Sempre Noiva
de Daniel Gorjão/ Rosa74
com André Patrício, Fernando Tavares, Joana Cotrim
Teatro Municipal de Almada/ ciclo Sala Experimental
4 de Maio 2012, 21h30
Lotação Esgotada
***1/2
Começa já a sentir-se o modo como o contexto social vai invadindo o discurso artístico.
Um ambiente de indefinição, de impossibilidade de concretização, de profunda dúvida e de rememoração dos passos que nos levaram até aqui.
Talvez seja mais visível em projectos mais pequenos do que em espectáculos de grande porte, fruto da sua inconstância, possibilidade de reacção mais directa, porque mais distante dos círculos de grande visibilidade.
“Sempre Noiva”, assinado por Daniel Gorjão/Rosa74, inscreve-se nessa linha. Apresentado ontem (sexta, 4 Abril) no ciclo Sala Experimental, organizado pelo Teatro Municipal de Almada (com novas apresentações previstas para Outubro no Teatro Taborda, em Lisboa), procurará reflectir sobre a dificuldade de se encontrarem respostas para a situação actual, socorrendo-se do livro “O Medo de Existir”, de José Gil (Relógio d’Água, 2004), citando-o ou lendo-o, ao qual se junta novo material produzido por Cátia Terrinca.
Construída em loop, repetindo, por isso, três vezes, a mesma sequência, e deixando contudo que essa lógica seja contaminada não apenas pelo cansaço dos intérpretes mas também pelas imagens que vão sendo criadas, “Sempre Noiva” é sempre mais interessante quando consegue fazer articular esse mal à l’aise com um desejo de reacção. A resiliência dos três intérpretes – André Patrício, Fernando Tavares, Joana Cotrim – é perceptível através de uma repetição de movimentos, sempre miúdos, nervosos, por vezes violentos, como se fossem inconscientes e que fazem passar, não tanto pela palavra mas pelo modo como ela é tida como inútil, ideias de resistência.
Esta ideia é agravada por alguma dificuldade de elocução e também algum equívoco na escolha dos textos, que se tornam, mais do que pontos de reflexão, sublinhados de intenções para os quais parecem não existir palavras. Um outro trabalho, eventualmente de maior depuração – como acontece aliás na exigência do movimento – poderia ter levado a um uso do texto como mais do que um acessório, como parece ser o caso.
As palavras escolhidas, graves na sua pertinência, essenciais no seu conteúdo, ficam desprotegidas perante a intensidade muda e simbólica dos movimentos.
O que os intérpretes sugerem, nus ao princípio, e vestidos de igual depois (Patrício e Cotrim), num gesto de uniformização que abafa o indivíduo e apela à massa organizada, é um outro entendimento da própria palavra, sujeita a uma forma mais finita do que o próprio movimento. A presença de Fernando Tavares é, nesse aspecto, profundamente simbólica. Um corpo perfeito mudo, adorado, maltratado, repositório de esperança e sentimento unificador com os versos do hino nacional, arriscando o improvável e garantindo que a utopia falhará.
O espaço deixado para a improvisação permite que os intérpretes construam a sua própria dramaturgia, obedecendo a um formulário mas não o seguindo à risca. Essa articulação entre objectivos e acções permite que “Sempre Noiva” se abra enquanto exercício de exploração de possibilidades de acção, ao mesmo tempo que resiste à mudança.
O modo como, no corpo dos três actores, vamos percebendo o cansaço das acções, como se vivessem numa espiral irredutível, força o corpo do espectador – propositadamente instalado em bancadas desconfortáveis – a percepcionar a violência do confronto entre o simbolismo das palavras e a força dos movimentos.
Este diálogo é ampliado pelo gesto, primeiro estético, depois dramatúrgico, de deixar nas mãos dos espectadores, dispostos em bancadas que ocupam três lados da sala, a visibilidade do próprio espectáculo. Através de uma pequena lanterna, cabe a cada um, no tempo que decidir, e como quiser, iluminar a cena, os corpos, o espaço cenicamente vazio e o próprio público.
E será através desta outra forma de diálogo que “Sempre Noiva” se consegue libertar de algumas das pressões por si criadas, nomeadamente no desejo de ver materializadas ideias e utopias. Como se a realidade, crua e impossível, pudesse ser gerida a bel prazer, ansioso ou magoado.
Esta decisão, que tem tanto de poético quanto de violento, conduz-nos para o interior de uma experiência estética que é também uma reflexão sobre um improvável duelo entre democracia e voyeurismo. O que se deixa ver e o que se quer ver. Se a nudez dos três intérpretes é gerida pela luz que cada espectador pode fazer incidir nos seus corpos, também o seu olhar é exposto pelo modo como quer deixar ver o que está à frente de todos. O risco de implicação do espectador é ganho pelo modo como evidencia a necessidade de complementaridade entre o movimento dos actores e o olhar dos espectadores. Talvez comece assim a mudança que procuram.