Ricardo Paes Mamede (RPM), um dos economistas mais destacados da sua geração, tem-se dedicado persistentemente a popularizar uma proposta de governação económica com base no que chamou de “triângulo das impossibilidades da política orçamental”. Em poucas palavras, a narrativa é esta: se se cumprirem as metas (improváveis) fixadas pelo governo, ainda assim “o Estado português terá de escolher duas das três seguintes opções: (1) cumprir o Tratado Orçamental; (2) pagar a dívida pública nos termos actualmente previstos; (3) preservar um Estado Social típico de uma sociedade desenvolvida”. Presos neste triângulo das Bermudas, temos de escolher.
A inviabilidade da actual política de austeridade
O autor assinala que a estratégia do governo é sacrificar 3 (o Estado Social) em prol de 1 e 2 (o Tratado Orçamental e a dívida) mas que, ainda assim, mesmo esta escolha pode ser insustentável. Para tanto basta que não se cumpra o crescimento nominal do PIB (3,6% a partir de 2017) e que não se alcance o afortunado saldo primário entre 1,8% e 4,2% nos anos próximos. Como RPM demonstra, nem Portugal nem a generalidade dos outros países europeus conseguiram alcançar no passado níveis sustentados de crescimento desta ordem. Nesse caso de fracasso, ou se os juros voltarem a subir, “o Estado português poderia escolher apenas uma das três opções”, ou seja, a direita (ou quem for o “mau governo”) teria de renegociar a dívida ou de incumprir o Tratado, supondo naturalmente que mantivesse o objectivo condenável de desagregar o Estado Social. Esta denúncia do objectivo da política do governo Passos Coelho e das autoridades europeias, bem como da inviabilidade desta orientação, é sustentada e convincente.
Com base nesta constatação, RPM interpela energicamente todos os responsáveis políticos e candidatos futuros: “Seria bom que quem se apresenta a eleições fosse convidado a declarar publicamente qual das escolhas faria em cada um dos cenários. Só para sabermos com que contamos”. Numa conferência em Loulé, voltou a insistir: “Seria importante que quem pretende governar esclareça previamente a sua posição face a este ‘triângulo das impossibilidades orçamentais’ e às consequências das escolhas que dele derivam”. É convincente e só posso subscrever esta crítica à política que tem sido seguida, tal como esta exigência de clareza sobre as alternativas.
O triângulo das impossibilidades e os dois lados das possibilidades
Ora, a proposta pode deve ser lida igualmente como uma tentativa de solução dos impasses actuais em Portugal. O autor torna-o muito evidente e escreve que “a mensagem fundamental é simples: sem uma reestruturação da dívida e/ou o questionamento das regras orçamentais vigentes, dificilmente se poderá preservar os elementos essenciais de um Estado Social em Portugal”. Em bom português, o que isto apresenta não é somente uma denúncia de impossibilidades, é também uma sugestão de políticas possíveis: o “bom governo” poderá defender o Estado Social reestruturando a dívida (mas cumprindo o Tratado Orçamental) ou alterando o Tratado Orçamental (mas pagando a dívida “nas condições actuais”). E mais uma vez, o autor insiste: “Quem defende o contrário deveria começar por mostrar as contas que sustentam a sua conclusão”.
Manuel Esteves, no Jornal de Negócios, interpretou esta narrativa como uma proposta dirigida ao futuro governo. Não comentarei agora essa leitura sobre estratégia política. É assunto que exige mais debate e, aqui, quero somente discutir o aspecto estritamente económico do “triângulo das impossibilidades” e os caminhos de possibilidades alternativas que ele nos desenha. Porque, se concordo com a leitura de RPM sobre a impossibilidade da estratégia do governo e da UE, já me afasto desta análise quando ela nos apresenta estes dois caminhos alternativos, porque não vejo como qualquer deles se possa basear em “contas que sustentem a sua conclusão”.
Antes das contas, para que contam elas?
Antes de proceder à análise das duas possibilidades do “governo bom”, duas precisões.
Salvaguardar o Estado Social é um objectivo essencial. De acordo. Mas convém precisar de que estamos a falar. Para evitar ambiguidades, assumo que a salvaguarda do Estado Social significa recuperar e desenvolver a capacidade de prestação de serviços mínimos essenciais da democracia: cuidados de saúde, protecção contra a pobreza e a exclusão, segurança social adequada e escola pública. Nenhum desses objectivos é compatível com as políticas orçamentais da troika ou dos PEC anteriores. É preciso um investimento reforçado para contratar mais médicos e enfermeiros, é preciso aumentar a dotação para o RSI e CSI, é preciso melhorar as pensões mais baixas, é preciso integrar os professores contratados. Ficar na mesma não é opção depois de anos de cortes e austeridade. É preciso gastar mais e melhor. O Orçamento do Estado Social será mais caro do que o actual.
A segunda precisão é esta. Porque é preciso reverter as políticas do “mau governo”, isso implica escolhas duras. Num livro de 2013, “A Crise, A Troika e as Alternativas Urgentes” (Lisboa, Tinta da China), RPM e outros autores escreviam que essa defesa do Estado Social implicava conjugadamente a “revogação do Tratado Orçamental” (p.183) e “a viabilização de uma política orçamental virada para o crescimento impõe ainda uma reestruturação da dívida” (p.186). Mais ainda, “uma estratégia que imponha uma rutura com a política de austeridade e uma reestruturação da dívida não pode deixar de considerar a saída do euro como um desfecho possível” (p.188). Continuo a considerar esta agenda realista.
Contas que sustentem a sua conclusão: o caso do cumpridor do Tratado Orçamental que reestrutura a dívida
Analisemos então a primeira hipótese de alternativa para o “bom governo” no triângulo orçamental: seria a defesa do Estado Social e o cumprimento do Tratado Orçamental, mas havendo reestruturação da dívida. Na minha opinião, não é possível conseguir esse programa de objectivos.
De facto, no detalhado relatório técnico de uma proposta de reestruturação da dívida, que publiquei recentemente com Ricardo Cabral, Eugénia Pires e Pedro Nuno Santos, a nossa conclusão, com contas feitas, é notavelmente contrária a esta sugestão de RPM: uma gigantesca reestruturação, que implica perdas em valor presente da ordem dos 250 mil milhões de euros para os credores da dívida portuguesa, consegue alcançar a meta definida (reduzir a dívida externa líquida de 103% do PIB para 24%) mas não cumpre o objectivo do Tratado Orçamental (a dívida directa do Estado fica em valor actual em 83% do PIB, já considerando a recapitalização da Segurança Social e de outros fundos públicos, e só é abatida a partir de 2039). Ou seja, em vinte anos não se passa a dívida soberana a 60%.
Admitimos naturalmente que possa haver outros modelos concretos de reestruturação, e melhores do que o nosso, ou que sigam outra metodologia e definam outras metas. Poder-se-ia abater o valor actual da dívida soberana com um corte imediato no valor do capital e uma redução dos juros. Mas esse plano não foi apresentado até hoje e, se se fizer as contas, será igualmente um programa duro sem garantir no futuro as condições do Tratado Orçamental – simplesmente, porque elas não são cumpríveis.
Se alguém apresentar um outro programa para a reestruturação da dívida que demonstrar que é simultaneamente possível assegurar o cumprimento do Tratado, com contas feitas, para assim proteger o Estado Social, isso seria para mim uma revelação e estarei muito atento a ela. Até lá, o que não aparece não existe e o triângulo resolve-se de modo claro: para defender o investimento, a segurança social, a saúde, a educação, ou seja, o Estado Social, é preciso simultaneamente reestruturar a dívida e recusar o Tratado.
O caso do incumpridor do Tratado, mas pagador da dívida
Mas temos ainda a segunda hipótese, a do “bom governo” que, defendendo o Estado Social e desistindo de reestruturar a dívida, se batesse (e conseguisse) alterar as condições do Tratado Orçamental. Mais uma vez, faltam as contas para essa quadratura do círculo mas não é difícil antecipar o resultado.
Imaginemos, no entanto, que Merkel, a Comissão Europeia, o Conselho Europeu e todo o mundo aceita que o Tratado não se cumpra (ou pelo menos não se cumpra para esse afortunado país governado por tão diligente governo porque, se a Europa toda não o cumprir, o euro realmente existente dificilmente sobrevive). Ou seja, imaginemos que nos concedem galantemente que possa haver défices maiores (sem convergência imediata para défice estrutural quase nulo) e prazos alargados de redução de dívida (sem o colete de forças dos vinte anos). A pergunta é: esse relaxamento reduziria a austeridade e protegeria o Estado Social, e permitiria cumprir as promessas desse novel governo? Escassamente.
Feitas as contas, a dívida a pagar determinaria sempre a política orçamental (e poria em causa o Estado Social), tanto pelo efeito de stock (amortizar cem mil milhões em cinco anos) como de fluxo (pagar perto de 5% do PIB em juros em cada ano). O refinanciamento desses compromissos no mercado, que determina as taxas de juro e os riscos, avalia os resultados orçamentais e impõe o programa de mudança do regime (alteração das condições do mercado do trabalho, privatização da saúde, etc.) significaria sempre que Portugal continuaria a ser um protectorado … e teria que ceder o Estado Social, porque é isso que o protectorado impõe a Portugal.
