Tudo Menos Economia

Por

Bagão Félix, Francisco Louçã e Ricardo Cabral

Ricardo Cabral

4 de Abril de 2015, 12:29

Por

Como multiplicar dinheiro 15 vezes

O plano Juncker – “Um plano de investimento para a Europa” –, que pretende promover 315 mil milhões de euros de investimento em projectos “estruturantes” e “prioritários” na União Europeia, entre 2015 e 2017, e dessa forma promover o crescimento económico da União Europeia, dá azo a algum cepticismo mesmo entre os seus defensores.

Isto porque para promover esse investimento, o ponto de partida são 21 mil milhões de garantias públicas da Comissão Europeia e do Banco Europeu de Investimentos (BEI). Isto é, não se trata de um orçamento suplementar público para despesa com investimento, mas sim garantias públicas, que são utilizadas para obter financiamento nos mercados e de investidores num montante total que se espera chegue a 315 mil milhões de euros. Se os investimentos tiverem resultados abaixo dos esperados essas garantias públicas seriam accionadas pelos credores que financiaram os projectos.

Tal nível de alavancagem suscita muitas dúvidas. Como é possível multiplicar 21 mil milhões de euros de garantias por 15 para chegar aos famosos 315 mil milhões de euros (315=21×15) de investimento?

Acresce que o investimento é para ser utilizado no âmbito de parcerias público privadas (que têm a reputação que se conhece em Portugal, Espanha, Grécia e mesmo em Inglaterra).

Há quem argumente ainda que o plano contabiliza investimento que iria ser realizado mesmo sem o plano, i.e., que existe um efeito de “crowding out”. O investimento líquido promovido pelo plano Europeu seria nesse caso inferior aos 315 mil milhões de euros.

Na realidade, o plano cria uma espécie de banco de fomento – o Fundo Europeu para Investimentos Estratégicos, em português “FEIE” –, integrado no grupo BEI, cuja missão será financiar projectos de investimentos em certas áreas definidas pela Comissão Europeia (CE) presidida actualmente por Jean-Claude Juncker.

Como não há capital para investir, não se pode chamar ao FEIE um banco de fomento, pois para ser banco seria necessário capital. Mas, é porque na realidade de um banco de fomento se trata, que será possível multiplicar o capital (as garantias) por 15 vezes. Ou seja, as expectativas da Comissão de que será possível obter alavancagens financeiras de 15 vezes afigura-se plausível, ao contrário do argumentado por muitos. Este é, aliás, o negócio de qualquer banco: o capital (do accionista) do banco é utilizado como garantia para pedir emprestado e depois emprestar ou aplicar montantes 15 ou mais vezes superiores ao capital do banco (alguns grandes bancos internacionais chegaram a ter rácios, num passado recente, que se aproximavam das 50 vezes).

Na proposta da Comissão, as áreas prioritárias de investimento são definidas de forma genérica o que fragiliza a proposta. Impunha-se que a CE tivesse investido mais recursos a especificar de forma mais aprofundada os tipos de investimento que se pretendem promover para alcançar os objectivos definidos no plano.

Por outro lado, de acordo com informação disponível, os projectos submetidos a financiamento que utilizem as garantias públicas do FEIE serão avaliados por 8 peritos e um director da Comissão de Investimento, que estarão a trabalhar para o FEIE a tempo parcial. O financiamento concedido seria posteriormente gerido pelos funcionários do BEI, como se de crédito do BEI se tratasse. Esta estrutura de gestão e análise para um nível de investimento desta dimensão afigura-se insuficiente. Na proposta da CE, é dada mais importância à concessão e gestão do crédito do que à análise da qualidade e da relevância do investimento para a promoção do crescimento da União Europeia.

Ou seja, este plano de investimento europeu aparenta ter, de momento, várias deficiências.

Do lado das virtudes, um aspecto interessante do plano Juncker é que, ao contrário de bancos tradicionais, que devido à alavancagem utilizada quase só emprestam (ou só deveriam emprestar) dívida sénior recebendo em troca garantias (e.g., hipotecas sobre imóveis), o FEIE irá sobretudo emprestar dívida subordinada[1] ou mesmo realizar investimentos accionistas nos projectos de investimento em que resolver participar/financiar. O FEIE parece querer substituir os “animal spirits” dos empresários europeus, arriscando muito mais do que os tradicionais bancos multilaterais internacionais.

Em contraste, por exemplo, o BEI é avesso ao risco e quando o projecto corre mal, utiliza as garantias e até o seu poder político e económico para assegurar que sai do projecto sem perdas, mesmo que tenha financiado um mau projecto. Que o digam os bancos portugueses que eram parceiros dos consórcios que financiaram algumas das SCUTs e PPPs em Portugal que, no momento mais agudo da crise, foram obrigados pelo BEI a disponibilizar cauções adicionais na forma de dinheiro. Em Espanha, quando o governo regional da Andaluzia procurou renegociar um contrato de uma PPP rodoviária, que considerava altamente prejudicial ao erário público, recebeu não só telefonemas de bancos de investimento privados (que o governo não atendeu), mas também, e mais importante, um telefonema do BEI (que teve de atender).

