Da vida, dos textos, dos espectáculos e da ética que nos deveria unir

Macadamia Nut Brittle, encenação Ricci/Forte, apresentado no 30º Festival de Almada (fotografia Angelo Maggio)

Macadamia Nut Brittle, encenação Ricci/Forte, apresentado no 30º Festival de Almada (fotografia Angelo Maggio)

Texto lido no agradecimento pelo Prémio Internacional de Jornalismo Carlos Porto

31º Festival de Almada, 18 Julho 2014

 

As relações entre artistas e críticos são tensas. Não tem de o ser, mas são-o, invariavelmente. Temos diferentes noções sobre o que são as competências de cada um. Temos objectivos a cumprir que são, necessariamente, diferentes. Até mesmo o modo como nos envolvemos com o que nos rodeia, a curto, médio e longo prazo, é diferente. Não vivemos uns sem os outros, é assim, é a vida, não faz mal, às vezes faz até muito bem. Às vezes podemos encontrar-nos numa esquina coincidente mas o modo como lá chegamos nem sempre é o mesmo.

Há, ou deveria haver, algo a unir-nos: o respeito pelo trabalho de cada um que não se compadece com defesas provincianas do quintal de cada um. Às vezes isso não acontece, de parte a parte. Às vezes é só um mal-entendido, outras vezes é intencional, outras tantas vezes, cegos de paixão pelo que se faz, esquecemo-nos de olhar à volta. Uns e outros, artistas e críticos.

Às vezes erramos e somos injustos. Às vezes aquilo a que eles, os artistas, chamam de agenda escondida concorre com aquilo que nós, críticos, apelidamos de o de desejo de abrangência das programações. Uma e outra são ideias falaciosas.

Às vezes os artistas, protegidos como devem sempre ser, reforço, pela imensa liberdade de criação, são cobardes, escondem-se atrás do anonimato, da graça, da anedota, da sátira, em comentários jocosos cheios de subentendidos . Às vezes os mesmos artistas que falam de liberdade são os primeiros a impor a sua.

Dir-se-á que é assim na hierarquia de quem vive da criação. Os jornalistas vêm depois, alimentam-se do que os artistas fazem, dizem, nem sempre sem razão. Somos os vampiros nos pescoços alvos e desprotegidos dos artistas. É a vida. Faz parte do jogo não reagir e não confundir o resultado com a pessoa. Às vezes, protegidos pela orgulho vaidoso, uns e outros atiramos sobre quem não merece e tratamos por igual o que é diferente. Às vezes os artistas são cobardes. Às vezes os críticos são injustos. Às vezes esquece-se. Às vezes a memória não é assim tão curta.

Nunca estaremos do mesmo lado porque não temos que estar. Não é uma guerra, é uma função e um papel que nos cabe. Os nossos objectivos são diferentes. Não agimos sobre o presente do mesmo modo, apesar de nele querermos intervir muitas vezes em comum. No meio, à volta, à frente, antes dos textos e depois dos espectáculos, para lá dos textos e no interior dos espectáculos, os públicos e os leitores, nem sempre os mesmos, às vezes coincidentes.

Em resumo, quando às vezes interrompemos a guerra para o chá das cinco, percebemos que a morte da crítica e do jornalismo concorre com a asfixia e a aporia da criação contemporânea. São ambas as mortes amplamente exageradas.

Mas se é sobre crítica e jornalismo que me cabe aqui falar, gostaria de dizer que a ética que me move é alimentada por anos de espectáculos, quilómetros de viagens, milhões de caracteres, e por conversas que se cruzam e me ensinaram que o jornalismo cultural, e a crítica em particular, não serve para comentários de janela, para gracejos pretensamente inocentes sobre uma falsa relação de proximidade entre o texto e o seu leitor.

Não serve, sobretudo, para marcar território, distribuir prebendas, arregimentar soldados numa luta futura, contar trunfos para uma próxima oportunidade, jogar o próprio destino através de um jogo de palavras que não se medem em compromissos.

Escrever é tomar posições e saber que há escolhas que se fazem por nós, sem sabermos ou intuirmos. Escrever é arriscar, é apostar, é afastar, é aproximar, é saber que não somos o centro do discurso, somos um mediador, certamente longe de se ser inocente.

Escrever é sujar as mãos e saber que, por vezes, a tinta não sai (mesmo que já não haja tinta). Escrever é martelar tão furiosamente no teclado que cada tecla encravada é mais um passo que se dá. Escrever não é contornar a árvore no caminho. É levantar a árvore e plantar outra ao lado. A escrita não permite tudo. Não permite, sobretudo, que se torne o objecto do qual se fala. A escrita deve ser invisível. É um guia, não é o destino do discurso.

Não se substituiu ao discurso do artista, mesmo que às vezes seja através da escrita que se aceda a esse discurso. Às vezes o que escrevemos torna-se no discurso que se supõe ser o do artista. Muitas vezes é um prazer, outras vezes um peso. Escrever é ser-se escolhido.

É por isso que os textos nunca devem ser sobre nós mas sobre o que achamos que vemos. É uma fronteira ténue mas essencial. Os textos devem ser interrogações e inquietações, não devem servir para nos exibirmos. Só se escreve, acho eu, com a distância de quem ainda não sabe. Só se escreve sabendo que só se aprende fazendo, falando, pensando, ouvindo, vendo, questionando. Só se escreve escrevendo.

Para mim a escrita permite-me agir. O conjunto dos textos premiados é um conjunto de acções que decorrem de um trabalho contínuo de observação que não se mede em número de referências feitas a este ou aquele artista ou teatro ou festival.

São textos que, afinal, existem em permanente acto de refundação. São textos que, afinal, existem porque se pergunta porquê, porque se quer saber mais, porque não se olha a fronteiras geográficas, artísticas ou ideológicas. São textos que precisam ser alimentados pelo que se viu lá fora, pelo que se repete cá dentro, pelo que não se sabe, pela imensa curiosidade que se espera não ser solitária. São textos que pedem tempo. São textos que querem ser leitores de si mesmos. São muitas vezes textos egoístas porque assumem que as suas dúvidas são as dúvidas de quem os lê. São textos ambiciosa e ansiosamente à espera de ser partilhados. Textos que começam noutros textos e voltam a começar no olhar de quem vê um espectáculo começado noutros espectáculos.

São, por isso, e por fim, textos resilientes e não resistentes. São textos que se adaptam e não textos que se fixam. Textos que lutam e que exigem quando parece que os poderes públicos desistiram antes de nós mas ainda usam a cultura como flor na lapela mas fizeram a escolha de não a regar. São textos que se batem pelos artistas e, por isso, são textos contra os artistas porque sabem que os artistas não são só o que dizem ser, são mais do que isso. São textos para serem usados e, por isso, são textos que vão à luta. E às vezes morrem no campo de batalha. Nem sempre ganhamos. Mas é muito bom lutar.

Bem sei que este é um prémio de jornalismo, e é um prémio que se honra através do nome de quem dele se tornou, postumamente, seu patrono: Carlos Porto. É difícil ser-se como o Carlos Porto. Não quero ser como o Carlos Porto. Não sei sequer se o Carlos Porto alguma vez leu o que escrevi mas não estou certo de que ele gostasse de que eu fosse como ele. Ou talvez gostasse. Eu gosto certamente desta espécie de ligação que me obriga a pensar o que faço e porque o faço. Esta é a terceira vez que o júri deste prémio distingue o meu trabalho. A responsabilidade e o mérito, por mais que seja eu hoje quem aqui esteja, pertence à Câmara Municipal de Almada que, na generosa continuidade de distinguir, ano após ano, quem pensa sobre o Festival de Almada, faz uma escolha política no que de mais nobre existe nessa ideia de política: quer agir em público, para o bem comum.

Distinguir é agradecer. Agradecer é mais do que o mínimo, é honrar a distinção. É assumir a responsabilidade e saber que não se pode ceder.

Este é um prémio de jornalismo mas é dado a quem nem carteira tem, a quem já não distingue jornalismo e crítica porque tem a sorte, a imensa sorte, de escrever num jornal que está para lá das formas e das regras e das nomenclaturas. Um jornal que está onde se deve estar, na confiança em quem escreve e que, por isso, desafia as regras impostas, taxativa e acintosamente por uma Comissão da Carteira que se esquece em que mundo vive e que, no afã de proteger o jornalismo de si mesmo, se torna autoritária, castradora, impositiva e cega. Uma Comissão de Carteira que, por exemplo, não gostará de saber que o Prémio Internacional de Jornalismo Cultural Carlos Porto é dado, pela segunda vez, a alguém que não tem carteira de jornalista mas que não é por isso que deixa de fazer o seu trabalho sem alguma vez ocupar, qual eucalipto, o lugar dos outros. O fim do jornalismo não está no desaparecimento dos jornais. Está aqui, na inadequação aos tempos modernos que não são, afinal, mais do que a reedição de outros tempos em que jornalistas eram aqueles que seguiam uma ética e não apenas aqueles de papel passado e carimbo pago a preço de ouro.

Sem o saberem, muito provavelmente, os membros do júri deste prémio tornam a sua decisão num gesto político de resiliência. Como o Joaquim Benite e o Carlos Porto haveriam de gostar de o saber.

No PÚBLICO, onde os textos premiados saíram, discute-se e pensa-se o jornalismo como uma arte em movimento. Dessas discussões nasce um olhar sobre a realidade que, ao invés de ambicionar ser abrangente, procura ser consistente. Um olhar multiforme, que não obedece a métodos de escrita, a regras de composição, onde a palavra é livre, as ideias circulam e a vida continua Nem tudo é fácil, oh se nem tudo é fácil, mas seria muito mais difícil noutro sítio. É olhar à volta. Este é um lugar que, através do modo como se defende, dialoga com o que está à volta. São escolhas. No PÚBLICO fazemos essas escolhas. O conjunto de onze textos que assinei entre 4 e 18 Julho no jornal PÚBLICO foram uma proposta de leitura de um festival. Não foram o festival. Foram pontos de partida para o conjunto de espectáculos e de pistas lançadas pelo festival. Por isso, as escolhas que se fizeram, como todas as que fazemos, são escolhas que não servem para cumprir a agenda dos artistas, dos programadores, das companhias, dos teatros, dos festivais.

São escolhas que não servem para vender bilhetes, não servem para preencher quotas dos serviços de imprensa, não servem para responder à maquina veloz do marketing e da publicidade. É jornalismo, não é divulgação. É pensamento, não é imediatez. São textos num jornal que se esquecem que estão num jornal. Ou são textos para um jornal que não quer ser só o jornal de ontem. Textos que são, afinal, espaços num jornal que é, afinal, tempo, sobre espectáculos que são, sobretudo, valores.

Mas bom, isto já vai longo. É o problema de duas horas e meia de avião, dá espaço para muitas ideias.

Quero terminar dizendo o óbvio: Os textos que são publicados são textos que são editados. São construções de ideias geridas pelas mãos e os olhos e a generosidade de quatro pessoas, os editores da secção de cultura e do suplemento semanal IPSILON do jornal PÚBLICO.

O Vasco Câmara, que está aqui, costuma dizer, na altura da paginação, e de cada vez que eu ultrapassei o número de caracteres que eu próprio pedi, que não faz mal nenhum, que os meus textos são fáceis de cortar porque é só escolher que texto se quer ler. Os meus textos, diz ele, têm muitos textos lá dentro. Deve ser por isso que quando a Inês Nadais, que também está aqui, muitas vezes se vê obrigada a criar outros títulos para os meus textos porque nem sempre aquilo sobre o qual intencionava escrever, acaba por aparecer no texto. São textos com muitos textos e muitas ideias lá dentro. São textos vivos que entrego nas mãos de quem quer com eles também viver. Às vezes perco-me e devia concentrar-me e fechar uma frase e fazer pontuações e terminar uma ideia e ser mais claro e mais directo e evitar mostrar que sei porque o que está dentro da minha cabeça nem sempre está no texto, diz a Isabel Salema. Às vezes, simplesmente não se percebe, não se percebe nada, diz-me a Isabel Coutinho, E têm todos razão, os quatro. Por isso, o conjunto de textos que são aqui premiados não existiriam sem o trabalho deles. E eu, afinal, também não. Por isso lhes agradeço, porque são eles os primeiros leitores.

Por fim gostava de voltar a agradecer ao júri por, uma vez mais, se demorar a ler com a distância que muitas vezes o jornalismo não tem, e certamente o meu impulso de escrita esquece, textos que, provavelmente, ajudaram a pensar alguns dos espectáculos aqui apresentados em 2013. E gostava de lembrar a memória do Joaquim Benite, a memória do Carlos Porto, a ética de ambos, a forma de estar, a herança que deixam e a responsabilidade de a continuar que nos cabe a todos e à qual por vezes não chegamos no nosso dia a dia.

Mas gostava de dedicar este prémio ao Miguel Gaspar que foi, ao longo de sete anos director-adjunto do PÚBLICO, que morreu há um mês, e com quem foi sempre um prazer discutir ideias e perceber que escrever sobre cultura num jornal é mais do que uma obrigação de agenda. É uma escolha e um compromisso com o futuro. O nosso e o de quem nos lê. Para nós e para quem nos lê.

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