Depois de Soares, não há mais espaço para a política. A frase, de um amigo emocionado com a morte de Mário Soares e seu admirador próximo, deixou-me a reflectir. Arrogância? Não, só tristeza, imensa tristeza, pensei primeiro. Certamente que não é o desaparecimento de uma grande figura do nosso tempo recente que, por si, altera a geografia da política, como não foi a morte de Álvaro Cunhal que fez desaparecer a política da contradição ou a de José Afonso que fez desvanecer a força mobilizadora da cultura popular. Admiti portanto que se tratasse simplesmente uma confissão de solidão.
Mas será só isso? Não haverá também, nos últimos combates de Soares contra a troika, pelos direitos constitucionais que a austeridade estava a sabotar, contra o império financeiro e contra a dívida, um sentimento de desespero, de fim do tempo, de perigo abissal? Sozinho, sem o seu partido que então lhe virava as costas, satisfeito com as companhias mais militantes à esquerda, não estaria Soares a desafiar o afundamento que temia? Depois de uma vida da “Europa connosco”, como não reconhecer que ele sabia que estava a confrontar as instituições e as regras europeias em que ainda acreditava e a fincar o pé numa trincheira de resistência?
Portanto, o desespero do meu amigo seria talvez uma confissão de perplexidade perante um mundo que muda sem sabermos para onde vai, onde o aliado passou a ser o inimigo, onde tudo o que é sólido se está a desvanecer no ar, para lembrar a frase de Marx sobre o fulgor da modernização industrial de oitocentos: desvanecendo-se, a política mudou de espaço e de tempo.
Ora, então o que é que se desvaneceu e o que é que mudou? Para nós todos, mudou a condição em que a democracia é a nossa condição. Ou seja, a sistémica transferência de soberania para a União Europeia, consagrada a um projecto de divergência que prossegue como um rolo compressor, impôs a deformação da política, provocando uma contradição insanável entre quem tem a legitimidade mas não o poder (as autoridades nacionais) e quem tem o poder mas não a legitimidade (as autoridades europeias). Ou seja, a democracia, a que vota, a que devia decidir, a que responsabiliza os poderes, passou a ser cerimonial. Essa é a explicação para a implosão de partidos outrora dominantes, para o ascenso de populismos, para a emergência de bonapartismos, para a fragilização de regimes, que pouco têm a oferecer e menos a garantir. A União está a dizer aos cidadãos que, façam o que fizerem e votem o que votem, a sua política punitiva é inalterável.
Foi a mensagem da Grécia e, num tom mais discreto, é o que a Comissão diz a Portugal quando lamenta a não-privatização da CGD ou afirma que só admite a venda ou a liquidação do Novo Banco, ou quando exige a liberalização dos despedimentos. Chegados aqui, percebe-se esta circunstância reveladora: a União Europeia, mais do que tudo, teme toda e qualquer eleição que se realize em 2017. Haverá então espaço para a democracia neste tempo que coincide com a morte de Soares?
A eleição de Trump é um sinal de que a resposta bem pode ser temível. É que há uma política que sobra, a que ladeia a democracia para promover a irresponsabilidade. Trump, como aqui lembrou Miguel Esteves Cardoso, é um troll que tem orgulho em comportar-se como tal. Se está vulnerável pela revelação da sua rede de negócios russos, se cresce a dúvida sobre se a Casa Branca é hoje o paradoxo da vingança da Guerra Fria, se se pergunta quem são os bilionários que fizeram renascer a sua campanha acentuando a deriva autoritária, Trump reage reafirmando tudo o que é. E Trump é a agonia da política.
São tempos de desespero, estes que nos dão esta liderança em Washington. Não que não tenha havido dos piores, as guerras foram todas criadas por presidentes com pedigree. Mas este diz que quer ser a imagem degradante de si mesmo. Começou a Era Trump e vai haver mais como ele.
Trump só nos preocupa pela simples razão que a América influencia tudo e todos. Mas, o desabafo de alguém próximo de Soares provavelmente não conta muito para o que está em jogo.
