O valor da lealdade em jornalismo

(Crónica da edição de 16 de Janeiro de 2012)

Na passada quarta-feira, às 10h16, apareceu no Público Online uma notícia intitulada “Ferreira Leite defende que doentes com mais de 70 anos paguem hemodiálise“. A proposta atribuída à ex-líder do PSD fora feita, explicava o texto, durante um debate televisivo que na noite da véspera marcara o arranque do novo programa “Contracorrente”, na SIC Notícias.

Pouco depois, as caixas de comentários da edição do PÚBLICO na Internet começavam a encher-se de reacções de dois tipos. Alguns intervenientes, tomando por boa a informação do jornal, manifestavam a sua indignação contra a antiga ministra, acusada de defender o que em certos casos era descrito como uma sugestão de “condenação à morte” de doentes idosos sem meios para pagar o tratamento (caro) de situações de insuficiência renal grave. Outros, pelo contrário, afirmando ter assistido à emissão do “Contracorrente”, acusavam o jornal de ter distorcido as declarações de Manuela Ferreira Leite, que ainda durante o debate esclarecera — em resposta à crítica de outro participante, António Vitorino — que o que defendia era que uns tivessem acesso gratuito aos tratamentos de hemodiálise e outros não, de acordo com as suas capacidades financeiras,

Inscrevem-se nesta segunda linha de reacção à peça do Público Online, assinada por Romana Borja-Santos, as queixas que recebi de alguns leitores. “O título desta notícia é errado e grave”, escreveu Miguel Crespo, notando que Manuela Ferreira Leite explicara, num outro momento do debate, que a sua proposta visava apenas “quem tenha rendimentos suficientes”. Comentando que “o contrário, isto é, fazer pagar a hemodiálise a quem não tivesse capacidade financeira, equivaleria a um acto criminoso”, o leitor conclui que a notícia em causa “é falsa, nada rigorosa e apenas serve para alimentar um clima de pânico que os lobbies das corporações agitam”.

No mesmo sentido se pronunciou Rodrigo de Jesus, que viu na peça do PÚBLICO “uma tentativa de sensacionalismo barato”, que não lhe parece “inocente”, embora ressalve — provavelmente em referência ao facto de a notícia referir, no sétimo parágrafo, que a crítica de Vitorino “obrigou Manuela Ferreira Leite a reformular a sua intervenção” no sentido já referido — que o título escolhido “se encontra notoriamente desajustado do conteúdo” do texto. “Os títulos”, sustenta, “devem estar enquadrados na totalidade da notícia” e “tudo deve estar devidamente contextualizado”. Também a leitora Inês Teixeira viu neste caso um exemplo de “mau jornalismo”: “distorção do contexto (…), extrapolações gravosas, falha de rigor e de critério jornalístico”.

Olhemos então para o contexto, após visionamento da emissão do “Contracorrente”, cujo painel de comentadores, moderado pela jornalista Ana Lourenço, inclui ainda, para além dos já citados, António Barreto, Pinto Balsemão e Sobrinho Simões. Discutiam-se as ameaças que a crise económica e financeira faz pairar sobre a sustentabilidade dos gastos públicos em saúde quando este último, médico e cientista, defendeu, numa intervenção marcante, ser incontornável promover o debate sobre o “racionamento” do recurso a terapias, meios de diagnóstico e equipamentos mais sofisticados e caros. Barreto acolheu e desenvolveu o tema, garantindo que o principal factor do crescimento incontrolado da despesa nos serviços públicos de saúde resultará, não do envelhecimento demográfico ou do tratamento das doenças crónicas, mas do uso (e preço) desproporcionado de certas tecnologias, equipamentos e medicação, muitas vezes resultante da “captura” dos Estados por interesses particulares.

Foi em torno dessa ideia do “racionamento” em saúde — no debate da qual, a meu ver, um jornalismo atento e sério encontraria a melhor justificação para relatar e depois desenvolver o que se disse num debate televisivo —, que o conhecido sociólogo achou por bem referir, num exemplo que nem terá sido o mais adequado à sua argumentação, que “há países onde se discute se se deve pagar a hemodiálise a pessoas com mais de 70 anos”. Atenta ao bom exercício da sua função, a jornalista moderadora perguntou-lhe se não achava “abominável” discutir “se alguém com 70 anos tem direito à hemodiálise”. Os segundos que Barreto levou a pensar na resposta permitiram uma interrupção de Manuela Ferreira Leite, para dizer que “têm sempre direito, desde que paguem”, e prosseguir com uma exposição um tanto confusa sobre medidas necessárias para sustentar um serviço público de saúde de “qualidade”.

