A poupança silábica está cada vez mais presente na linguagem oral e escrita. Não me refiro à capacidade de fusão digestiva que, na oralidade, transforma várias palavras seguidas numa quase só palavra dita e, não raro, incompreensível, e muito menos não escrevo aqui sobre os códigos que se instalaram no reino das mensagens e correio electrónico, em que letras como o k, antes estrangeiradas, se tornaram comuns.
Falo apenas do fenómeno da economia de sílabas que se tem verificado, com aparente sucesso, sobretudo no campo da política e da economia. Três exemplos: competitividade que muitos eruditos teimam em reduzir a “competividade”, empreendedorismo também sincopado de uma sílaba para dar em “empreendorismo” mais rapidamente lucrativo e precariedade a quem se vem tirando um dos “e” em jeito de “precaridade”.
O PM António Costa gosta de dizer “precaridade”, não sei se se referindo também à sua governação. O secretário-geral da CGTP Arménio Carlos realça em todas as suas intervenções a “precaridade” laboral, apesar de, nos cartazes da sua organização sindical, a palavra estar correctamente escrita. Economistas com credenciais falam recorrentemente em “empreendorismo” e “competividade”.
Será que a seguir vem “contraridade” em vez de contrariedade? “Obrigatoridade” no lugar de obrigatoriedade? “Seridade” para desvalorizar a seriedade? “Solidaridade” perante as dificuldades do Estado Social?
E, contudo, a regra é simples: substantivos que resultam de adjectivos terminados no encontro vocálico em forma de ditongo io formam-se com o sufixo “iedade”. Os que não terminam com o ditongo completam-se com o sufixo “idade”, como, por exemplo, dignidade, normalidade, severidade claridade, regularidade, menoridade, afectividade.
É tudo uma questão de maioridade (do substantivo) face à precariedade (do ditongo) sempre sujeito à competitividade (da interjeição em forma de tritongo uau!).
Convém antes de tudo perceber que a língua falada já existia antes da gramática e muito antes da imutabilidade que lhe querem atribuir. Na verdade, ela chegou até nós pela plasticidade que lhe prestamos e pela forma como a adaptamos aos novos valores com que vamos progredindo na comunicação. Uma língua prestável ao discurso e à narrativa tem que ser maleável e capaz de lhes dar fluidez evitando articulações complexas, produzindo sons o mais inteligíveis possível. Desde sempre a língua evoluiu nesse sentido, alheia aos temperos da gramática e das regras, mas sempre aberta às derivas da fonética e às declinações que a tornam escorreita, maleável, melodiosa e quente. As deformações que Bagão Félix aponta aqui como uma afronta à língua portuguesa, como que ferindo-a no seu orgulho, reflectem bem o carácter autónomo da língua falada em relação àquilo que se escreve, pois é necessário perceber que se a língua escrita precisa de normas e uma gramática para estabelecer uma plataforma de entendimento entre quem lê e quem escreve, a língua falada precisa apenas de ser inteligível, contando para isso com o gesto e a expressão, coisa que na escrita só se consegue com regras e signos inteligíveis e complexos. É assim que, por mais que Bagão Félix batalhe e se escandalize com a preguiça e o devoro das sílabas, é o próximo acordo que vai reformar e normalizar a voracidade dos comunicadores. Acresce que são a gramática e as regras que se adaptam à língua falava e não o contrário, é para isso que servem os acordos ortográficos (quando eles não são invasivos e excedem a própria matéria).
Conseguir falar sem abrir a boca parece ser o grande designío pátrio dos portugueses neste momento. Vogais e ditongos são literalmente engolidos antes mesmo de serem vomitados. E, quando chegam a ser largados, vêm a jorros e numa velocidade espantosa. Parece que todos competem para ver quem fala mais depressa e pior.
Mas ao mesmo tempo que se assiste à tendência geral de fechamento das vogais átonas – oiça-se Jorge Jesus a falar – observa-se outro vício oral na população portuguesa: acentuar sílabas que não o deveriam ser. «Alértar» para este problema é uma perda de tempo de tontos como eu, a quem ainda «incomôdam» estas coisas.
Afinal, José Rodrigues dos Santos é já um consumado mestre da língua, e o melhor escritor português, como revelou um recente inquérito aos nossos leitores. Falar bem, pouca importância tem. Comunicar já só se resume a pôr «likes» em fotografias de gatinhos, ou «deslikes» a propósito do traseiro da Kardashian. Para comunicar já não é preciso mais. Esquecem-se que quem comunica mal forçosamente pensa mal, porque linguagem e pensamento são exatamente a mesma coisa.
Estimado Dr. Bagão Félix,
Gosto muito destas dúvidas gramaticais sendo embora um mero utilizador da nossa língua.
O seu artigo é divertido e necessário. Mas fez-me lembrar que eu próprio, há poucos anos, procurei esclarecer uma dessas dúvidas consultando a minha edição de 1996 do Cândido de Figueiredo. Para minha surpresa, a entrada “precaridade” consta como “O m. q. precariedade” acompanhada da nota “usado por Rui Barbosa” referindo-se certamente ao notável orador e estudioso da lingua portuguesa, fundador da Academia Brasileira de Letras.
As regras ainda são mais belas quando são quebradas. Talvez seja por isso que prefiro a precaridade da actual governação à precariedade gramaticalmente canónica da governação anterior.
Os meus cumprimentos.
Aproveite Nuno Lourenço, não vai ter muito tempo para preferir a “precaridade” do actual governo. Como irá descobrir, este é mesmo precário!
A mim falta-me tempo para a otariedade do liberalismo.
Uma lição muito divertida e eficaz. Creio que não mais me esquecerei da regra. Obrigado.
Os tugas são muito criativos. Sai bacorada!