(Crónica da edição de 12 de Dezembro de 2010)
Camarate: acidente ou atentado? 30 anos após o desaparecimento de Sá Carneiro e Amaro da Costa pode dizer-se que a causa da queda da avioneta Cessna em que viajavam é “um caso ainda em aberto”, como se lê no título que Freitas do Amaral deu ao livro que acaba de publicar, em que apela à reabertura da investigação sobre os motivos da morte trágica dos seus companheiros na liderança da Aliança Democrática.
Sabe-se como as primeiras investigações judiciais, hoje geralmente desqualificadas, apontaram para a tese do acidente e conduziram ao arquivamento do processo. Sabe-se como a pressão dos que não se conformaram com essa conclusão levou à constituição de sucessivas comissões de inquérito no Parlamento, até que a última, em 2004, analisando novos factos e testemunhos, concluiu unanimemente pela tese do atentado. Sabe-se que, em seguida, a Procuradoria-Geral da República viria a aceitar a existência de indícios de crime, mas insistiu na prescrição do processo. Sabe-se que no Parlamento deverá ser constituída em breve mais uma comissão de inquérito (a nona), agora eventualmente mais centrada nos negócios de tráfico de armas que Amaro da Costa estaria a investigar e que, segundo uma tese que foi ganhando peso, teriam feito do então ministro da Defesa o alvo de um plano homicida.
Esta evolução na percepção pública do caso, para a qual terá contribuído a força persuasiva dos elementos reunidos em vários livros que defendem ter existido um crime que não foi julgado, poderá explicar o facto de nos últimos tempos a dúvida anteriormente presente na generalidade das referências da imprensa ao incidente de Camarate ter vindo a ser substituída por vezes, neste jornal, pela afirmação — sem reticências — da tese do atentado.
Sendo este, no entanto, “um caso ainda em aberto”, a que faltou a decisão de um tribunal, a designação de assassínio dada à morte do antigo primeiro-ministro e dos seus companheiros de viagem na avioneta que se despenhou em Camarate estará longe de ser consensual. Mostra-o, por exemplo, a carta do leitor A. Martins da Silva, criticando um texto aqui publicado no passado dia 6 de Novembro, dedicado à mais recente biografia de Sá Carneiro, da autoria de Miguel Pinheiro. A peça, assinada por Maria José Oliveira, recordava logo a abrir o dia da morte de Sá Carneiro, “a 4 de Dezembro de 1980, vítima de um atentado”. Para o leitor citado, tal afirmação “sobre teorias não provadas” é “grave” e “manipula a história”.
A jornalista justifica a afirmação recordando que a última comissão de inquérito ao caso concluiu, há seis anos, que a queda da avioneta “resultou de um atentado”, que “isso mesmo foi confirmado por um vasto número de peritos, das mais diversas áreas”, e que “os factos novos” então enviados à Procuradoria “justificavam a abertura de um inquérito criminal, mas o Ministério Público decidiu que o caso já tinha prescrito”. Informações que decorrem dos relatórios finais divulgados pelo Parlamento e que, admite, “poderia ter sido útil acrescentar” ao texto.
No passado dia 4, numa edição do caderno P2 dominada pelo 30º aniversário da morte de Sá Carneiro, Miguel Gaspar constatava que “duas concepções prevalecem até hoje — acidente ou atentado contra Amaro da Costa” para explicar “a misteriosa queda” da avioneta. Mas uma outra peça, assinada por Paulo Moura, que historiava as investigações (salientando as suas deficiências e contradições) e a sucessão de inquéritos parlamentares, tinha o título assertivo (e condizente com o texto) “Houve crime em Camarate. Mas quem o cometeu?“. Só o pós-título introduzia uma ligeira dúvida: “Há hoje algum consenso (não total) de que o Cessna caiu em Camarate devido à explosão de uma bomba a bordo”.
Quis saber se o facto de o caso ter vindo nos últimos tempos a ser explicitamente referido em peças noticiosas como um atentado, em alternativa a fórmulas dubitativas usadas no passado, correspondia a uma orientação editorial assumida pelo PÚBLICO.
Respondeu-me a directora do jornal que “não há qualquer indicação específica sobre como o PÚBLICO classifica a morte de Sá Carneiro”, nem “qualquer objectivo de nos colocarmos à esquerda ou à direita numa questão que, como todos sabemos, foi um tema de paixões cegas e generalizadas — mas já não é”. Bárbara Reis considera, no entanto, que, “de uma forma geral”, “há muito que é comummente aceite como correcta a conclusão da oitava e última comissão parlamentar, de 2004, de que a queda do avião se deveu a ‘acção criminosa'”, e que para isso ” muito contribui o facto de as conclusões dessa comissão terem sido aprovadas por unanimidade no Parlamento – com todos os partidos e deputados”. Conclui, apesar disso, que “em rigor absoluto, o correcto será dizer ‘alegado atentado’, uma vez que o caso não foi a tribunal”.