A questão teria ficado provavelmente por aí, se Vitorino não voltasse atrás para se manifestar chocado com a expressão utilizada pela anterior líder do PSD, embora ressalvando de imediato que a frase em questão não exprimia, “de certeza absoluta”, o que ela quisera dizer. Para o antigo comissário europeu, “não é possível” sustentar que só os que têm dinheiro para pagar a hemodiálise “podem passar para além da meta dos 70 anos”. “Estamos”, sublinhou, “a falar de um problema de direitos humanos”. Poucos minutos depois, Manuela Ferreira Leite fez questão de se explicar melhor, assegurando que não tivera a intenção de sugerir que o acesso gratuito ao tratamento fosse retirado a quem não pode pagá-lo. Vitorino agradeceu o esclarecimento e aproveitou para dizer que “racionamento” não deve ser confundido com “exclusão”.

Feito este resumo para quem não viu o programa, devemos concluir que têm razão os leitores que protestaram? Victor Ferreira, editor do Público Online, pensa que não. Do seu ponto de vista, “o jornal fez aquilo que podia e devia para cumprir a missão que lhe cabe – dar a informação necessária e de melhor qualidade – para que sejam os leitores a formularem o seu próprio juízo sobre a matéria em causa”. Os seus argumentos e explicações poderão ser consultados, na íntegra, mais adiante.

O editor conta que a notícia gerou um grande número de “visualizações” na edição on line (de facto, quando a consultei, era mesmo a peça mais lida), mas também alguns comentários “extremamente negativos” para o jornal. Decidiu, por isso, rever a polémica intervenção de Ferreira Leite, para avaliar se a notícia era “factual” e “fiel” ao que se passara. Com o acordo de um colega, achou que “não havia nada a alterar no corpo da peça”, que até dava aos leitores “informação de contexto” sobre o tema da hemodiálise (é verdade: fica a saber-se que cerca de 10.000 pessoas recorrem ao tratamento no país, que o seu custo mensal por paciente rondará os 1900 euros e, pormenor relevante, que “cerca de 90% das unidades de tratamento são privadas”).

Victor Ferreira ponderou “mudar o título”, que “era um dos grandes alvos dos leitores mais críticos”, mas renunciou à ideia e explica porquê: “Apesar de compreender o argumento (…) que destaca o facto de Manuela Ferreira Leite ter acabado por se ‘explicar melhor’ mais à frente no debate, entendi que isso não apaga o que anteriormente disse uma ex-candidata a primeiro-ministro de Portugal, ex-titular de diversos cargos públicos (…)”. Essa era, defende, “a novidade” que sempre se procura “na construção de um título”.

Por meu lado, julgo que são os leitores que têm razão na crítica que fazem. É verdade que Manuela Ferreira Leite usou as palavras que acima citei, numa intervenção pouco clara, e que as notícias desse dia iriam descontextualizar por completo (menos a do PÚBLICO que outras, reconheça-se). Mas não é menos verdade que as clarificou e corrigiu no decurso do mesmo programa que foi relatado. Pôr em título, na sua boca, o que ela própria quis alterar frente aos espectadores, será formalmente “fiel” ao facto de que o disse (antes de o desdizer), mas não é próprio de um jornalismo leal e rigoroso. Não é um exemplo de fair reporting. E está longe de ser o modo mais indicado de dar a informação e permitir que “sejam os leitores a formularem o seu próprio juízo sobre a matéria”.

Acresce que a “novidade” não deve sobrepor-se ao rigor informativo, e que só este garantirá, no caso concreto, uma apreciação livre e fundamentada das opiniões — em qualquer caso obviamente polémicas — que a ex-líder do PSD possa ter sobre o futuro do Serviço Nacional de Saúde. Sem esquecer que houve, no debate da SIC, elementos de novidade bem mais relevantes para o interesse público, ainda que mais difíceis de trabalhar por um jornalismo apressado, do que a gaffe, o deslize ou a proverbial dificuldade de uma determinada figura política em exprimir-se de um modo mais claro e feliz.