Ou seja, com contas que sustentam esta opinião, não é viável uma política que tenha como objectivo defender o Estado Social e cumprir a dívida, ainda que com uma generosa e improvável revisão do Tratado. Mesmo fazendo de conta que o Tratado não existe, a dívida externa actual e o Estado Social são incompatíveis.
Concluo por isso que os dois caminhos de possibilidades, os que evitariam o Triângulo das Bermudas das impossibilidades orçamentais, são um naufrágio. Quando os estudamos, só encontramos a mesma conclusão: para defender o Estado Social, é preciso reestruturar a dívida e também recusar o Tratado Orçamental. Claro, “quem defende o contrário deveria começar por mostrar as contas que sustentam a sua conclusão”.
Mas estou mais uma vez de acordo com RPM: “Seria bom que quem se apresenta a eleições fosse convidado a declarar publicamente qual das escolhas faria em cada um dos cenários. Só para sabermos com que contamos”. Só para sabermos com que contamos.
Obviamente, nem o TO nem a diminuição do dívida são sequer possíveis só por si, não só para Portugal, mas para muitos países europeus, principalmente devido à completa estagnação da economia europeia. É como diz, adeus euro, a bem ou a mal.
O Tratado Orçamental é como o Tribunal de Aveiro – é a nossa sentença
É a expressão de uma condenação. Tem razão, Tiago Amável.
Ai tantos malabarismos: a terceira via, “(3) preservar um Estado Social típico de uma sociedade desenvolvida” debate-se já com a quebra do Contrato Social reflectida pela emigração e pela baixa natalidade. Se continuarmos com estas conversas por muito mais tempo nem a solução honesta que é a da saída do Euro salvará essa terceira via. O Sr diz ” “uma estratégia que imponha uma rutura com a política de austeridade e uma reestruturação da dívida não pode deixar de considerar a saída do euro como um desfecho possível” (p.188) “. Desfecho possível ? É um desfecho urgente ! O tempo não está claramente do nosso lado. Haja coragem.
Será verdade que o Louçã escreveu isto: “serviços mínimos essenciais da democracia: cuidados de saúde, protecção contra a pobreza e a exclusão, segurança social adequada e escola pública”. Só isto?
E quanto à necessidade de “contratar mais médicos e enfermeiros… e integrar os professores contratados”, não vejo o que isto tem a ver com os serviços mínimos. Não temos já médicos que cheguem, por exemplo? Porque não defender que se deve é tornar mais eficientes as suas funções e despedir (sim!) aqueles que apenas usam o sistema de saúde para “sacar” clientes para a sua consulta privada (não, não é uma minoria insignificante!). Ou os professores que não têm jeito nenhum (nem qualificações, muitas vezes) para ensinar e que apenas são professores porque era (era!) uma profissão de rendimento certinho e garantido. Perguntar não ofende!
E talvez seja mesmo preciso contratar mais destes profissionais, acredito que sim. Mas que se seleccionem os melhores e se avaliem as suas prestações de forma justa mas consequente. Assim, será mais fácil assegurar os tais serviços mínimos.
Não, não temos médicos a mais. Temos médicos e enfermeiros a menos, e temos professores a menos. E temos técnicos tributários a menos. E temos protecção das florestas a menos. E temos reguladores bancários a menos.
Uma dúvida sobre a sustentabilidade da dívida externa na vossa proposta coletiva de reestruturação da dívida, acessível no link disponibilizado.
Na p. 22, antepenúltimo parágrafo, afirmam que a dívida externa bruta do país se tornaria sustentável com a dita proposta. Citam a literatura académica para indicar que o limiar de sustentabilidade da dívida externa bruta será de aproximadamente 40% do PNB.
Mas, de acordo com a tabela 3, p. 20 (cf. igualmente o parágrafo final do cap. 8, p. 61), após a reestruturação, a dívida externa bruta ficaria com um valor presente de 145% do PIB (e um valor facial de 193%)!
Então, face ao critério académico invocado, onde é que está a sustentabilidade?
Agradeço o seu pertinente comentário. A literatura académica baseia essas “rule-of-thumb” (regras simples) na análise de crises de balança de pagamentos e de dívida externa em décadas recentes, que ocorreram sobretudo em países subdesenvolvidos.
Nesses países subdesenvolvidos a dívida externa bruta era próxima da dívida externa líquida porque os residentes desses países não detinham muito activos no estrangeiro.
No caso português, e de outros países periféricos, o país está muito interligado com o resto do mundo (em particular com a zona euro). Assim os residentes nacionais tem activos (tipo dívida) no estrangeiro de 121% do PIB e dívida bruta de 224% do PIB. Ou seja, não faria sentido olhar só para a dívida bruta.
Rui, como o Ricardo Cabral indica, o critério é a dívida externa líquida, que passaria a ter valores sustentaveis.