É uma conclusão prudente, que respeita as regras do jornal e as diferentes sensibilidades dos leitores perante um caso sem desfecho jurídico. Não é, no entanto, a única possível, perante a inexistência de uma deliberação judicial ou da expectativa de ela vir a existir. Face aos dados até hoje apurados e publicados pelo Parlamento, e se não tiver razões para pôr em causa a sua credibilidade, seria igualmente legítimo — ainda que sempre discutível — que o PÚBLICO afirmasse nesta matéria uma convicção alinhada com a conclusão unânime dos deputados. Desde que essa opção editorial fosse claramente assumida, e os seus fundamentos devidamente explicados aos leitores.
Títulos para descodificar
O destaque do PÚBLICO do passado dia 3 era dedicado à “atribulada reunião do grupo parlamentar do PS” (cito a notícia de abertura, assinada por Nuno Simas), em que vários deputados socialistas se opuseram à decisão partidária de “chumbar o projecto de lei do PCP sobre a taxação de dividendos já em 2010 sem apresentar qualquer proposta alternativa”. Como os leitores recordarão, tratou-se de um episódio marcante na polémica suscitada pela decisão tomada por algumas grandes empresas, de anteciparem a distribuição de dividendos aos seus accionistas para evitarem as consequências fiscais previstas no Orçamento de Estado para 2011. Conforme se explicava, o líder parlamentar socialista, Francisco Assis, “jogou a [sua continuidade na] liderança”, forçando a “disciplina” na bancada, para evitar que os deputados do PS “votassem ao contrário das orientações do Governo”.
A peça, rica em detalhes, mostra como prevaleceu a posição de Assis — apesar de duas abstenções, um voto em sentido oposto e uma pequena chuva de declarações de voto — e é uma boa ilustração da peculiar relação que muitos eleitos estabelecem entre o que afirmam defender e o modo como votam.
O que causou natural perplexidade a alguns leitores foi o título escolhido para encimar a notícia — “Só ameaça de demissão de Assis travou revolta na Bounty socialista” —, por dificultar a compreensão imediata e se afastar do estilo descritivo predominante na área noticiosa do jornal. De facto, onde deveriam prevalecer a clareza e a substância informativa, optou-se por uma referência um tanto enigmática e por uma analogia duvidosa, embora atenuadas por um pós-título mais elucidativo: “Líder parlamentar do PS forçou ‘clarificação’ e travou lei dos dividendos do PCP. Preço: a divisão interna”.
Notando que “os títulos são sempre uma arte difícil”, o autor da notícia alega que “a inspiração cinéfila serviu como uma tentativa de tornar o título mais apelativo”. “Afinal”, diz, “era a tentativa de descrição da mais turbulenta reunião do grupo parlamentar do PS desde que está em minoria no Parlamento”.
O gosto por alusões e referências culturais para tornar um título “apelativo” é comum (a meu ver demasiado comum) no jornalismo. Às vezes, se bem aplicado, pode até enriquecer uma reportagem ou uma crónica. No título de uma notícia é desadequado e conflitua com a desejável clareza informativa. Nem todos os leitores terão de estar familiarizados com um livro e um filme dos anos 30, por importante que este último seja para os mais cinéfilos. E os que conheçam a história desse motim marítimo do século XVIII terão dificuldade em ver alguma pertinência na analogia com as desventuras socialistas. “Revolta”, embora aparentemente pífia, ainda vá. Agora “na Bounty“, a que propósito? Se a isto juntarmos que em nenhuma parte do destaque se explica o que foi essa “revolta na Bounty“, podemos concluir que a escolha de um título algo críptico, e por isso menos eficaz, deveria ter sido evitada. Recomendava-o a consideração pelos leitores em geral e, ao contrário do que possa parecer, sairia beneficiada a imagem de qualidade do jornal.