Gostaria de presumir que não foi por acaso que a edição em papel (de quinta-feira) não publicou esta notícia. Que se teria percebido, em tempo útil, que o título usado na edição on line era abusivo. Mas a verdade é que a mesma ideia enganadora — “Manuela Ferreira Leite (…) sugeriu (…) que os idosos devem pagar os tratamentos de hemodiálise” — lá estava outra vez, numa breve nota na cabeça da página 8. Mostrando que não se compreendera que nada do que a ex-ministra defendeu no programa da SIC, mesmo levando em conta a possível confusão gerada por um aparte algo atabalhoado, permitiria concluir que ela visse no factor etário o ponto de fractura onde apoiar as suas objecções a um serviço público de saúde universal e tendencialmente gratuito.

José Queirós

 

 

Documentação complementar

Mensagem do leitor Miguel Crespo

O título desta notícia é errado e grave. Eu também assisti ao programa, e a afirmação primeira de Manuela Ferreira Leite suscitou dúvida em mim, bem como no dr. António Vitorino, que prontamente lha colocou. Manuela Ferreira Leite tratou então de esclarecer que [a sua proposta] era apenas para quem tenha rendimentos suficientes. Entenda-se que o contrário, i.e. fazer pagar hemodiálise a quem não tenha capacidade financeira, equivaleria a um acto criminoso. Entendo que a notícia que a jornalista avança é falsa, nada rigorosa e apenas serve para alimentar um clima de pânico que os lobbies das corporações agitam.
11 de Janeiro de 2012
Miguel Crespo

Mensagem do leitor Rodrigo de Jesus

Creio que o título desta notícia se encontra notoriamente desajustado do conteúdo. Este tipo de tentativa de sensacionalismo barato não fica bem no jornal Público, mas parece-me não ser inocente. Creio que o jornalismo sério e credível não passa por este tipo de títulos/manchetes para vender. Mais, acho grave que se arraste pessoas, quaisquer elas sejam, para colagens deste tipo. Os títulos devem estar enquadrados na totalidade da notícia e não a parte, tudo deve estar devidamente contextualizado. Seria educado uma correcção por parte do jornal e da jornalista.
11 de Janeiro de 2012
Rodrigo Amarao Balancho de Jesus

Mensagem da leitora Inês Teixeira

Isto é mau jornalismo. Uma vergonha para uma publicação com a história do Público. Distorção do contexto de todas as intervenções referidas, extrapolações gravosas, falha de rigor e critério jornalístico
12 de Janeiro de 2012
Inês Teixeira

 

