Erros e correcções: um teste à seriedade profissional

(Crónica da edição de 28 de Novembro de 2010)



A edição nº 7537 do PÚBLICO, do passado dia 23, ficou marcada por um dos erros mais nocivos para a reputação de um jornal: uma manchete falsa. “Um erro muito grave”, na expressão, que só posso subscrever, da sua directora. Talvez porque a admissão e a correcção do erro não se fizeram demorar, nem foram acompanhadas de justificações duvidosas, não me chegaram, a este respeito, protestos significativos. Recebi, em contrapartida, a reclamação de uma leitora, que considera que “o destaque dado à notícia falsa não é compensado pela correcção posterior”.



Para analisar o erro e a correcção convém começar por recordar os factos. Na passada terça-feira, o jornal anunciava em manchete: “Passivo financeiro de Lisboa aumenta 275 milhões em 2011“. O tema era desenvolvido com grande relevo na secção “Local”, onde a notícia da alegada derrapagem das contas da Câmara de Lisboa se fazia acompanhar de uma infografia em que se destacava erradamente o número de 353 milhões como sendo o valor previsto pela autarquia como passivo financeiro na execução orçamental de 2011. A partir de um erro grosseiro inicial (“Lemos mal os documentos oficiais”, viria a explicar uma Nota da Direcção), a notícia partia para interpretações inquinadas e para a audição de vereadores da oposição com base em pressupostos falsos.

O erro só foi detectado na própria terça-feira, quando a manchete já estava na rua e marcava a actualidade, dando origem a uma conferência de imprensa do presidente da Câmara, António Costa, expressamente convocada para desmentir o PÚBLICO. Ainda nesse dia, a direcção do jornal fazia publicar na edição on line o seu próprio desmentido, explicando: “Lemos na rubrica ‘passivos financeiros’ dois números: 77,9 milhões para 2010 e 353,5 para 2011. Subtraímos 77,9 aos 353,5 e chegámos a 275 milhões de euros. A leitura correcta, porém, é que os 353,5 milhões são o valor que a câmara prevê amortizar da sua actual dívida”.

“Não gostamos de falhar e de dar a informação errada aos leitores. E também não gostamos de não assumir os erros”, concluía, com as devidas desculpas, a Nota da Direcção, retomada no dia seguinte na edição em papel, ao lado de uma notícia intitulada “Passivo da Câmara de Lisboa vai baixar e não aumentar no próximo ano“. A mesma informação, antecedida da menção “Público errou”, figurava na capa da edição de quarta-feira.

Aceitando-se que a “má leitura” da previsão orçamental da Câmara de Lisboa explica o desastre jornalístico subsequente, é preciso dizer que o caso indicia vulnerabilidades sérias nos mecanismos que devem garantir a qualidade da informação publicada. Casas decimais à parte, só a fatal subtracção operada sobre pressupostos errados parece ter sido bem feita. A notícia desmentida não prima pela clareza e é muito marcada pelo jargão do “economês”, vício sempre a evitar e particularmente criticável no texto de uma manchete. A leitura correcta de orçamentos, por outro lado, exige alguns conhecimentos básicos, que não podem deixar de existir na redacção de um jornal. “É uma competência obrigatória”, reconhece a directora, Bárbara Reis, acrescentando: “Não houve um segundo olhar dentro da própria redacção, o que devia ter acontecido e só aconteceu no dia seguinte”.

A escolha de uma manchete, por sua vez, não pode resultar da simples descoberta de um número num documento oficial, sem mais preocupações pelo contexto e pelas necessárias informações complementares. Ainda que a leitura tivesse sido correcta, e não foi, ela obrigaria os responsáveis editoriais a formular as perguntas adequadas e a procurar as respostas possíveis: é essa a lógica do bom jornalismo, que teria provavelmente evitado o erro cometido. Fica a ideia de que nada se procurou averiguar e aprofundar fora das paredes do jornal, num tema a que se dedicou o espaço nobre da capa e os textos de abertura do “Local”, acompanhados de uma destacada infografia que os desmentidos tornaram inútil.