Centro a minha análise nos seguintes pontos:
– A Literatura já dava sinais de incómodo com a situação na sociedade norte-americana – vide, por exemplo, “Ferrugem Americana”(2009) e “O Filho”(2013), de Philippe Meyer(Edições Bertrand);
– As empresas de sondagens mostraram não conhecer, de todo, o terreno onde actuam. A explicação pode estar em dois aspectos: (a) por irónico que pareça – isto no país da vanguarda da ciência, da tecnologia e dos métodos – não existe um conhecimento aprofundado das mudanças e inflexões da sociedade norte-americana; (b) Os métodos estatísticos são questionáveis. Para dar uma ideia, basta consultar online o estudo “What is Bayesian Statistics and why everything else is wrong”, de Michael Lavine, da Universidade Durham, Carolina do Norte. Um estudo simples, publicado em “The New Yorker”, de 7.12.1992, dá nota de resultados muito diferentes usando os métodos tradicionais indutivos e o método bayesiano. Se consultarmos, por exemplo, o livro de Pedro Magalhães, da FFMS, “Sondagens, Eleições e Opinião Pública”, constatamos ausência total do paradigma bayesiano, sendo o autor um especialista de reconhecido mérito e ampla bagagem científica;
– Em conclusão: ainda não chegou o tempo da análise política. Primeiro é preciso arrumar a casa e questionar os métodos que têm vindo a ser utilizados. Depois, é preciso um esforço de compreensão dos métodos e das técnicas. Então, discutamos a política.
Parem de bater na estatística. Não lhes passa pela cabeça que as pessoas possam mentir às empresas de sondagens? E sei disso porque há dias aconselhei alguém a mentir descaradamente se lhe perguntassem sobre quem is votar nas presidenciais francesas. Quando as sondagens se tornam uma arma política essa pode ser uma atitude racional. Isto para lá da simples dificuldade de fazer uma amostra representativa quando há diferenças notórias entre quem aceita responder e participar e quem recusa.
Obrigado Louça por recordar publicamente como nos últimos anos Soares se alvoroçou com o regresso do seu antigo inimigo totalitário pelas mãos da “construção europeia” das troikas e dos interesses financeiros sem alternativa, a quem afinal ele próprio tinha estendido o tapete. Pergunto-me se nos últimos tempos não terá tido o mesmo desassocego arrependido que lemos no livro testamentario de Medeiros Ferreira, o nosso negociador da adesão à então CEE.
Pertinente o paradoxo evidenciado quando se refere que quem tem o poder não tem legitimidade e quem tem legitimidade não tem o poder. Mas julgo que esta ideia de uma Europa autoritária e despótica é mais recente e surge umbilicalmente ligada à vertigem contemporânea da submissão de tudo ao primado financeiro. A subordinação não é tanto dos governos soberanos à tecnocracia de Bruxelas como é das democracias à finança. Na Europa essa subordinação é enfatizada por um projecto de política monetária comum falhada cuja superação, a meu ver, lança um outro paradoxo em que para superarmos a fragmentação da Europa temos exactamente de ter mais Europa. A resposta à ineficiência da política monetária comum geradora das desigualdades que estão no epicentro destas tensões europeias tem de passar pela concepção de uma política fiscal comum que, em articulação, com a política monetária a torne eficiente e sustentável. Este é para mim o verdadeiro paradoxo europeu em que a superação dos problemas causados pelo processo integracionista exige exactamente mais integração. Se não houver coragem de o fazer, mais vale abandonar o projecto europeu e o quanto antes. Eu, enquanto europeísta, defendo a ideia de uma política fiscal comum que é tema que espero ver debatido com mais frequência em 2017.
O verdadeiro paradoxo está em tentarem unir o que nunca foi unido. A ideia de uma Europa autoritária e despótica nasce de se tentar unir o que não nasceu para isso. A Europa sempre foi diversa e foi essa diversidade que fez a sua força. O que querem é destruir a Europa para a poder unir. Mas já não será Europa. Será um conjunto de nações desfeitas sobre as quais reinará imperialmente a burocracia de Bruxelas.
