Um jornal e a sua «identidade discursiva»
Alguns leitores pediram para não deixar cair – e antes me explicar melhor – o enunciado que, há duas crónicas atrás, referia, citando Rémy Rieffel, uma autoridade nas ciências da comunicação: «cada jornal tem a sua identidade discursiva». E acrescentava: esta, aliás, inscreve-se num contrato de comunicação singular com o seu público. Invocava essa teorização a propósito das determinadas posições que o PÚBLICO assume nos seus editoriais ou na escolha que faz do elenco dos colaboradores habituais que tem. E que, por vezes, sofrem a recriminação de alguns leitores.
Cada povo, cada região, cada partido político ou movimento social, cada clube ou associação, cada personalidade, tem a sua identidade, – aquele conjunto de características, de elementos identificadores próprios, valores assumidos e declarados, que especificam a sua diferença identificadora entre os demais. De igual modo, no espaço mediático, cada órgão de comunicação social tem a sua identidade própria. Cada jornal é o que é. E obviamente, não é por todos proclamarem o seu compromisso com a verdade (a defesa da veracidade dos factos), não é por todos quererem impor às suas audiências um ligâmen de credibilidade e um impacto de adesão com os seus leitores, que cada jornal deixa de ser o que é. E, portanto, todos são diferentes uns dos outros. No fundo, e inspirado no autor já citado, importa ter presente que, não obstante todos os compromissos com a deontologia e a ética, «os jornais têm regimes de verdade, credibilidade e de temporalidade diferentes» (Rieffel, Que sont les médias?, Paris, Gallimard, 2005, 59).
Provavelmente, nem é preciso prolongar esta precisão, pois alguns poderão até julgá-la tautológica ou de simples evidência. Basta estar em frente de um escaparate e olhar para a oferta dos vários jornais para reconhecer as suas diferenças. Todos sabemos as diferenças e no que são diferentes um PÚBLICO, um Diário de Notícias, um Correio da Manhã, um Expresso, um Sol, etc. Todos procuram reportar-se aos factos segundo as regras deontológicas da construção das notícias. Mas, num plano diferencial, no seu modo particular de ler, interpretar os factos, rapidamente, instilam pelos seus elementos identitários, uma específica «ordem de pôr em cena a informação». (Rieffel).
Repare-se que estas considerações por mim introduzidas sobre a «identidade discursiva» de cada jornal vinham a propósito das acusações de alguns leitores ao PÚBLICO em relação práticas de não isenção e rigor no plano da opinião expressa (que, em meu entender, inclui sempre planos de interpretação) em artigos de relato ou comentário com alusão a acontecimentos da vida política e partidária, ou dos escândalos da Banca, dos vistos Gold, das listas de cidadãos-vip face à fiscalidade tributária. Enfim, seria contra-natura da lógica da pluralidade mediática que enforma, felizmente, um país em democracia, todos terem a mesma leitura, a mesma visão.
Obviamente, o PÚBLICO tem a sua identidade. E os leitores quando o lêem, quando o compram, sabem identificá-la. Mas isso não significa, – antes configura-o como diferente – deixar de ter opinião, expressá-la e divergir da opinião de muitos leitores e precisamente dos outros meios de comunicação social.
Evidentemente que a «doutrina» que, aqui, explicito, é aquela que faço na perspectiva de provedor e na dimensão que interpreto a prática de produção de jornais ou outros media, cuja estandardização, por vezes, tão conseguida pelos processos da industrialização, faz os leitores esquecerem e subestimarem esta realidade de cada jornal ser estatutariamente diferente. E se esta é a visão de provedor, e deste, naturalmente, em nada quer comprometer a perspectiva da direcção ou daqueles que, a cada momento, executam o projecto editorial do PÚBLICO.