Estado de Excepção, de Rui Horta, apresenta-se, de hoje a sábado, no teatro São Luiz, em Lisboa. A crítica foi publicada a 17 de Novembro, após a estreia do espectáculo em Guimarães
Estado de excepção é um espectáculo profundamente triste. Porque, desde quarta-feira, pedras da calçada atiradas a uma porta fechada deixou de ser um desejo, uma espécie de utopia com poder para transformar as coisas, e entrou, olhos dentro, para as consequências de todas as acções. É assim que começa e é o baque seco, pautando as frases de revolta, mais compostas que reais, mesmo que seja da realidade que partam, que ecoa ainda quando, tempo depois, saímos da sala.
Estado de Excepção, o novo trabalho de Rui Horta, é profundamente triste por isso mesmo. Porque, como se o desejássemos mas não soubéssemos que isso seria possível, a realidade invadiu o palco e tornou-o numa espécie de câmara ressonante, mesmo que tudo tivesse já sido pensado, ou intuído, antes de as pedras voarem contra as portas fechadas da Assembleia da República.
Dir-se-á que um espectáculo, o que nele lemos, é também o que experienciamos antes de o vermos. Por isso, toda a primeira parte desta peça, tão híbrida quanto comovente, que trabalha ao ralenti, actua muito mais tarde do que o momento em que a vemos e dela saímos, um exercício de construção de uma tensão que se adivinha e, por isso mesmo, assusta.
O texto vai sugerindo uma revolta contida, vai-se fazendo de sugestões, vai apontando o dedo e, na fragmentação da sua construção, olha para os corpos e pergunta-lhes o que farão com essas palavras.
Não é importante saber se a peça mostra um Rui Horta mais ou menos político porque o modo como Rui Horta foi sendo político foi sempre olhando para a fragilidade do próprio discurso artístico. E se, por vezes, na explosão do seu movimento, na porosidade criada pelo massivo cruzamento de linguagens, nem sempre fomos capazes de encontrar para que fim de que túnel apontava o coreógrafo, percebemos agora que aquilo de que tem andado a falar há anos é desta falsa transitoriedade. E, por isso, de corpos coarctados, de corpos cuja excepção passou a ser a regra. E que essa regra é a única guerra da qual sabem que não vão sair. Mesmo que sobrevivam.
Assim, Pedro Gil, Miguel Borges e Anton Skrzypiciel, entre a ordem e a obediência, entre o homem executivo e o homem enjaulado, entre o racionalismo e a errância, habitam a frente de um palco demasiado estreito, ficcionando uma proximidade para tentar uma cumplicidade, e arriscando, sem filtros, encontrar as palavras e os gestos para o estado das coisas como elas estão.
É por isso que, a dada altura, provavelmente, só depois de se sair da sala, é que deixamos de nos preocupar com a consequência dramatúrgica deste espectáculo. Consequência porque que se vai perguntando o que fazemos com o que fizemos. Dramatúrgica porque, afinal, o que Rui Horta propõe, sobretudo com as presenças da bailarina Teresa Alves da Silva, que transforma as pedras em bolas de ténis, e do músico David Santos (Noiserv) é uma poética para uma realidade profundamente triste, provavelmente irresolúvel, condenada.
Esta será a peça para o momento certo. Poderá não ser a peça certa, mas há muito que o trabalho de Rui Horta não se punha tanto em causa. Talvez não exista nada de mais heróico hoje.