Um título como o que foi escolhido e um texto que não se furta à interpretação exigiam a busca do contraditório e não podiam dispensar a procura de esclarecimentos junto dos responsáveis pela proposta orçamental. “O PÚBLICO tentou obter explicações para estes números (…), mas ninguém na câmara se mostrou disponível para o fazer”, escreveram os autores da peça. Quis saber que esforços foram realmente feitos para obter essas explicações, e Bárbara Reis respondeu-me: “Os jornalistas do PÚBLICO ligaram repetidas vezes para a assessora de imprensa da câmara, a partir das 13h00, e, não tendo conseguido contactá-la, ligaram e deixaram recado junto da vereadora das Finanças. A assessora de imprensa só nos atendeu ao fim da tarde e a das Finanças não devolveu a chamada. Tentámos? Sim. Fizemos o suficiente? Não”.

Também me parece que não, e permito-me acrescentar que a invocação de telefonemas e recados sem resposta pronta não pode ser aceite com ligeireza como justificação para o não cumprimento de deveres profissionais. Até para que não se confunda com a conhecida técnica do mau jornalismo, que recorre aos “contactos infrutíferos até à hora do fecho” para evitar ver desmentidas em tempo útil “informações” não fundamentadas. Acresce que nenhuma especial urgência informativa justificaria neste caso o risco de uma atenção menor às boas práticas, quer por parte de quem redigiu e editou a peça, quer de quem a escolheu para manchete. O preço dessa leviandade paga-se em danos à credibilidade, como ilustra a frase — que será injusta mas é nestas circunstâncias compreensível — da leitora Maria Fernanda Almeida, que reagiu à explicação da “má leitura” dos documentos comentando que ela lhe parece “um acto falhado”, e perguntando: “Leram aquilo que gostariam de ter lido?”.

Na reclamação que me fez chegar, a mesma leitora mostra-se insatisfeita com a correcção efectuada. Escreve: ” O destaque dado à notícia falsa não é compensado pela correcção posterior. Embora tenha sido feita uma chamada na primeira página (O Público errou) remetendo para a correcção da notícia feita no ‘Local’, a sua visibilidade é quase anulada pela opção de a colocar por baixo de um título enorme”.

A directora do PÚBLICO discorda: “Sentimos que, pelo contrário, reagimos ao erro como um jornal sério”. E argumenta: “Precisamente por ter sido um erro muito grave, decidimos fazer uma coisa rara, e talvez inédita. Sem esperarmos pelo regulador, pelo provedor ou por um pedido formal de direito de resposta da Câmara de Lisboa, fizemos duas coisas: publicámos no online e no papel, com muita visibilidade, uma notícia a admitir o erro, a explicar como ele tinha acontecido e a dar a informação correcta e, em simultâneo, uma nota da direcção a pedir desculpa ao presidente da Câmara e aos leitores. No online, publicámos no próprio dia 23. No papel, no dia seguinte, publicámos uma correcção na primeira página que consideramos visualmente muito distintiva: porque o título tinha um tamanho de letra maior do que é normal, porque não era acompanhado por texto (fazendo com que se demarcasse dos restantes títulos) e porque o antetítulo — ‘Público errou’ — era encarnado, uma cor forte e diferente da usada tipicamente na primeira página”.

Esta questão da proporcionalidade dos desmentidos é um problema clássico dos jornais. Parece-me justo reconhecer que a direcção do PÚBLICO reagiu com seriedade e de modo célere, e que as várias iniciativas tomadas para remediar o erro, descritas por Bárbara Reis, devem ser assinaladas, até porque contrariam as práticas infelizmente instaladas em boa parte da imprensa. O PÚBLICO não ocultou nem tentou minimizar a falha grave de uma manchete falsa. E nisso não fez mais que o seu dever.

