É uma emoção profunda a morte do Manoel de Oliveira. É, afinal, o dia pelo qual todos esperávamos e o dia que todos queríamos que nunca chegasse. Há uma espécie de paralização do próprio corpo, uma espécie de pausa que demora a reconhecer a evidência. Morreu? Mas como?
Havia uma anedota na redacção do PÚBLICO que era, ao mesmo tempo, um pesadelo. A morte do Oliveira num domingo à tarde, numa redacção vazia. E de cada vez que eles estreava um filme, dava uma entrevista ou recebia um prémio, suspirávamos de alívio. Não tinha sido hoje. Ninguém queria estar sozinho na redacção no dia em que morresse o Manoel de Oliveira.
Toda a gente sabe, mesmo que queira acreditar ser um mito, que há obituários prontos. É prática normal e todos já tivemos que ligar para alguém a pedir depoimentos sobre alguém que ainda não morreu. Mas o obituário do Oliveira foi sendo actualizado vezes sem conta até que deixou de o ser, porque ele simplesmente tinha deixado de morrer. Oliveira viveria e, provavelmente, seríamos nós a morrer antes dele. E, provavelmente, o nosso obituário seria um plano de uma mesa de jantar onde os corpos mudos olhavam ciosos para a alma uns dos outros.
Na verdade, a morte de Oliveira é o mais longo obituário por escrever porque implica uma reflexão sobre o que significa o próprio acto de viver. Viver significará escolher. E escolher foi, para Oliveira, um modo de resistir ao país que o rejeitou, ao país que o humilhou, ao país que nunca soube acolhê-lo porque, de cada vez que se escarnecia o seu cinema, recusando o conteúdo para falar da forma, se tornavam mais claras as razões das suas escolhas. Mostrar, expor, perguntar, querer ver, sobretudo.
O cinema de Oliveira quis ver por dentro do próprio cinema os mecanismos artificiosos da linguagem, do corpo e do pensamento. Quis ver, afinal, como se podia mostrar o reverso da alma humana, escondida em pudores, em regras e em formalismos que não eram senão modos de defesa do medo que nos causava.
Um cinema de medo, fantasmagórico, habitado por corpos que eram projecções e sombras. Imagens que eram, afinal, descrições e palavras que tinham chegado – ou ficado – afinal, no lugar das acções.
Um cinema de tempo, que se demorava a explorar a deformação da própria imagem, como se acreditasse ver para lá do reflexo. E um cinema que era, sobretudo, um cinema que perguntava para que serve a imagem senão para escrever.
A morte de Oliveira não é a morte do cinema e também não é a morte de mais nada senão a morte de uma criatura maior que a própria morte. As reacções ao seu desaparecimento – e talvez aqui a expressão de desaparecimento seja ainda mais justa que simples apagamento – mostram o quão fundamental é a herança que nos deixa. A morte de Oliveira é, afinal, a morte de uma verticalidade, de uma resiliência, de uma excepção que não é repetível e, por isso, não é banal.
Se morrer implica deixar de estar presente, então a morte de Oliveira não é uma morte absoluta, é apenas uma morte física. Olhando para a sua obra, para o país inventado que fixou e para o país que construiu a partir da metáfora e do poder simbólico da palavra, o que fica são esboços de uma realidade que nos ultrapassa. Uma morte que nos deixa como testamento a obrigação de ler a história de um país enquadrada pela dureza dos seus planos, que sedutoramente manipulavam o olhar e o direccionavam para pontos de fuga que eram, afinal, o lugar de onde os víamos.
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[excerto de Lisbon Story, de Wim Wenders, 1994]