(Crónica da edição de 20 de Junho de 2010)
Ainda não tinham passado duas semanas sobre o assalto de comandos israelitas à flotilha que se propunha furar o bloqueio à Faixa de Gaza, em que foram mortos nove activistas turcos, quando na manhã do último domingo a edição on line do PÚBLICO anunciou em título que “Mahmoud Abbas concorda com o bloqueio israelita a Gaza”. Por muito profundas que sejam as conhecidas divergências estratégicas entre o presidente da Autoridade Palestiniana e a liderança do Hamas em Gaza, este era sem dúvida um título surpreendente, e até bombástico, numa altura em que se multiplicavam as pressões internacionais, incluindo as de tradicionais aliados de Israel, contra o cerco ao território palestiniano.
Um tal título mereceria certamente o relevo que lhe foi dado, ou ainda mais, se tivesse fundamento sólido. Mas não tinha, e por isso julgo que a publicação da notícia, nos termos em que foi feita, configura uma conduta profissional pouco responsável.
Valerá a pena, para compreender e apreciar este caso, examinar mais de perto o que se passou. A partir das 11h09 da manhã do passado dia 13/6, um leitor que consultasse a edição on line deste jornal para se pôr a par das últimas notícias deparava, sob o título referido, com o seguinte parágrafo de abertura: “O Presidente da Autoridade Palestiniana (AP), Mahmoud Abbas, opõe-se ao levantamento do bloqueio naval israelita à Faixa de Gaza, por entender que isso iria ajudar o Hamas, noticiou hoje o jornal Haaretz“. Como único suporte desta “informação” que o PÚBLICO transformou em título assertivo e disparatado, lia-se ainda, numa remissão para o texto do diário israelita: “Teria sido isso o que ele [Abbas] disse ao Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, durante a reunião que quarta-feira [9/6] tiveram na Casa Branca”.
Foi a partir deste “teria sido…” que o PÚBLICO se permitiu “informar” os leitores do que descreveu como se descreve um facto apurado: o líder palestiniano, afinal, “concorda com o bloqueio israelita”…. Numa primeira leitura do título, ficaria até a ideia de que se estava a noticiar uma declaração de Abbas, como reconhece o director adjunto Miguel Gaspar, em resposta às questões que coloquei à direcção editorial sobre este assunto: “É um erro que assumimos. A notícia não poderia ter sido titulada de forma tão assertiva”.
Mas esse é, a meu ver, apenas um dos erros cometidos neste caso. O texto do jornal israelita que deu origem à peça do PÚBLICO data da madrugada de 13; o encontro entre Abbas e Obama foi a 9. A informação tardia sobre o que o primeiro teria dito ao segundo quatro dias antes não justificaria o confronto com o que entretanto fora divulgado na generalidade dos media internacionais? O director adjunto refere que “os elementos de enquadramento da notícia poderiam focar as declarações públicas feitas por altura do encontro” entre Abbas e Obama. Sem dúvida. Tivesse tal diligência sido efectuada, e teria sido explicado que, de acordo com os relatos disponíveis de declarações gravadas, Mahmoud Abbas afirmou publicamente em Washington que, na sequência do ataque israelita à flotilha, “a principal exigência palestiniana é o fim do bloqueio a Gaza”, e que discutiu com Obama como lhe “pôr termo”.
Quanto ao que de mais sensível possa ter sido dito no encontro privado entre os dois estadistas, e tendo em conta todos os matizes da tortuosa política do Médio Oriente, não há que excluir o que um jornal com boas fontes possa ter conseguido apurar para lá da cortina das declarações oficiais. Miguel Gaspar argumenta que “o Haaretz é um jornal muito bem informado e publica com regularidade histórias em exclusivo, citando fontes próprias”. Porém, o que escreveu neste caso (reporto-me à edição em inglês do Haaretz.com) não sustenta, sem mais qualificações, o título que usou (“Abbas a Obama: Sou contra o levantamento do bloqueio naval a Gaza”). E muito menos o do PÚBLICO.
Convém sublinhar um ponto relevante: a peça do jornal israelita cita na verdade fontes (não identificadas) em abono da sua história. “Diplomatas europeus” que teriam recebido indicações da Casa Branca acerca das conversações entre o líder palestiniano e o presidente norte-americano “disseram” — escreveu o Haaretz — “que Abbas insistiu com Obama na necessidade de se abrirem as passagens fronteiriças para a Faixa de Gaza e se aliviar o cerco, mas só por meios que não reforcem o Hamas”. O que significaria dar prioridade à normalização das passagens terrestres e adiar o levantamento do bloqueio naval, provavelmente devido à maior dificuldade em inspeccionar os carregamentos por via marítima.
Esta informação atribuída a diplomatas europeus (que, curiosamente, não encontrou eco significativo na imprensa europeia) vale o que valer a credibilidade do órgão de comunicação que a publica, no caso um jornal influente e de reputação sólida. Sucede que esses dados, que são precisamente os que permitem sustentar o sentido (não o título) da notícia do diário israelita, foram ignorados na peça do PÚBLICO on line, o que a desvaloriza. E, em qualquer caso, nunca autorizariam que se escrevesse que “Abbas concorda com o bloqueio israelita “.
