Brett Bailey apresenta-se, pela primeira vez, em Portugal com uma versão particularíssima de Macbeth, a ópera de Verdi, transposta para as florestas do Congo. Ópera-performance, teatro de instalação, memória destruída pela sede de vingança. Dias 22 e 23 de Outubro como parte do programa Teatro/Música, colaboração Fundação Calouste Gulbenkian e Teatro Maria Matos.
Brett Bailey é uma figura surpreendente. O seu teatro de exposição e de denúncia de um conformismo retórico no qual se anda a sustentar o diálogo intercultural e o discurso pós-colonial, recusa pertencer a categorias. Artista sul-africano que nos últimos anos tem alcançado alguma notoriedade na Europa, enfrenta os demónios e os traumas do passado, inscrevendo-os no anonimato dos teatros e das galerias. Fá-lo através de mecanismos de ficcionalização que arriscam o extreme e perguntam se somos conscientes da nossa própria história.
Macbeth, que marca a sua estreia em Portugal é uma revisitação particular que não imaginaríamos possível da ópera de Verdi reconstruída no interior do Congo. O que esta ópera-performance revela, num exercício de reconstrução das influências e contaminações que compõem a memoria colectiva , é um modo de narrar a realidade que não se assemelha a nada.
Um grupo de actores, refugiados políticos congoleses, tentam fugir aos combates que assolam as aldeias de Kivu e, após chegarem a Goma, encontram uma mala com figurinos, programas adereços e gravações da ópera de Verdi. O que se segue não é um artifício para adaptar a ópera de Verdi, a partir do texto de Shakespeare, a uma realidade também em Guerra, mas a possibilidade de fugir à metáfora directa e enfrentar a face mais terrível do poder: o medo.
“Não sou partidário da normalidade”, dizia Brett Bailey aquando da estreia da remontagem desta ópera, a qual se havia dedicado há dez anos naquilo a que chama uma versão falhada por falta de comprometimento dos actores, demasiado concentrados no jogo de interpretação. É precisamente na ruptura provocada, ou promovida, pelos corpos dos intérpretes, emblemas de uma memoria intuída e projectada pelo espectador, que se joga este Macbeth. Uma espécie de Apocalipse Now mas sem regresso, onde entre o Capitão Kurt e Macbeth não há diferença. Brett Bailey explicava nas notas de programa que nunca procurou o peso de Verdi”. Ou seja, não é a responsabilidade da composição, mas a força da reconstrução que lhe interessa, e lhe incomoda. “A pureza da ópera não me interessa. Ouço mais música pop do que clássica. Fico sempre muito impressionado pela beleza da obra de Verdi mas não é a estrutura pesada de uma ópera do século XIX que quero trabalhar. Quero qualquer coisa que reaja, onde a música se modifique constantemente a narrativa nunca cesse de avançar”.
A partir do trabalho que Fabrizio Cassol (que conhecemos do trabalho feito com Alain Platel a partir de Monteverdi e Bach, por exemplo) o italiano do século XIX a ópera tenha sido traduzida para o inglês e depois daí para o isiXhosa, a língua dos cantores-intérpretes, introduz nesta ópera a possibilidade de nos relacionarmos, através da imaginação, com um potencial narrativo mais vasto e mais rico.
Macbeth, o rei manipulado pela sua mulher, viciado nas mitologias, nas superstições, com medo de si mesmo, corpo imenso como metáfora invertida da pequenez da sua independência. Uma força constrita num campo minado de inimigos. “No Congo, a ideia de normalidade não existe. O desespero é um ciclo interminável. De cada vez que uma milícia é dada como vencida, há uma outra que surge, como uma serpente de várias cabeças. A peça de Shakespeare termina com a morte de Macbeth e a coroação de Malcom, filho do rei Duncan, que fora assassinado. A minha ópera termina com o corpo de Macbeth em cena e as bruxas que aguardam, ao fundo, a chegada do novo Macbeth”.
É, por isso, um teatro de expectativa e medo. Um teatro que sabe ser real e se constrói a partir dessa realidade. Na recondução da ópera de Verdi para as florestas do Congo, são as brumas e os nevoeiros da Inglaterra feudal que se escondem nas árvores e nos atalhos. É o medo interior de se ser o próprio inimigo, exposto em corpos destroçados pela realidade. “Não gosto da ilustração”, diz Bailey. “Sei que devo contar uma história mas prefiro a instalação O meu Macbeth é um conjunto de imagens fixas que contam uma história”. E é nessa possibilidade de fissura que se projectam as desesperanças e as rupturas de uma narrativa que, essa sim, é universal: o combate do homem pelo poder e a visão do outro como um inimigo.
Texto publicado a 19 Setembro 2014 no suplemento especial do jornal PÚBLICO feito em colaboração com o Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian