Se Shakespeare tivesse sido coreógrafo, Hamlet era o seu Lago dos Cisnes. E com este Hamlet, o do mau quarto, que a Mala Voadora apresentou entre 27 e 30 Março 2014 no teatro São Luiz, prova-se que, afinal e às vezes, a companhia de Jorge Andrade e José Capela, também pode ser uma companhia de dança.
À semelhança de Coriolano, de Nuno Cardoso, onde o trabalho com os corpos dos actores, assinado por Victor Hugo Pontes, trazia ao de cima um jogo articulado entre palavra e acção, entre ideia e consequência, também agora percebemos como as palavras de Shakespeare podem ser movimentos se a eles for emprestada – ou com elas for explorada – uma dimensão de efectiva relação entre o espaço da apresentação (o teatro, espaço físico) e o espaço da acção (o teatro, espaço utópico).
Tudo isto estará relacionado, no caso de Hamlet, com aquilo a que Giuseppe Tomasi di Lampedusa, no seu ensaio sobre a obra de Shakespeare (Teorema, 2011), apelidaria de consciência do tempo, chamando a atenção para o facto de que se a acção se desenrola de março a junho, em cerca de quatro meses, em cena são representados sete ou oito dias. Hamlet encena a sua tragédia do mesmo modo que a Mala Voadora coloca em cena uma encenação de um texto, usando-se assim de um jogo de ilusão, amplamente aproveitado por esta versão musculada, a do “mau quarto”, onde os corpos dos actores, desaparecem no interior de um corpo de baile. É esta possibilidade de explorar a desierarquização das personagens que faz jogar a seu favor a possibilidade de esta primeira versão ser um teatro de acção, de movimento, em oposição a um teatro de retórica e reflexão.
Na reescrita possível do percurso da Mala Voadora, percebemos que esta ideia nem sequer é nova e que, na maior parte dos casos, isso coincide com a presença de grandes elencos, constituindo assim, e de certo modo, uma reflexão sobre a ideia de comunidade e de colectivo sujeito a um mesmo espaço e tempo. Mesmo que isso signifique, por vezes, o desaparecimento, no interior do colectivo, da força individual de cada um (ou seja, a consciência material que sustenta o trabalho de cada um deles).
Foi assim com A Sala Branca (2013), Wilde (com Miguel Pereira, 2013) e Casa & Jardim (2012), mas foi também assim com Paraíso 1 (2013), Spitx (encenação de Miguel Loureiro, 2009) e Huis-Clos (2009), onde a tensão dos corpos sujeitos aos discursos proferidos, permitia uma outra forma, mais física, de os interpretar. São apenas hipóteses de leitura, naturalmente, mas que evidenciam a estreita relação que a companhia estabelece entre os textos que escolhe e o modo como faz operar, no seu interior, a reflexão sobre a consciência que o actor tem enquanto vaso comunicativo das ideias que o texto veicula. E, depois, há a cenografia, de José Capela, que dialogando com a efemeridade já não das palavras e dos actos, explora a contradição entre o próprio espaço e a imagem que dele pretendemos guardar, ou seja na distância entre a imagem e a sua evocação, através de telões, aqui reproduzindo o interior da sala do teatro São Luiz, como antes havia feito com Casa e Jardim (reproduzindo a fachada do Centro Cultural de Belém), e Overdrama (2011), com a possibilidade de trazer para o palco as imagens da cidade, do mesmo modo que o texto de Chris Thorpe descrevia o que pensavam (imaginavam, viam, construíam) as personagens enquanto falavam. O efeito de trompe l’oeil permite que o espaço se torne, afinal, no verdadeiro protagonista do espectáculo. E, através dele, a própria noção de tempo que é, afinal, aquilo que permite que o movimento se transforme em memória e discurso, logo, em dança.