Cyborg Sunday, a estranha surpresa que é a nova criação de Dinis Machado

Cyborg Sunday, de Dinis Machado Cyborg Sunday, de Dinis Machado, é uma surpreendente revelação entre o teatro e a dança onde a ideia de comunidade surge como possibilidade de reconstrução do gesto íntimo.

Apresentada em estreia nacional, a convite do Núcleo de Experimentação Coreográfica, no âmbito do programa O Rivoli já dança, no Porto, antecipa a apresentação em Fevereiro da sua versão original, em Estocolmo, desenvolvida ao longo de mais de seis meses com intérpretes de várias nacionalidades que responderam ao desafio de pensar os limites enfáticos do próprio corpo.

É esse efeito de estranheza consentida que permite que Cyborg Sunday surja como lugar possível de existência de uma comunidade que aprende a viver a intimidade a partir da partilha de contradições ou contratempos. Na versão nacional, criada com cinco intérpretes (Ágata Pinho, Ana Rocha, Cristiana Rocha, Gonçalo C. Ferreira e Gonçalo Valves), percebe-se que a relação de proximidade entre palavra e imagem é prejudicada por interpretações que tacteam o movimento em vez de o assumirem como elemento detonador de imagens que prolonguem as próprias palavras.

A distância que possa surgir relativamente a um objecto tão delicado quanto frágil é sugerida por  intérpretes aos quais se pede que sejam mais corajosos e afirmativos e que façam por responder aos estímulos criados por uma narrativa alicerçada na tensão criada entre palavra e movimento. Este é um movimento – e uma estrutura – cheio de detalhes sobre o que pode um corpo num espaço em diálogo solitário com outros corpos no mesmo espaço com os quais partilha um mesmo devir.

Porque esta é uma coreografia de espaço e tempo, o que dizem adquire uma importância que necessita de corpos reactivos. Os cinco corpos constroem uma memória futura e impõem um modo de agir sobre esse espaço utópico a partir de um presente que vivem de olhos fechados. Procuram-se, e precisam-se, corpos que sejam, afinal, capazes de pensar como existir para lá da memória física. Corpos que sejam, finalmente, veículos de transmissão e de partilha de uma memória em vias de se construir. Efectivamente, o que há de mais relevante em Cyborg Sunday é esse profundo desejo de questionamento sobre a forma, reconhecendo na tensão entre movimento e discurso, ou seja, entre corpo e mensagem, o seu potencial de diálogo, irreconciliável mas utópico.

Ao contrário do que acontecia em Black cats can see in the dark but cannot be seen (2012), tempo e acção existem a partir das diferenças que provocam no corpo, compreendo, contudo, que essa diferenças não podem ser motivo de alheamento narrativo. A força e a elegância de Cyborg Sunday vem da inteligência de saber manipular a tensão criada entre corpo e texto ao ponto de a transferir para a memória física do próprio espectador.

O texto existe a partir de um esforço mnemónico que transforma o que é narrativa em evocação e o que é intuição em condição enfática. O que se sugere é um modo de fazer existir uma realidade através de um processo coreográfico de evocação que antecipa a própria acção. E porque a acção é evocada, o movimento perde a sua condição de alicerce do discurso para passar a ser visto – e sentido – como mecanismo de resgate sobre o presente. Cyborg Sunday, na sua condição híbrida entre corpo presente e discurso ausente, é um trabalho sobre a desterritorialização da imagem e do seu significado, a partir de uma enfatização de uma outra realidade, construída a partir de uma muitíssimo bem urdida rede entre a utopia e quotidiano.

As tarefas de rememoração dadas a cada um dos intérpretes, que viajam do impessoal – de certo modo, do outro – até ao discurso próprio – ou seja, fazendo-se habitar pelo outro – revelam que, afinal, os modos de construção narrativa auto-ficcionais que constituíam o essencial do discurso de Dinis Machado podem muito bem existir para lá de uma retórica inconsequente e de um movimento que sabe ser mais do que um ponto no espaço.

Cyber Sunday apresentou-se dia 22 Novembro às 15h30 e 21h30 no paldo do grande auditório do Teatro Municipal do Porto – Rivoli

A fotografia deste texto (autoria de Anthony Hopwood) é dos ensaios da versão original, interpretada, entre outros, por Nikolas Kasinos e Victoria Malin. 

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