José Queirós
Documentação complementar
Carta do leitor A. Martins da Silva
” (…) No caderno P2 (…) do dia 6 de Novembro de 2010 (…) a jornalista comenta o trabalho biográfico sobre Francisco Sá Carneiro da autoria do jornalista Miguel Pinheiro. E a jornalista do Publico começa a sua peça jornalística escrevendo: ‘Provavelmente não há ninguém neste país com mais de 35 anos que não se recorde do dia em que Francisco Sá Carneiro morreu, a 4 de Dezembro de 1980, vítima de um atentado. O avião transportava também Snu Abecassis, Adelino Amaro da Costa e a mulher, Manuela, e António Patrício Gouveia. Foi um dia de comoção nacional. Miguel Pinheiro, então com seis anos, guarda algumas imagens vagas – os pais a correrem para a televisão, o país em estado de choque, pesaroso, com a morte trágica e abrupta do primeiro-ministro, então com 46 anos. Três décadas depois, Miguel Pinheiro, jornalista e director da revista Sábado, é o autor de uma biografia de Sá Carneiro…’.
Se (…) se dedicar a ler apenas este pequeno fragmento, que eu sublinhei, terá de fazer um exercício quase extremo para conseguir entender o texto. Isso porque se misturam dados factuais – a morte de FSC – com afirmações sobre teorias não provadas – ‘vitima de atentado’. Que se conheça, até hoje e apesar das múltiplas ‘comissões parlamentares’ que investigaram essa morte, não foi possível confirmar que não foi um acidente. Mas, além dessa afirmação, toda a prosa é escrita num texto pobre e descaracterizado. Para documentar o que vos digo: a jornalista afirma ‘vítima de um atentado’ (?) – como? E diz depois: ‘o avião transportava também…’. Qual avião? O que foi vítima de atentado? Mas, antes, não afirmou que terá havido um atentado a um avião. Mas será que foi o avião e não a pessoa? Além disso, será que também se poderá dizer que só houve uma vítima? Isso porque diz-se que ‘o avião transportava também ….’, nada se dizendo sobre o que aconteceu a essas pessoas. Enfim, uma notícia em que se fazem afirmações graves e se manipula a história, num exercício literário pobre e incorrecto. É com estes textos do Jornal Público que terei de conviver? (…)”.
A Martins da Silva
Porto
Esclarecimento da jornalista Maria José Oliveira
A última comissão parlamentar de inquérito à tragédia de Camarate, decorrida em 2004, concluiu que a queda do avião que transportava Francisco Sá Carneiro, Snu Abecassis, Adelino Amaro da Costa e a mulher, Manuela, e António Patrício Gouveia resultou de um atentado. Isso mesmo foi confirmado por um vasto número de peritos, das mais diversas áreas, que foram ouvidos no Parlamento. Os factos novos enviados para a Procuradoria-Geral da República justificavam a abertura de um inquérito criminal, mas o Ministério Público decidiu que o caso já tinha prescrito. Tudo isto, incluindo a resposta do então procurador-geral da República, Souto Moura à comissão parlamentar, está publicado no livro “Camarate – relatórios finais das comissões parlamentares de inquérito”, editado pela Assembleia da República em 2005. Admito que poderia ter sido útil acrescentar esta informação no meu texto. Quanto às restantes questões do leitor, sublinho que o trabalho se centrava na biografia de Francisco Sá Carneiro, da autoria de Miguel Pinheiro.
Maria José Oliveira
Perguntas à direcção do PÚBLICO
1) Os dados disponíveis (nomeadamente as conclusões da última comissão parlamentar de inquérito) são considerados suficientes para o PÚBLICO assumir sem reticências que se tratou de um atentado?
2) Há orientações editoriais no sentido de se referir explicitamente o caso como atentado, e não sob a forma dubitativa de atentado ou acidente, como creio ter acontecido durante alguns anos nos textos noticiosos?
J.Q.
Resposta da directora do PÚBLICO
Em relação a Camarate, não há qualquer indicação específica sobre como o PÚBLICO classifica a morte de Sá Carneiro. Ou seja, não há qualquer objectivo de nos colocarmos à esquerda ou à direita numa questão que, como todos sabemos, foi um tema de paixões cegas e generalizadas – mas já não é.
Escrevemos num dos textos do “Especial Sá Carneiro” que “duas convicções prevalecem até hoje – acidente ou atentado”. De uma forma geral, no entanto, há muito que se adoptou como correcta a conclusão da oitava e última comissão parlamentar, de 2004, de que a queda do avião se deveu a “acção criminosa”, como de lê no relatório (que fala também em engenho explosivo e sabotagem). Para isso muito contribui o facto de as conclusões dessa comissão terem sido aprovadas por unanimidade no Parlamento – com todos os partidos e deputados.
No entanto, e em rigor absoluto, o correcto será dizer “alegado atentado”, uma vez que o caso não foi a tribunal.
9 de Dezembro de 2010
Bárbara Reis