A palavra saudade está umbilicalmente associada à nossa idiossincrasia. Saudade é, em duas palavras, a presença da ausência. Ou a memória do coração. Ou o “ser depois de ter sido“. A saudade tem uma segunda semântica por baixo da primeira. Não é exactamente o mesmo que nostalgia, vocábulo que não consegue transmitir tudo o que a saudade comporta em doses multifacetadas de perda, falta, distância e afecto envoltos no tempo que transporta o passado ao presente. A saudade é mais memorialista do que nostalgia. E também mais saudável.
Ter saudade pela ausência é a mais forte presença do que significa a saudade.
A saudade não é solidão. É a companhia da presença ausente. Ou a presença da companhia ausente.
A saudade alimenta-se de um tempo que já foi, mas que se quer que continue a ser. Por isso, a saudade é uma afectuosa comunhão com a ausência, por vezes suave, outras vezes tumultuosa. Luís de Camões deixou-a entrever no seu bem conhecido oxímoro, “um contentamento descontente”.
Há também a saudade de nós mesmos. Do tempo que já aconteceu. Ou daquilo que nunca foi. Ou do que queremos que seja e a que, paradoxalmente, poderíamos chamar a saudade do futuro, na casa da esperança e da utopia. Como Mário de Sá Carneiro nos confidenciou:
Perdi-me dentro de mim
Porque eu era um labirinto
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.
Há dias, dei comigo a matutar sobre uma expressão que usamos amiúde: “matar saudades”. Um quase ilogismo. Ou, talvez melhor, uma involução que começa em morrer de saudades e acaba (nem sempre) em matá-las. Em que ficamos? Matamos as saudades em legítima defesa? Ou matamos o tempo que medeia entre a saudade que nos mata e a saudade que matamos? Ou, de outro modo, será que matamos as saudades ou que elas apenas morrem? Ou, simplesmente, deixam de existir?
Dizemos “matar saudades”, mas não dizemos “matar a saudade”. Porque esta – no singular – faz parte da nossa essência, ainda que em doses diferentes dentro de nós e de cada um. Ela morre sempre com a vida terrena. Ou porque se crê no reencontro luminoso depois da morte, onde a saudade já não fará sentido. Ou, não se acreditando na vida para além do que podemos conhecer, ela nos segue no fim final. No primeiro caso, será um eterno não fim já sem saudade? E no segundo caso, será a não saudade já depois de um definitivo fim? Em qualquer caso, escrever numa lápide funerária “eterna saudade” não faz sentido. O tempo da saudade, no caminho misterioso da vida, não pode ser uma eternidade.
Gosto das suas elucubrações e dos seus efeitos, sobretudo quando nos distraem dos dias tortuosos de umas eleições sem resultado plausível no futuro imediato. A saudade é um tema forte da idiossincrasia lusa, sem duvida um sinal exterior da personalidade de um povo. Mas ela é também um activo que nos defende da ausência, um pouco em desacordo com “a presença da ausência” que, essa, é sentida como uma falta, enquanto um activo impõe-na como presença exemplar; ela existe em nós porque influencia o nosso comportamento; é um gene que entra na composição da nossa personalidade. Já na interpretação da “saudade eterna”, sinto que a sua interpretação parte do princípio que o eterno se conjuga como “universal”, muito menos do que como circunscrito à vida de cada um, de cada individuo e nesse sentido, creio que a eternidade não pode ser outra coisa senão a consciência que temos dela e, assim, ela tem o valor de uma vida; a não ser que acreditemos no além…o que é uma outra forma de saudade, que não resulta de uma presença do passado, mas sim de um projecto do desejo, talvez saudades do futuro (outro oximoro). Da morte, retenho a ideia freudiana do gozo repetido, é nesse sentido que a frase “matar saudades” nos dá a ideia de “consumir saudades”, fazê-mo-lo para repetirmos os momentos de gozo e de morte consequente, já que tudo tem um principio e um fim, mas convenhamos que “consumir saudades” perderia a aura poética de “matar saudades”, é aqui que a saudade retém a sua força semântica, “a primeira”.
Obrigado pela sua leitura e excelente reflexão. Trata-se de um tema que me atrai, onde obviamente cada um tem a sua interpretação. No meu caso, não escondo que tem subjacente a posição de um católico que quer acreditar na vida para além da morte, com todas as dúvidas que pode imaginar…
Vou dizer qualquer coisa sem ter lido o artigo, pois na internet não tenho acesso.
As saudades não podem ser eternas, quando muito, vitalícias.
Daí não perceber o que são “eternas saudades”.
Concordo, como poderá ver no meu texto que aqui reproduzo:
A palavra saudade está umbilicalmente associada à nossa idiossincrasia. Saudade é, em duas palavras, a presença da ausência. Ou a memória do coração. Ou o “ser depois de ter sido”. A saudade tem uma segunda semântica por baixo da primeira. Não é exactamente o mesmo que nostalgia, vocábulo que não consegue transmitir tudo o que a saudade comporta em doses multifacetadas de perda, falta, distância e afecto envoltos no tempo que transporta o passado ao presente. A saudade é mais memorialista do que nostalgia. E também mais saudável.
Ter saudade pela ausência é a mais forte presença do que significa a saudade.
A saudade não é solidão. É a companhia da presença ausente. Ou a presença da companhia ausente.
A saudade alimenta-se de um tempo que já foi, mas que se quer que continue a ser. Por isso, a saudade é uma afectuosa comunhão com a ausência, por vezes suave, outras vezes tumultuosa. Luís de Camões deixou-a entrever no seu bem conhecido oxímoro, “um contentamento descontente”.
Há também a saudade de nós mesmos. Do tempo que já aconteceu. Ou daquilo que nunca foi. Ou do que queremos que seja e a que, paradoxalmente, poderíamos chamar a saudade do futuro, na casa da esperança e da utopia. Como Mário de Sá Carneiro nos confidenciou:
Perdi-me dentro de mim
Porque eu era um labirinto
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.
Há dias, dei comigo a matutar sobre uma expressão que usamos amiúde: “matar saudades”. Um quase ilogismo. Ou, talvez melhor, uma involução que começa em morrer de saudades e acaba (nem sempre) em matá-las. Em que ficamos? Matamos as saudades em legítima defesa? Ou matamos o tempo que medeia entre a saudade que nos mata e a saudade que matamos? Ou, de outro modo, será que matamos as saudades ou que elas apenas morrem? Ou, simplesmente, deixam de existir?
Dizemos “matar saudades”, mas não dizemos “matar a saudade”. Porque esta — no singular — faz parte da nossa essência, ainda que em doses diferentes dentro de nós e de cada um. Ela morre sempre com a vida terrena. Ou porque se crê no reencontro luminoso depois da morte, onde a saudade já não fará sentido. Ou, não se acreditando na vida para além do que podemos conhecer, ela nos segue no fim final. No primeiro caso, será um eterno não fim já sem saudade? E no segundo caso, será a não saudade já depois de um definitivo fim? Em qualquer caso, escrever numa lápide funerária “eterna saudade” não faz sentido. O tempo da saudade, no caminho misterioso da vida, não pode ser uma eternidade.