… Caro Francisco Louçã,
Boa tarde,
Estou plenamente, repito plenamente com tudo o que escreve . . . menos com uma coisa que tomo a liberdade de lhe perguntar :
… a UNIÃO EUROPEIA nunca existiu e todos ou quase todos ( alguns portugueses também ) tudo têm feito para destruir o que foi idealizado por HOMENS BONS e para além do mais nunca se viu os RICOS darem algo aos POBRES sem quererem o triplo ou mais do que dão ! Veja-se o caso da TSU . . .
Não percebi bem a sua questão, em todo o caso já escrevi aqui sobre as razões pelas quais penso que a UE é um projecto falhado.
o status quo acabou, temos uma nova era *aquario*.
queiram uo nao as mudancas vao aparecer todos os dias
a UNIAO EUROPEA nao e uma democracia mas uma DITADURA
e tempo que o povo PORTUGUES pare,pense e analize as coisas .
a maior parte dos politicos jogam apenas para seu proprio beneficio
e e por isso que votaram no mr. trump.
o que esta para vir, nao sei.mas mudancas sim
sidonio terralheiro
A UE é, como sugere caro Sidónio, o rosto do fascismo versão séc XXI. Durante o salazarismo a esmagadora maioria dos portugueses também achava que não havia fascismo nenhum. Como então, os modernos eurofilos ainda não perceberam o que são, por muito óbvio que seja o fascio de interesses a quem se sabujam diariamente. Como dantes não vêm o ridículo, e o trágico, e o nojento de assim sacrificarem o futuro dos seus próprios filhos. É preciso iniciar a guerra de descolonização, desta vez a nossa.
Depois de Soares o Capital é o Capital e o Trabalho é o Trabalho e a Luta continua como a vida.
As democracias são métodos de delegação de poderes. Não um fim em si nem um modelo único.
“A democracia cedeu o lugar à tecnocracia.” Explicava o Prof. de ciência política ainda as propinas se pagavam em escudos. A tecnocracia são os lobistas, os grupos de pressão, as sociedades de advogados: os servos mais bem pagos, mais fiéis e próximos do Capital.
A chamada “UE” é isso. Muitos milhares de tecnocratas trabalhando para seus amos em constante rivalidade para robustecer os pilares do Capital na Europa e no mundo.
O golpe de estado de 2015 na Grécia contra um governo eleito numa democracia pluralista foi feito por esses tecnocratas que têm total desprezo pelas democracias e pelas liberdades. O referendo da Grécia rejeitou inequivocamente em liberdade e democraticamente o programa que Aléxis Tsípras engoliu na sessão de tortura a que se submeteu nos sórdidos gabinetes do poder tecnocratico de Bruxelas/Frankfurt.
A população da Europa e do mundo não suporta mais a intensidade da arrogância, do desrespeito e do desprezo a que é condenada pelos tecnocratas e pelos partidos políticos que os envolvem. Esses partidos são odiados pelas populações que decidem contra eles pelos meios que podem.
Trump tomou em suas mãos a defesa do Capital sem intermediários como os Clintons, Obamas ou Bushs. Percebeu que as populações usariam a democracia americana para votar contra essa espessa malha de tecnocratas intermediários do Capital mesmo tendo de votar em Trump.
Há uma “Primavera no Ocidente” que comporta os perigos de violência em que degenerou a “Primavera Árabe”.
Capital e Trabalho continuarão a sua eterna luta por caminhos nem sempre convencionais.
Caro Jose, Alexis Tsipras podia e devia respeitar o desejo do povo expresso em referendo e sair do Euro e até da própria UE.
Se a UE é um demónio antidemocrático, porque é que a Grécia não saiu do Euro e da UE? O que os impediu de voltar ao Dracma?
O.Santis, José tem exatamente razão, e a sua pergunta também, mas a resposta é simples – Alexis Tsiparas era afinal demasiado político para não ser cobarde, o colaboracionismo vem logo a seguir. Para estas coisas não é preciso palavras complicadas, Dante reserva o círculo mais profundo do inferno para esta fraqueza. Deixo-o descobrir-lhe o nome. Os tempos que ai vem teem talvez a única vantagem de separarem o trigo desse joio. Vamos todos descobrir o que afinal somos.