Portanto, afigura-se positivo o facto de que se o FEIE financiar um mau projecto não será, em teoria, capaz de sair do projecto sem sofrer perdas. Já existem demasiados bancos multilaterais internacionais (FMI, Banco Mundial, BEI, BERD, etc.) que, por piores que sejam as suas decisões de financiamento e os projectos financiados, têm o seu retorno e a sua “vidinha” sempre garantida…

Mas há aspectos que se afiguram menos positivos. Para que o modelo funcione, credores e accionistas devem perder quando os projectos correm mal. E para isso ocorrer parece que têm de ser empresas a contrair empréstimos para realizar o investimento. Isso significa que terão de ser quase sempre os privados a promover o investimento e, consequentemente, que se recorre a dinheiro público (garantias públicas) para promover investimento privado. Porque, se for o sector empresarial do estado, o estado, governos regionais, ou municípios a promoverem o investimento, haveria sempre a tendência para reequilibrar financeiramente a empresa pública e, por conseguinte, o investimento, com injecções de dinheiros públicos, para evitar a falência da empresa. Nesse caso, corre-se pois o risco que maus projectos com parceiros públicos sejam financiados pelo erário público e não pelo FEIE.

Enfim o FEIE parece ser a arte do possível – sem dinheiro, criar uma espécie de banco de fomento, para promover investimento europeu. Há muito diabo nos detalhes, detalhes esses que precisam ainda de ser escritos. A ver vamos se resulta algo de bom. As condições de partida poderão ser as possíveis… mas que não são as ideais, não são!

 

 

 

 

 

[1] Se o projecto não obtiver os retornos esperados, a dívida sénior é ressarcida em primeiro lugar e a dívida subordinada é paga só se sobrar dinheiro para o fazer (ligeiramente mais prioritária do que os accionistas, os quais são os últimos na lista a ser ressarcidos).

Comentários

  1. Parabens pelo seu artigo sobre o plano Junker que, tendo em conta a sua notoriedade, merecia muito mais discussao e escrutinio publico do que tem tido.
    Sobre o modelo dos bancos multilaterais: nao é seguramente isento de falhas e de critica mas esses bancos actuam num quadro de economia de mercado e os promotores de projectos de investimento (publicos e privados) só recorrem a eles se virem nisso alguma vantagem; e parece que continua a haver espaço para eles – veja-se a recente iniciativa da China de promover o Banco Asiatico para Investimento em Infraestruturas (que será concorrente do ‘velho’ Asian Development Bank) em que varios paises Europeus ja declararam interesse em participar, incluindo Portugal ao que parece, a contragosto dos Estados Unidos. Por outro lado, note que, quer o BEI quer sobretudo o BERD, têm carteiras significativas de emprestimos em risco, sobretudo – mas nao só – de ‘project finance’ no caso do BEI e tambem de capital-risco e capital-semente no caso do BERD – cujo mandato original, de resto, era o de promover o desenvolvimento do sector privado nas economias ditas ‘em transiçao’ dos ex-paises comunistas; o BERD durante alguns anos apresentou prejuizos devido às perdas incurridas com emprestimos e participaçoes accionistas.
    Quanto ao plano Junker : assenta de facto em modelos de engenharia financeira algo complexa para a realizaçao dos projetos, e julgo que, em parte por isso, é olhado por muitos com algum cepticismo, mas sao modelos com que a generalidade da banca e empresas estao hoje em dia familiarizados, e pode facilitar de facto a implementaçao de variados projectos e investimentos que, de outra forma, nao seriam possivelmente realizados (parece que a lista de projectos potenciais já é grande). O plano Junker nao vai ser seguramente a varinha de condao que vai tirar a Europa do marasmo económico e das dificuldades de criar empregos, mas pode dar alguma ajuda e, só por isso, ha que lhe dar o beneficio da duvida.

    1. Muito obrigado pelo seu comentário e informação adicional sobre os riscos já assumidos pelo BEI e pelo BERD.
      Concordo que o plano Juncker deverá potenciar o investimento na Europa e nesse sentido é positivo, merecendo o benefício da dúvida, tanto mais que foi desenhado enfrentando vários constrangimentos (e.g., o Conselho Europeu não atribuiu nenhum orçamento adicional para este plano). O modelo pode ser um “proof of concept” e se funcionar, poderá ser disponibilizado mais capital para a iniciativa.
      Mas gostaria de ter visto o projecto nascer com mais condições para ter sucesso (algum capital próprio e sobretudo mais recursos para analisar e acompanhar projectos de investimento).

    2. Vai ser um desafio de monta tendo em conta em especial o objectivo de investir os 315 mil milhoes no prazo de tres anos. Vai depender muito do grau de maturaçao dos projectos em pipeline. O BEI vai beneficiar de estruturas ja existentes bem como da experiencia do FEI (Fundo Europeu de Investimento), incluindo no dominio das garantias para o financiamento das Redes Trans-europeias. Veremos se a banca europeia e as empresas privadas correspondem com o mesmo apetite com que no passado investiram em projectos similares de infraestrutura.

  2. É a chamada fuga para a frente que é desta que o euro resulta.
    Felizmente, pode ser que seja o seu fim definitivo.

  3. é pá
    o BEI (Banco Europeu de Investimento) é uma instituição .. isso faz toda a diferença .. o que faz falta é chamar a malta …

  4. Só há duas maneiras de criar riqueza: investir em tecnologia e criar indústrias. Que indústrias a europa possui? Tudo o que compramos vem com o selo “feito na china”, “feito em taiwan”, etc. Vai ser difícil a europa crescer com pessoas iletradas tecnologicamente no comando.

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