Teatro Praga – Vinte anos são como dois dias

Terceira Idade/ A Tempestade

Terceira Idade/ A Tempestade

 

Para a Rita, a primeira Praga

A primeira vez que percebi que aquilo que iria fazer nos próximos anos era escrever sobre espectáculos – e já o fazia há quase dois anos mas nunca nada me pareceu tão claro – , foi enquanto escrevia sobre uma criação do Teatro Praga chamada Título, vivia eu num quarto no último andar de um prédio em Campo de Ourique arranjado à pressa, em fuga a uma relação que terminara mal. Estavam reunidas as condições para achar que a escrita era uma hipótese, mas como o quarto havia sido alugado a uma hipótese de escritora que se dividia entre o gato e a filha, rapidamente me deixei de utopias nas quais, de qualquer forma nunca acreditei, nem quando escrevia contos eróticos sob pseudónimo para uma revista feminina. O texto estava dividido em duas partes. Era, ao mesmo tempo, a minha própria ars poetica.

Isto para dizer – no dia em que o Teatro Praga faz 20 anos e inaugura uma nova casa, depois de quase dois de obras, para, como dizia o Pedro Penim este fim de semana à revista Sábado, devolver o muito que lhes deram – que se hoje já não escrevo regularmente (não sem algum alívio, confesso), o modo como penso e vejo e ajo sobre os espectáculos, as relações que estabeleço, os limites que imponho e as fronteiras que quebro, devem muito ao modo como o Teatro Praga me ensinou a ver espectáculos.

Escrevi sobre a companhia em blogs, sites, revistas especializadas e académicas, em jornais, programas de espectáculo e folhas de sala, em várias línguas e outras tantas vezes achando estar a inventar uma nova língua, só sobre eles. Mas várias vezes escrevi(-lhes) mensagens de telemóvel que mais tarde dariam outros textos. Fiz conferências – e uma, desastrosa, performática, no meio de um cenário de O Avarento ou a última festa -, participei em painés, dentro e fora de Portugal, organizei debates, provoquei encontros e convidei outros a escrever sobre uma companhia e adiei tanto a entrega de um texto sobre eles e os seus 15 anos que hoje celebram 20 e o texto está prometido mas nunca acabado. Precisamente porque a história não acabou. Não sei quantas vezes os entrevistei, a quantos dias de ensaios assisti, quantos autores descobri, quantas vezes os encontrei em teatros por todo o lado, quantos quilómetros fiz, de caracteres e de estrada, para testemunhar, contrapor, discutir, reflectir, rir, com o que anda(va)m a fazer.

Fui escrevendo os textos como se os espectáculos fossem uma obra sempre em aberto, criando relações entre eles, às vezes só minhas, coisas que eles próprios, que os tinham feito, não teriam visto ou então teria sido eu a perceber de outra forma. Relações que se criavam a partir de um desejo de partilha de uma memória colectiva, geracional, cúmplice mas nunca gémea. Às vezes, apenas a partir de uma só ideia, uma só frase, um quase nada que depois discutíamos durante horas, às vezes ainda a manhã não tinha chegado e outras tantas pela manhã dentro, sem dormir. Conversas de palavras atropeladas, cheias de memórias, de ideias dentro de ideias, como a Menina Júlia que havia dentro do Título, sem distinguir a ficção da realidade, ou onde começava a dramaturgia e acabava a realidade. Conversas a dois, a muitos, conversas que eram formas de pensar, e mudar, o discurso sobre o teatro e que era, afinal, e sempre, um discurso sobre um mundo visto a partir de uma Lisboa que não era nada, era só um palco onde estivemos sempre todos, a geração que de tanto esperar, terá sempre vinte anos ou, pelo menos, a energia que se tem aos vinte anos para se achar que se pode mudar tudo.

Vinte anos depois, quando participo nas evoluções da próxima criação da companhia, que os levará a sete capitais europeias ao longo de um ano naquele que se espera ser o salto internacional que há tantos anos já lhes deveriam ter dado, a minha história é também história por causa das histórias do Teatro Praga.

Tenho os meus espectáculos de eleição – como o Padam Padam, filho enjeitado que é como um enorme acidente em câmara lenta -, tenho outros com os quais, até hoje, não consigo lidar – como o Sobre a mesa a faca, bizarríssima obra negra à qual volto recorrentemente – e tenho outros que me parecem meus, de tanto os habitar, ou eles a mim, como o mais recente Tear Gas. O que discuti com progamadores, com editores, com detractores, o que defendi e o que critiquei, o que pus em causa e o que reavaliei, como se na expressão de um discurso coubesse a defesa de uma identidade, faz destes vinte anos um enorme texto ainda a ser escrito. O Teatro Praga inaugura uma nova casa tal como escrever sobre a companhia é estar, constantemente, a fazer obras, do mesmo modo que os chineses acreditam que deve ser a nossa relação com os espaços, sempre em movimento.

Por isso, da garagem no Poço do Bispo ao armazém do hospital do Miguel Bombarda e daí para Ponte Alto, em Modena; da bancada no palco do grande auditório da Culturgest às salas cheias de mais de 700 pessoas em Bobigny; do grande auditório do CCB à pequena sala em Armentières; da salinha da ZDB, em Lisboa, à Praça Dom João IV (e que só a Isabel Alves Costa lhes poderia ter proposto), no Porto; da viagem por Portugal com o Terceira Idade até ao outro Portugal que já não existe em Macau; do VHS enviado para Nitra, na Eslováquia, ao pdf distribuído numa reunião em Paris, para confirmar co-produtores; dos dourados do Teatro Nacional São João aos dourados reflectidos na piscina construída no palco do São Luiz; do Teatro Taborda, onde os vi pela primeira vez, ao Dona Maria II (e aos seus dourados, ostensivos mas já não como o eram em 2007), onde fiquei todos os dias; da cave desse mesmo Dona Maria II – num espectáculo que quase ninguém viu, provocado pelo António Lagarto, 5 estrelas e que é a explosão de uma geração – ao sótão do Théâtre de la Ville (e novamente à cave, onde enfiaram o Discotheater que tinha sido feito para o Picadeiro do Príncipe Real); da sala de ensaios do Maria Matos a uma tenda nos jardins da Gulbenkian; do frio de Rennes à estufa de Montemor-o-Novo; do caril musicado no Demo às marchas centenárias da Tropa-Fandanga quantos espectáculos foram, quantas horas foram, quantas ideias foram, quanto foi tudo aquilo que ficou pelo caminho e mais o que se fez para além do que se estava a fazer?

Vinte anos são dois dias porque demora sempre tudo muito tempo no país que escolhemos mudar. Mas dois dias podem valer por vinte anos quando ainda há tanto por fazer. O Teatro Praga faz vinte anos porque todos fazemos vinte anos. Sempre.

 

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