A dança da luz, do sol, das sombras e das trevas, do que é invisível e presente

É da ordem do imaterial a impressão que se guarda de espectáculos como aqueles que Anne Teresa de Keersmaeker apresenta esta semana no Alkantara Festival, em Lisboa. En Atendant (hoje e amanhã, 21h30, Culturgest) e Cesena (dia 8 no Centro Cultural de Belém, às 21h, e dia 9 no Teatro Camões, às 21h30) foram originalmente criados para os espaços do Festival de Avignon, em França: o primeiro foi feito em 2010 para ser apresentado ao cair da tarde no Claustro dos Celestinos; o segundo em 2011, para começar de madrugada no Palácio dos Papas, mesmo antes do nascer do dia.

Tinham passado 18 anos desde que Keersmaeker se apresentara em Avignon e na memória de tantos estava ainda Mozart/Arias, espectáculo emblemático (que passou em 2006 no São Luiz, em Lisboa) onde a coreógrafa experimentava um encontro entre corpos masculinos e femininos, num jogo que parecia já distante das resistências que tinham caracterizado as suas primeiras peças (que vimos em Fevereiro deste ano no Centro Cultural de Belém).

Quando En Atendant terminou, já as luzes artificiais tentavam escalar as altas paredes dos Celestinos, a respiração de quem estava na plateia parecia suspensa. O que se tinha passado? Que movimento era aquele que parecia ter nascido na voz ou, por outro lado, mas ao mesmo tempo, sugeria ter encontrado na voz dos bailarinos a sua melhor formulação?

“A dança de Keersmaeker não responde a nada”, dizia a revista Télérama uns dias depois, hipnotizada como estariam tantos. “Ela cria, simplesmente, um espaço de sensações, um território de aventuras. A partir daí, caberá a cada um de nós criar a sua própria leitura. Há qualquer coisa que faz adivinhar que aquilo que vemos não é completamente dança nem totalmente música, mas algo que se lhes assemelha e as ultrapassa. É assim que nasce a beleza”, escrevia o jornalista Daniel Conrod.

Era assim que Keersmaeker lia poemas que guardavam a memória histórica de uma Europa convulsa que, em pleno século XIV, entre guerras religiosas e insurrectos reinos, transformaria inevitavelmente a sociedade medieval. Os corpos dos bailarinos, imagem suspensa de um canto sem forma, atravessavam o palco desaparecendo no crepúsculo, como se percebessem de que sofrimento falava o poema que dá nome à peça: En atendant souffrir m”estuet grief payne (“À espera, tenho que suportar penosos tormentos”).

Keersmaeker diz que este é um “canto sobre a dignidade da espera”, que o poeta quer ver saciada a sua sede, mas “a fonte está demasiado longe e a água dos ribeiros turva e corrompida”. Também o movimento de Keersmaeker, depois do quase solo Keeping Still (2006) e de The Song (2009, estará em Novembro no Maria Matos) e antes de3Abschied (2010, com Jérôme Bel, em Novembro, na Gulbenkian), parecia procurar uma forma, mais crua, para regressar ao que caracterizara as suas primeiras peças: um modo de entender a fundo o homem a partir do movimento.

Versões de palco

É verdade que veremos as versões de palco das duas peças, onde o escuro é já o da sala, mas o eco reverberante das vozes dos bailarinos e cantores provoca um arrepio semelhante. Isso deve-se ao modo como Keersmaeker, com o Ensemble Cour & Coeur (En Atendant) e Graindelavoix (Cesena) trabalhou a ars subtilior, uma corrente de música polifónica surgida no Sul de França no fim do século XIV, com notas médias ditas impossíveis de cantar e, por isso, normalmente executadas por instrumentos.

Em conferência de imprensa aquando da estreia de Cesena, Keersmaeker explicava: “Estava reticente porque pensava, a partir de conhecimentos muito reduzidos, que esta música sagrada me perturbava e me fazia ter medo. Depois percebi que era muito próxima de muitos dos meus gostos e preocupações: um contraponto complexo que se dissimula numa expressão refinada.” Quase rarefeita, acrescentaríamos, num gesto menos determinista do que nas coreografias onde usou Mozart, Schönberg ou Steve Reich. Keersmaeker diz que a ars subtilior é “uma música da alta aristocracia”, uma arte de “círculo íntimo”, com “um toque de provocação intelectual” que não deixa clarificar se é árida ou apenas ilegível. 

O movimento que criou, tão dependente da voz que é como se o canto fosse também ele um movimento, pede que atendamos, esperemos, por uma materialização que “deixa pairar no ar uma parte de mistério delicioso, impossível de agarrar, um ambiente de enigma matemático, de subentendidos, de subtexto”, diz a coreógrafa na entrevista do programa. E voltam as ideias de nuance e de claro-escuro que a levaram à apresentação ao ar livre. À primeira vista, parece um dispositivo artificial, mas, depois, prova-se por inteiro o que de mais físico se aproxima do encontro entre a palavra e o corpo: o desaparecimento no escuro em En Atendant e o surgimento para a luz emCesena. Novamente a história – das trevas da Idade Média europeia para o Renascimento.

Anne Teresa recebe amanhã, às 12h, no salão nobre dos paços do concelho, a medalha de honra da cidade, com introdução de Jorge Salavisa e, dia 7, às 16h, no Teatro São Luiz, apresenta, e promete dançar, o livro The Choreographer”s Score, assinado com Bojana Cvejic, sobre as suas quatro primeiras obras.

 

Texto publicado na edição de 5 de Junho no PÚBLICO

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