Os Possessos – II, A Mentira: Jogos de palco e de poder

II – A Mentira, criação do novíssimo grupo Os Possessos, encenada por João Pedro Mamede  a partir de textos de Agota Kristof, olha para um elenco e constrói, a partir da sua diversidade (e até das suas fragilidades) uma hipótese de cidade. É talvez o gesto mais surpreendente de uma encenação que tira partido do colectivo, das fissuras criadas a partir das desilusões provocadas pelo outro, e da ilusão que o desejo ou o sentimento de pertença (a um espaço, a alguém, a um tempo) podem criar. Sendo um colectivo que contribui, perversamente, para a ideia de alienação e paranóia (aqui aproveitadas para inventariar as várias faces da ficção), é um espectáculo liderado por um actor em estado de graça (João Vicente), que se apaga quando o texto lhe pede sem nunca deixar de vincar o modo como o corpo de um actor pode ser a metáfora mais próxima que existe de um princípio de identidade. E, sabendo driblar as várias ambiguidades dramatúrgicas, é um espectáculo que aproveita as evidentes cumplicidades dentro do elenco para nos mergulhar no desespero e na solidão individuais.

É também um modo de olhar para um colectivo e perguntar que poder pode ele ter face à necessidade de espelhar uma sociedade. Pode uma massa ser o reflexo de outra massa? Pode um indivíduo ser a hipótese solitária para esse colectivo? A encenação gere melhor do que a dramaturgia algumas das dúvidas que os textos de Agota Kristof levanta, nomeadamente por considerar que o palco onde a acção se passa é, a um primeiro nível, aquele que vemos – composto de uma amalgama de cadeiras e caixotes estranhamente concentrados -; aquele que pressentimos, e onde os diferentes planos de acção concorrem para alterar as diferentes estratégias de cada uma das personagens; e aquele ao qual não acedemos, precisamente o mais interessante, as cabeças de Claus e Lucas, os gémeos interpretados por João Vicente.

O que a encenação faz é, precisamente, brincar com a ambiguidade de planos e sujeitar os actores às estratégias das suas personagens, potenciando assim o que nos permanece invisível.  Há um escritor (Nuno Gonçalo Rodrigues), a quem não chamam senão pela profissão (mas que se chama Victor), que nos ilude, mais do que conduz, nesta paródia temporal. Da história que vai escrevendo nunca saberemos se é aquela que nos está a ser contada pelas personagens ou pelos actores que as vivem. Desconfiamos apenas das suas boas intenções, como desconfiamos da lógica que o espectáculo pretende apresentar. O que é relevante é, precisamente, o equilíbrio entre a falsidade e resistência, como se uma e outra fossem interdependentes.

Do mesmo modo, as diferentes situações que vão atravessando a narrativa principal ensaiam modos de fazer explodir o desejo de ordem procurado pelos gémeos. Se por um ou pelos dois não sabemos. Sabemos apenas que do duelo entre texto e acção – que é o mesmo que dizer entre tempo e corpo – sobrará muito pouco. Talvez seja essa a metáfora escondida nos textos de Agota Kristof e talvez seja essa, afinal, a chave que permite olhar para este espectáculo e dizer que devemos (querer) esperar mais de um colectivo que não tem receio de experimentar as dificuldades inerentes à dúplice condição do teatro: inventar uma realidade para tornar ainda mais real aquilo que espelha.

 

II – A Mentira

Teatro da Politécnica, 27 Março a 18 Abril 2015

Criação Os Possessos
Com Ana Amaral, André Pardal, Catarina Rôlo Salgueiro, Francis Seleck, Guilherme Gomes, João Vicente, Marco Mendonça, Maria Jorge, Nuno Gonçalo Rodrigues e Teresa Coutinho
Texto e encenação | João Pedro Mamede
Música Original l Daniel Carvalho
Cenografia | Angela Dos Santos Rocha
Figurinos | Gonçalo Quirino
Luz | Francis Seleck
Colaboração | Frederico Serpa, Mia Tomé e Rafael Gomes
Fotografia l Alípio Padilha

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