Resposta de Victor Ferreira, editor do Público Online


1.A participação de Manuela Ferreira Leite no programa Contracorrente deu origem a duas notícias distintas no publico.pt.
2.Ambas foram feitas pela mesma jornalista, Romana Borja-Santos, depois de ter visto o programa disponibilizado online no site da estação de televisão que o emite.
3. A primeira notícia a ser publicada, às 9h06, tinha como título “Ferreira Leite lamenta ‘poucas notícias’ sobre cortes na despesa pública” (http://publico.pt/1528530) – uma leitura política da actualidade económica e das finanças públicas do país. Foi destacada como manchete na homepage publico.pt.
4.A segunda peça, com o título “Ferreira Leite defende que doentes com mais de 70 anos paguem hemodiálise”, foi publicada 1h10m depois. Foi inserida como link à manchete, ou seja, como notícia relacionada; tinha, por isso, menor visibilidade na homepage do publico.pt.
5.Em pouco tempo, ambas as notícias angariaram cada uma cerca de quatro mil visualizações.
6.Algum tempo depois, após conversar com a editora da Sociedade que trabalha mais directamente com a equipa online, decidimos “inverter” os destaques, isto é, colocar em manchete a notícia sobre o tema de saúde, mantendo como link a notícia sobre os cortes na despesa pública.
7.Essa maior visibilidade fez disparar as visualizações e os comentários, alguns dos quais extremamente negativos para a peça, para a jornalista que a assina – e que redige muitos textos de Saúde, área em que está a fazer uma pós-graduação universitária – e para o jornal.
8.Face a esses comentários, como editor, decidi rever a intervenção de Manuela Ferreira Leite. Questionei-me se deveria mudar alguma coisa na peça, que considero estar bem escrita, no sentido de ser factual e fiel ao que se vê e ouve. Debati estas dúvidas com outro colega e entendi que não havia nada a alterar no corpo da peça. O relato da Romana e as imagens e os sons do programa confirmam: a uma questão lançada a António Barreto pela moderadora (“Não acha abominável que se discuta se alguém que tem 70 anos tem direito à hemodiálise ou não?), responde Manuela Ferreira Leite nos seguintes termos: “Tem sempre direito se pagar. O que não é possível é manter-se um Sistema Nacional de Saúde como o nosso, que é bom, gratuito para toda a gente. Para se manter isso, o Sistema Nacional de Saúde vai-se degradar em termos de qualidade de uma forma estrondosa.”
9.O texto publicado reproduz as exactas palavras, e acrescenta informação (de contexto) sobre o tema da hemodiálise (ver quarto parágrafo), como seria de esperar de um jornalista com algum conhecimento na área.
10.Questionei-me também se deveria mudar o título. Já que esse aspecto era um dos grandes alvos dos leitores mais críticos.
11.Depois de rever as imagens, entendi que deveria mantê-lo. Apesar de compreender o argumento, esgrimido por alguns leitores na caixa de comentários, e que destaca o facto de Manuela Ferreira Leite ter acabado por se “explicar melhor” mais à frente no debate, entendi que isso não apaga o que anteriormente disse uma ex-candidata a primeiro-ministro de Portugal, ex-titular de diversos cargos públicos, uma “senadora”, para utilizar o substantivo que a estação de TV em causa aplicou aos membros do painel desse programa. Teria sido uma gaffe? Um deslize verbal ou de raciocínio, corrigido, clarificado, explicado, mudado, alguns minutos depois? Até pode ter sido tudo isso, mas entendi que a notícia e o título mantinham total fidelidade ao que se passou. Além do mais, não beliscava em nada a pertinência e importância dessa informação, num contexto em que o país assiste todos os dias a um desfilar de novidades e argumentos sobre mudanças de política e de prática no Sistema Nacional de Saúde e no sector privado da Saúde.
12.Outra crítica apontada é que descontextualizámos no título uma afirmação que, obviamente, não existe sozinha. É uma crítica recorrente ao jornalismo e também ela é compreensível. Porém, sendo um exercício sempre difícil, muitas vezes exercido no fio da navalha, a construção de um título tenta sempre responder a um objectivo: dar uma novidade. E a novidade aqui é o que uma “senadora” disse sobre um determinado assunto sensível e de importância social. Mudou de opinião depois? Não sei se mudou, mas a notícia (e portanto o título) tinha sempre de se centrar na declaração inicial (dou este exemplo: um dos candidatos republicanos às presidenciais norte-americanas, Rick Perry, esqueceu-se durante um debate transmitido pela TV, do nome de um departamento federal que extinguiria caso fosse eleito candidato – isso foi notícia em todo o mundo; ele ter-se-á lembrado mais tarde desse departamento, porém os títulos não deixaram de se centrar na declaração inicial).
13.Dito isto, resta acrescentar que o jornal fez aquilo que podia e devia para cumprir a missão que lhe cabe – dar a informação necessária e de melhor qualidade – para que sejam os leitores a formularem o seu próprio juízo sobre a matéria em causa. Fê-lo como? Publicando um texto que não descreve apenas uns segundos de um debate, mas que se preocupa em contextualizar o tema em questão; e aproveitando as potencialidades multimédia do online, embebendo na notícia um excerto vídeo com a pergunta da moderadora e a resposta inicial de Manuela Ferreira Leite (34 segundos), além de um link (hiperligação) para o vídeo completo de todo o debate. O jornalismo é sempre discutível – e ainda bem. Creio que face ao descrito, não haverá discussão sobre a boa fé com que actuámos – e que tantos comentários de leitores tentaram pôr em causa.
13 de Janeiro de 2012
Victor Ferreira

 

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