A divina partícula

(Crónica da edição de 8 de Julho de 2012)

 

Entre os temas que na última semana dominaram a actualidade informativa — e foram vários, desde a mitigada declaração de inconstitucionalidade da retirada de rendimentos a pensionistas e funcionários públicos até às peripécias académicas do ministro Relvas —, é bem possível que no futuro venha a reconhecer-se que a mais importante notícia publicada por estes dias foi o anúncio da confirmação, “com 99,99% de certeza”, da existência do fugidio bosão de Higgs.

A descoberta anunciada pelo Laboratório Europeu de Física de Partículas foi descrita como a demonstração experimental da existência — postulada em 1964, entre outros, pelo físico Peter Higgs –, de uma partícula que confere massa às outras partículas do mundo subatómico, permitindo explicar, no quadro do chamado modelo-padrão da física contemporânea, “por que é que a matéria existe”.

Sem prejuízo da explicação deste feito científico em termos simultaneamente rigorosos e acessíveis — tanto quanto possível, dada a complexidade do tema — a leitores menos versados nos conceitos da física actual, o PÚBLICO, tal como outros órgãos de comunicação, optou por descrevê-lo, em títulos de maior impacto jornalístico, como sendo a descoberta da “partícula de Deus”. “Suspense aumenta à espera das últimas notícias da partícula de Deus” foi o título escolhido para uma peça de antecipação publicada na última terça-feira, véspera do anúncio, no Público Online. E na capa da edição impressa de quinta-feira escreveu-se: “A ‘partícula de Deus’ existe, mas a história não acaba aqui”.

A escolha dessa expressão desagradou a alguns leitores, que consideraram inadequada e susceptível de más interpretações a utilização de conceitos estranhos à ciência para qualificar os resultados obtidos no acelerador de partículas instalado nos arredores de Genebra. O leitor Luís Mota classificou-a mesmo como uma “designação (…) demagógica, sensacionalista e/ou especulativa, (…) que pouco terá a ver com bom jornalismo”. Questionando que a sua utilização tenha algum “suporte na comunidade científica”, sugere que possa ter sido determinada pelo objectivo de “originar maiores parangonas”, ou mesmo por “razões da ordem do proselitismo” (religioso, presume-se).

A autora das notícias em causa, Ana Gerschenfeld, concordando que os cientistas não apreciarão a expressão “partícula de Deus”, defende no entanto a sua utilidade. “Nada como uma boa metáfora”, escreve, “para transmitir uma mensagem complexa ao público em geral”. E recorda que o recurso à identificação da partícula “pelo nome pelo qual ela é mais conhecida” foi também a escolha feita, neste contexto, em títulos e não só, por uma grande parte dos principais jornais de referência pelo mundo fora.

Penso que este é um bom exemplo para discutir a plasticidade de escrita requerida pelo jornalismo de divulgação científica e para reflectir sobre os seus dilemas específicos, a que procurarei dedicar uma futura crónica neste espaço. É claro que o recurso a metáforas e a analogias extraídas da experiência comum ou da cultura geral pode contribuir para explicar à maioria dos leitores de um jornal generalista o significado de conceitos e processos cuja descrição científica escapa ao seu conhecimento, quando não à sua compreensão, como acontecerá com as leis que regem ou as hipóteses que procuram explicar o estranho mundo das partículas subatómicas.

Por outro lado, esse e outros meios utilizados para procurar simplificar a informação transmitida, descodificar a terminologia própria da comunicação científica e atrair para um maior conhecimento dos avanços da ciência o interesse intelectual do leitor comum não podem ir ao ponto de pôr em causa o rigor técnico necessário à qualidade informativa. É por isso que o bom jornalismo sobre temas científicos exige não só a preparação específica de quem escreve sobre estas matérias, como um talento próprio para a divulgação — que, para ser eficaz, não pode subordinar-se às formas mais exigentes do discurso científico entre pares e, para ser sério, não pode afastar-se do seu verdadeiro conteúdo e alcance.

No caso da expressão “partícula de Deus” pode discutir-se a sua pertinência à luz destes citérios, e convirá ter em conta que o seu propósito ilustrativo ou comparativo está aberto a leituras diversificadas. Sem esgotar as possibilidades, pode ver-se nela uma analogia entre a descrição popular das características do instável e esquivo bosão de Higgs e o não menos popular entendimento de Deus, nas religiões monoteístas, como “algo” ou “alguém” que “está em todo o lado, mas que não podemos ver”, isto é, que escapa ao conhecimento dos nossos sentidos. Ou uma comparação entre respostas fundamentais — uma de natureza científica, outra de carácter religioso ou filosófico — à mais velha das perguntas (“por que existe o universo; por que existimos nós?”). Ou, mais simplesmente, um recurso estilístico para transmitir, recorrendo a campos de significação distintos, a noção de procura de resposta a um enigma ou mistério essencial que nos desafia.

