Israel Galván é o expoente máximo de uma tradição que se fez dança contemporânea. O seu flamenco abre hoje o Festival de Teatro de Almada.
Israel Galván tem 38 anos “e isso já se começa a notar”. É ele quem o diz, ao falar “da idade tramada”, na qual o corpo “já não faz o que a mente lhe pede”. E, no entanto, em momento algum de La Edad de Oro, a peça com que hoje abre o 29º Festival Internacional de Teatro de Almada, nos lembramos que este homem, que um dia quis ser futebolista mas quando deu por si, “e não podia ter sido de outra forma”, era bailador de flamenco, possa estar num jogo “de extrema delicadeza e negociação entre o que a mente quer e aquilo que o corpo lhe gostaria de dar mas não consegue, ou não deve porque tem que se guardar”. “Não sei por mais quanto tempo vou conseguir fazê-lo”, diz. Isto não é receio. Isto é uma profunda consciência de que não sabe tudo. “Trinta e oito anos, uma vida inteira a dançá-lo e ainda não sei o que é o flamenco”, diz-nos por telefone.
A peça que se apresenta no palco da Escola D. António da Costa, em Almada (e que em 2008 se apresentou no Teatro Viriato, em Viseu) foi o mais próximo que Israel Galván alguma vez teve de o compreender. É ele quem o diz para falar de uma peça que vai até aos anos 30 do século XX, àquela que todos dizem ter sido a sua idade de ouro, para compreender de que modo o flamengo vivia, então, em pleno epicentro da revolução cultural que se vivia enquanto nas ruas marchavam os militares de Franco. O cinema de Buñuel, os quadros de Dali, a poesia de Lorca e Galván a falar dessa “arte andaluz do sapatear” que era mais do que isso. “É até mesmo mais do que identidade”, e tenta procurar as palavras.
Do outro lado do telefone percebemos que os dedos de Galván estão a bater na mesa, como se repetisse os passos, os mesmos que aprendeu com o pai e a mãe, também eles bailadores. “Quando dou por mim estou num salão de baile”, diz, “e se me pergunta quem é aquele rapaz, quem é este homem, eu não lhe sei responder senão dançando”. Ele, que queria ter sido futebolista e hoje é o expoente máximo de uma inscrição do flamenco como dança contemporânea. Ele, cujos espectáculos cruzam os palcos de festivais tão diversos “uns a dizerem que aquilo que faço é dança contemporânea, outros a dizerem que é um regresso à invenção do próprio flamenco”. Estar na abertura de um festival de teatro não é estranho. O seu movimento há muito que se libertou das regras e dos códigos que o limitavam e o seu discurso desde sempre que abraçou uma dimensão trágica, que emana essencialmente da condição de que o flamenco quer falar. E, por isso, teatral sim, porque é de corpo, “de la dolor del cuerpo”, que está a falar.
As raízes perderam-se, mas como todos os gestos identitários das ditaduras europeias do século XX, também o flamenco, naquilo que poderia esconder de gritos de revolta, “de mãos que eram símbolos”, de “palavras que queriam ir mais longe”, guardou uma genética que em La Edad de Oro Galván recupera, como se quisesse reinscrever uma memória que se reclama viva. Quer mostrá-la nos seus movimentos mais completos, “na liberdade que é imensa” e interrompe-se para dizer: “sabe, o flamenco não precisa de fermento, como os bolos, para se perceber que é flamenco”. E voltamos a ouvir os dedos a tamborilar como se fosse o sapateado feroz, “ay la vida de una danza”…
Galván vem de uma família de bailadores e, no entanto, nunca deixou de se perguntar como poderia trazer “até mais perto de quem não sabe” o que é esta dança. “O problema é que hoje tudo se globaliza e há que manter algumas das tradições. O flamenco tem um código que é imutável e é através dele que se pode falar de outras coisas”. Em La Edad de Oro isso é por demais evidente. Galván, sozinho em palco, percorre uma série de imagens, longe do exibicionismo histriónico de Joaquín Cortés, mais próximo de um “sentimento de partilha íntima”, feita de gestos “mais pequenos, quase mínimos, que passam muito pela sensibilidade de quem dança”.
A renovação que muitos dizem que faz não é mais do que “uma pesquisa sincera sobre o modo como pode o flamenco permanecer um modo de falar de nós”. De nós, imaginamos, espanhóis. E Galván, percebendo-o, acrescenta: “A diferença entre ver dançar flamenco dentro ou fora de Espanha é que a distância permite perceber melhor os segredos desta dança. Não são os mesmos de quem a conhece de cor, mas são outros, mais próximos do que as pessoas conhecem”. E deixa em aberto, para imaginarmos o resto. La Edad de Oro não é um espectáculo de rupturas e menos ainda um momento em que Galván se preocupe se há quem o vá ver como bailarino exótico, que não cabe em categoria nenhuma e por isso mesmo, num hibridismo que afasta mais do que aproxima, não consiga ver a urdidura de um movimento que se auto-desfaz.
“Gosto de um flamenco sem adornos, um flamenco que não tenha nada a ocultar, e é esse o meu único compromisso”, conta. E é por isso que a idade se tornou algo tão importante, e condicionante, com o passar do tempo. “Tem tudo a ver com uma postura do próprio corpo, que vai percebendo, intuindo, o que pode fazer. Se te dá las ganas, encontras una classe, onde com poucos movimentos vais dizer o mesmo, para que o teu corpo tenha uma só energia e para que não se esgote numa descarga única”. De novo o barulho dos dedos e, após um silêncio, como se quisesse explicar melhor, Israel diz: “Esta linguagem é, como dizer, tac-tac-tac-tac-tac-tac, entendes?”
Texto publicado no Ípsilon a 29 de Junho