Poderia ter dado maior destaque ao desmentido na capa da edição de 24? Certamente que sim, e penso que teria sido desejável. O que não me leva no entanto a subscrever, excepção feita a casos muito especiais, a tese de que um desmentido deverá ter sempre um relevo gráfico pelo menos igual ao da notícia que corrige. Uma tal regra obrigaria a fazer da correcção de uma manchete uma nova manchete, ainda que preterindo temas noticiosos mais relevantes. Num caso como este, o respeito pelos leitores (por todos os leitores) aconselha que a visibilidade e honestidade do desmentido sejam garantidas sem prejuízo de a escolha da manchete do dia se subordinar ao critério do maior interesse jornalístico.

A meu ver, o PÚBLICO enfrentou no essencial de forma positiva o teste exigente e sempre desagradável de se desmentir a si próprio. Importa, agora, concentrar a atenção na revitalização dos mecanismos editoriais que falharam, para evitar ter de voltar a fazê-lo. A precipitação e o insuficiente escrutínio interno sobre o processo de produção das notícias são inimigos da competência e do rigor.

José Queirós



Documentação complementar



Reclamação da leitora Maria Fernanda Almeida

A notícia de 1ª página sobre o passivo financeiro da Câmara de Lisboa, dada com grande destaque, afinal, revelou-se falsa… Porquê ? Porque, segundo a nota da Direcção, “Lemos mal os documentos oficiais”. Considero grave, porque me parece indiciar um acto falhado: leram aquilo que gostariam de ter lido? Quanto pior, melhor?

Mas é também grave porque o destaque dado à notícia falsa não é compensado pela correcção posterior. Embora tenha sido feita uma chamada na 1ª página (O Público errou) remetendo para a correcção da notícia feita no “Local”, a sua visibilidade é quase anulada pela opção de a colocar por baixo de um título enorme.Tenho pena que isto possa ter acontecido num jornal que gostaria de continuar a considerar “de referência”.

24 de Novembro de 2010

Maria Fernanda de Melo Henriques de Almeida

Perguntas à Direcção do PÚBLICO

1. A Direcção considera que a leitora tem razão ao questionar a “visibilidade” da correcção?

2. Para além do que já foi explicado aos leitores, há mais elementos que possam ajudar a compreender como aconteceu este erro?

3. A leitura correcta de orçamentos não é uma competência básica que tem de existir numa redacção? Não houve tempo ou recursos para garantir a qualidade do trabalho?

4). O que quer dizer exactamente a frase incluída na notícia de 23/11 “O PÚBLICO tentou obter explicações para estes números (…) mas ninguém na Câmara se mostrou disponível para o fazer”? Que esforços foram realmente feitos para obter essas explicações?

JQ





Resposta da directora do jornal



1. Precisamente por ter sido um erro muito grave, decidimos fazer uma coisa rara, e talvez inédita: sem esperarmos pelo regulador, pelo provedor ou por um pedido formal de direito de resposta da câmara de Lisboa, fizemos duas coisas: publicámos no online e no papel, com muita visibilidade, uma notícia a admitir o erro, a explicar como ele tinha acontecido e a dar a informação correcta e, em simultâneo, uma nota de direcção a pedir desculpa ao presidente da câmara e aos leitores.

No online, publicámos no próprio dia 24. No papel, no dia seguinte, publicámos uma correcção na primeira página que consideramos visualmente muito distintiva: porque o título tinha um tamanho de letra maior do que é normal, porque não era acompanhado por texto (fazendo com que se demarcasse dos restantes títulos) e porque o antetítulo – “Público errou” – era encarnado, uma cor forte e diferente da usada tipicamente na primeira pagina.

Por todas estas razões sentimos que, pelo contrário, reagimos ao erro como um jornal sério.

3. Sim, é uma competência obrigatória. Não houve um segundo olhar dentro da própria redacção, o que devia ter acontecido e só aconteceu no dia seguinte.

4. Em relação aos esforços feitos, os jornalistas do Público ligaram repetidas vezes para a assessora de imprensa da câmara, a partir das 13h00, e, não tendo conseguido contactá-la, ligaram e deixaram recado junto da vereadora das Finanças. A assessora de imprensa só nos atendeu ao fim da tarde e a das Finanças não devolveu a chamada. Tentámos? Sim. Fizemos o suficiente? Não.

Bárbara Reis

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