Será mais útil, no entanto, conhecer a história da controversa expressão. Como explica o jornalista Nicolau Ferreira no espaço de destaque que o jornal dedicou a este tema no passado dia 5, a designação de “partícula de Deus” dada ao bosão de Higgs surgiu pela primeira vez no título de um livro do físico Leon Lederman (“The God Particle“). Poderíamos até atribuí-la ao reconhecido sentido de humor do autor, não fora a explicação dada para o caso pelo próprio Peter Higgs, que é recordada nessa peça. Lederman terá querido chamar ao livro “The goddamn particle” (qualquer coisa como “a maldita partícula”, ou “o raio da partícula”, cuja busca então excitava a imaginação dos físicos), e terá sido o seu editor que, tendo recusado essa ideia, nela encontrou talvez a inspiração para, com ironia ou sentido de marketing editorial, cunhar a expressão que desde então ficou colada, na imprensa, à partícula de Higgs e ao enorme investimento científico destinado a comprovar a sua existência.

Agora que esse esforço parece ter sido bem sucedido, mantém-se a controvérsia em torno da expressão: enquanto alguns apreciarão o seu poder simbólico, ela continuará a desagradar, mesmo como simples designação popular, a muitos cientistas, especialmente aos que vêem sinais de obscurantismo na mistura de entidades transcendentes com as hipóteses explicativas próprias da ciência. Como aconteceria, neste caso, com a sugestiva aproximação que o nome “partícula de Deus” pode estabelecer entre a “causa primeira” dos teólogos e este bosão cujas propriedades ajudarão a explicar “por que é que a matéria existe”. Curiosamente, a questão inquieta menos as autoridades religiosas, como se pode concluir do interessante artigo que António Marujo assinou na quinta-feira na edição on line, dando conta da “comoção e entusiasmo” com que o jornal do Vaticano e responsáveis da Igreja Católica em Portugal acolheram a descoberta da partícula… de Higgs.

Em suma, não vejo razões para criticar ou considerar “sensacionalista” o uso da expressão “partícula de Deus” nos títulos do PÚBLICO, desde que ela seja explicada (como foi na edição de quinta-feira) e usada com a moderação e o cuidado correspondentes ao facto de não possuir, obviamente, qualquer rigor científico. Procurar títulos sugestivos e imagens que facilitem a aproximação dos leitores aos temas noticiados é próprio do jornalismo. Fazê-lo na justa medida, sem sacrifício do rigor, da contextualização e da qualidade informativa, é o método que afasta as tentações mercantilistas e demagógicas do sensacionalismo.

Resta acrescentar que neste caso, para além de uma metáfora, estamos, como mostra a história da expressão, perante uma espécie de alcunha popularizada para designar um entidade física. E as alcunhas ou epítetos, referentes a pessoas ou objectos, devem, por razões de clareza e rigor (e de respeito, no caso das pessoas), ser grafadas entre aspas. Como o PÚBLICO fez (bem), com a “partícula de Deus”, na capa de 5 de Julho e no noticiário sobre este tema, mas não fez (a meu ver, mal) no título da peça da edição on line que desagradou ao leitor Luís Mota.

 José Queirós

 

 

“God Particle” ou “God’s Particle”?  (comentário de um leitor) 

O seu artigo no PÚBLICO de hoje [8 de Julho de 2012] tem alguma pertinência, mas infelizmente não contribui para a correcção terminológica nem para a clarificação do debate em torno da possível “descoberta” da incorrectamente chamada “partícula de Deus”. De facto, menciona no seu artigo o título do livro do físico Leon M. Lederman, “The God Particle: If the Universe is the Answer, What is the Question?” (1993), que sugeriu a alguns apressados o baptismo do bosão de Higgs como “A partícula de Deus”. Ora, se traduzirmos correctamente e soubermos minimamente o que está no dito livro (o que não é difícil, mesmo sem o ler, mas pesquisando na Internet), obtemos “A partícula-Deus” e não “A partícula de Deus”, duas expressões com significados bastante diferentes e até opostos em certo sentido. A primeira sugere que a dita partícula opera como se fosse ela própria um deus criador (no caso, da matéria ou massa), enquanto a segunda sugere que a partícula é um instrumento de Deus, que Deus criou para certos fins muito específicos mas determinantes para este nosso Universo. A primeira tem ainda a conotação (o autor tem um grande sentido de humor) de, na época em que o livro foi escrito, nunca ter sido vista nem deixado rasto de qualquer interacção com outras partículas, não se podendo afirmar com certitude que realmente exista (tal como Deus). Coisas muito diferentes, portanto. Se o autor quisesse escrever para título “God’s Particle” tê-lo-ía certamente feito. Ana Gershenfeld tem desempenhado um papel muito importante na divulgação para o grande público de coisas da ciência e técnica, mas infelizmente não é muito rigorosa, ou tanto como poderia ser. (Em mais de uma ocasião lhe chamei a atenção para que “circunference” em Inglês se traduz por “perímetro” e não por “circunferência”. A última vez foi, salvo erro, precisamente a propósito da inauguração do LHC no CERN). O assunto já é controverso sem as imprecisões dos divulgadores, quanto mais com os descuidos dos jornalistas.
8 de Julho de 2012
A. J. Franco de Oliveira  (Professor das Universidades de Évora e Lisboa)
Sesimbra

Um comentário a A divina partícula

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