualitário e menos desigual – estão lembrados da década de 30 na Alemanha e do que veio a seguir?
Bem dito. Muita gente esquece que esta salganhada ja leva quase uma decada in the making (ou mais dependendo do criterio!). E tudo (menos as contas do Centeno) indica que e’ para continuar a apertar com o contribuinte enquanto der. O grande problema Europeu e Americano e’ so’ um: esta divida que temos presa ao pescoco. E que bem presa porque como vimos no caso da Grecia nem com referendos vamos la. A’ falta de um numero suficiente de gente com vontade de ir para a rua parece mesmo que deixar de pagar impostos e’ a unica maneira de evitar enviar o meu dizimo mensal pra Goldman & Co….Ate o Miguel Sousa Tavares ja diz que se renegocie.
Ate quando?
Quando há dez anos o crash de Wall Street explodiu nasceram teorias esperançosas e hipocritas de todos os tipos e corajosas declarações do tipo “fim das offshores!”, “fim dos produtos financeiros derivados!”, “controlo político da economia de casino”…
Numa conversa de circunstância com um amigo cuja profissão era bancário do topo ele disse-me em remate de conversa: isto acaba com mais da mesma droga! Assim será como estamos a ver dez anos após.
A riqueza fictícia gerada pela economia financeira tem de ser paga por riqueza real que só pode ser retirada do bem-estar de quem cria riqueza real. É o que estamos a fazer com maior ou menor cumplicidade.
Macron será um déspota antes que o galo cante três vezes! Ele não tem os pés na terra, não responde institucionalmente a pessoas reais da vida comum. Acabará inexoravelmente como déspota. Ainda os franceses não votaram e o homem já anuncia a dispensa de Juízes para os casos de terrorismo e serão todos o que lhe derem jeito a cada momento.
Só o reforço da organização das pessoas comuns em permanente oposição sempre ampliada conterá a destruição do bem-estar conquistado pelas populações com a sua inteligência, braço e sofrimento humano.
O Macron e´um banqueiro de investimento de gema. Ou seja, alguem que queria ganhar muitissimo dinheiro e que para isso escolheu sacrificar decadas da sua vida pessoal ao macacadas Power Point e do Excel. Claro que quem passou os ultimos a olhar pra folhas de calculo de financas dificilmente desenvolveu o necessario para liderar um pais, mas as elites europeias dizem-nos que nao.
Basta olhar as calinadas que o banqueiro de investimento Paulo Barradas manda nas colunas do Expresso para ver que isto é gente que pensa que sabe muito mas no fim nao sabe nada.
Eu espero que tenha razão e isto estoire porque o cenário alternativo é ter sido criado na UE um sistema colonial estável que converteu países inteiro como Portugal em roças.
Estouro por estouro que estoure primeiro aí o seu dólar. E que a Californiacation volte ao peso.
Frei José Rodríguez Carballo resumiu em 2011 este palavreado todo: “a ganância”.
Ainda bem que houver um frei que em 2011 nos veio abrir os olhos para isso da “ganância”.
Isto é com cada comentário!
Obrigado igualmente, caro Ernesto.