Um país em estado de adivinhação
Uma das constatações, porventura, mais interessantes e intrigantes originadas por este impasse político em que o país se encontra, desde os últimos resultados eleitorais, é o estado de adivinhação a que se devotaram muitos políticos e grande parte dos “fabricadores de opinião”. No PÚBLICO e nas outras plataformas mediáticas. É curioso observar quantos, e de que modo, se põem a adivinhar o que pensaram os portugueses quando determinaram a direcção do voto expresso nas urnas. Lemos ou ouvimos com frequência: os portugueses que votaram na coligação PaF, (ou até mais restritamente, os 36,83 % de votantes) “pensaram”, “quiseram dizer” isto e aquilo. Idem aspas, vê-se repetido o mesmo raciocínio para os portugueses votantes no PS, no BE, na CDU ou no PAN. É óbvio que, de alguma maneira, dos resultados podemos sempre tirar algumas inferências objectivas. Mas, ao ponto de se extrair tanta conclusão “lúcida” e “peremptória” – quando na própria ciência política ou pela estatística é tão difícil estudar e concluir sobre o sentido ou o significado dos votos – é que me parece um puro estado de adivinhação. De facto, é uma tarefa, a que muitos se dedicam, esta de pensarem o que vai na cabeça dos outros. Julgo, todavia, com desacertado sucesso, pois com excepção de alguns especialistas na matéria, se há coisa impenetrável é perceber o que está na mente de cada indivíduo. Aliás, é interessantíssimo verificar, como neste campo, Paulo Portas se tornou um especialista.
Causa-me, porém, alguma intriga, como outros tantos comentadores não se deitam a adivinhar o que vai na cabeça dos 43,07 % dos portugueses que se abstiveram de votar (é verdade que entre estes, por falta de actualização dos cadernos eleitorais, há muitos mortos e desaparecidos). Nem tão pouco imaginam um único pensamento sobre os 112.293 que votaram em branco ou sobre os 86.571 que exprimiram votos nulos. Mais espanto ainda me causa, a total ausência de consideração e fundamentalmente de uma merecida reflexão sobre o que pensam os milhões dos portugueses espalhados na imensa diáspora portuguesa. Dos 242.852 eleitores inscritos – um número tão residual que nos deveria envergonhar e levar a pensar, isso sim, o que significa na nossa cabeça e na cabeça dos nossos concidadãos, por isto, ou por aquilo, fora da pátria – este descomunal divórcio – apenas 28.354 exprimiram o seu voto. Por este escasso registo, não posso pensar o que o justifica pela cabeça desses portugueses. Mas, objectivamente, posso concluir que estes números são indicativos e escandalosos para avaliar a atenção e “estratégia de relação” que o Estado português dedica aos seus emigrantes. E isto numa altura em que tanto se apregoa a preocupação pelo desenvolvimento de uma “diplomacia económica”. E isto num tempo, em que se sabe, que há muita região, concelho ou distrito de Portugal que tem mais portugueses fora do que dentro das suas fronteiras.
Por outro lado, seria de elementar ajustamento económico e de interesse da portugalidade reflectir sobre as implicações que estes dados trazem à argumentação, também, muito utilizada, quer pelos políticos, quer pelos comentadores, entre as diferenças da legitimidade política e da legitimidade constitucional, e já agora, da legitimidade social. Estamos num terreno em que cada um adivinha na cabeça do outro, o que muito bem lhe serve. Ou, de alguma maneira, forçando uma citação de José Saramago, em Levantado do Chão, estamos, quanto a cenários de adivinhação e “quanto a outras desconfianças, só os naturais em terras pequenas, onde sempre se adivinhou o que não se sabe”.