Diz-me o leitor António Pereira que protestou de imediato contra o que leu na edição electrónica. Queixa-se, e não é o único, de o seu comentário não ter sido publicado, o que a direcção do jornal garante não ser do seu conhecimento. E acrescenta que achou “fantástico” ter descoberto mais tarde que o texto passara a incluir a menção “Abbas desmente a notícia”, sem que no resto fosse alterado o seu teor. Cabe aqui esclarecer que, ainda na manhã do dia 13, a OLP divulgou um comunicado desmentindo a notícia do Haaretz, classificando-a de “desinformação” para “desviar a responsabilidade de Israel em pôr fim ao cerco ilegal e desumano a Gaza”. “O Presidente Abbas”, lia-se nesse texto, “tem vindo a exigir o completo e incondicional levantamento do cerco”, e “reiterou-o nos recentes encontros com líderes mundiais”.
Quem, no último domingo, tenha acedido umas horas mais tarde à edição on line, pôde encontrar alterações na notícia. Registava-se que a peça fora “actualizada” às 15h35, e passava a ler-se, no antetítulo e numa frase metida um tanto “a martelo” a seguir ao primeiro parágrafo, que um porta-voz de Abbas desmentira as “declarações” que lhe tinham sido atribuídas. O resto do texto, a começar pelo título, permanecia igual. E assim continua, no momento em que escrevo, embora remetido para uma página de arquivo. O que levou outro leitor, Filipe Grácio, a enviar-me, pouco depois da referida “actualização”, uma mensagem em que se lê: “É lamentável um título de uma notícia ser desmentido no conteúdo da própria notícia (…). Espero uma alteração do título”. Presumo que ainda estará à espera.
No dia seguinte, 14/6, na edição em papel, já a informação atribuída a “diplomatas europeus, citados pelo Haaretz” era discretamente acolhida, na parte final de uma peça dedicada a outros desenvolvimentos da situação em Gaza, na qual também se aludia ao desmentido dos responsáveis palestinianos. O destaque que fora dado ao caso na véspera desaparecera (“o desmentido tirou-lhe relevância”, explica Miguel Gaspar), sem que o jornal tenha feito qualquer esforço para esclarecer os leitores sobre os motivos que levaram a alterar o sentido da informação e o relevo que lhe fora dado. Esta nova “leitura” dos acontecimentos foi feita numa peça não assinada (“por opção da secção”, segundo me foi explicado). Já o texto antes colocado on line era subscrito “por PÚBLICO”, conduzindo em ambos os casos a uma aparente, e estranha, diluição de responsabilidades no colectivo redactorial.
Na minha opinião, este caso ilustra mais uma vez uma deficiente articulação entre as duas plataformas em que se desdobra o jornal. Para os leitores, uma notícia na edição on line é para todos os efeitos uma notícia do PÚBLICO, que deve obedecer aos mesmos critérios e grau de exigência do que é publicado na edição em papel. O contrário seria aceitar duas linhas editoriais diferentes para dois suportes jornalísticos complementares. Neste quadro, parece-me inaceitável que a frase com maior visibilidade que, desde o sangrento incidente de 31 de Maio até hoje, os leitores encontraram no jornal sobre a posição da Autoridade Palestiniana face ao cerco à faixa costeira do seu território seja a incompreensível afirmação de que “Mahmoud Abbas concorda com o bloqueio israelita a Gaza”.
José Queirós
Documentação complementar
Notícia em publico.pt (13.06.2010)
Porta-voz do Presidente já desmentiu notícia do Ha’aretz
Mahmoud Abbas concorda com o bloqueio israelita a Gaza
13.06.2010 – 11:09 Por PÚBLICO
O Presidente da Autoridade Palestiniana (AP), Mahmoud Abbas, opõe-se ao levantamento do bloqueio naval israelita à Faixa de Gaza, por entender que isso iria ajudar o Hamas, noticiou hoje o jornal “Haaretz”.
Um porta-voz de Abbas negou entretanto estas declarações.
Teria sido isso o que ele disse ao Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, durante a reunião que quarta-feira tiveram na Casa Branca. E o Egipto é da mesma opinião, também não quer que se acabe com o bloqueio a Gaza, para não fortalecer o Hamas, prossegue aquele jornal israelita.
Segundo Nabil Abu Rudeina, a notícia do “Ha’aretz” foi “uma tentativa de distorcer factos”. “O mundo deveria aproveitar os acontecimentos com a frota de Gaza para pressionar Israel a levantar o bloqueio e terminar o sofrimento dos habitantes de Gaza”, afirmou Rudeina.
Esta não é a primeira vez que são atribuídas ao presidente da Autoridade Palestiniana declarações polémicas em relação a Gaza. Responsáveis israelitas afirmaram que Abbas tinha querido que Israel atacasse Gaza antes da grande ofensiva militar em final de 2008 início de 2009. (…)
Notícia actualizada às 15h35
(Nota – vão assinaladas a azul as frases acrecentadas à notícia publicada às 11h09 de 13/06/10, e que correspondem à actualização efectuada na mesma data às 15h35. J.Q.)
Mensagem do leitor António Pereira
“Venho, em relação a artigo inqualificável publicado no on line (Abbas apoia bloqueio a Gaza), enviar-lhe uma nota. Julgo que o online está a descredibilizar francamente a linha editorial do jornal. Referi nos comentários (referência não publicada!) que este artigo feria o código deontológico (notícia baseada nos “diz-se”, sem qualquer verificação ou cotejamento), em infracção a qualquer lógica de informação (que deve ter presente os dados anteriores …), e por servir uma adulteração dos factos ao serviço (inconsciente que seja) de um sector informativo (…)”.
António Pereira (mensagem recebida às 15h39 de 13/06).
Segunda mensagem do mesmo leitor
“É fantástico que em seguida ao meu comentário (claro e conciso, mas não publicado) tenham introduzido, sem modificar o teor da notícia, ‘Abbas desmente a notícia'”.
António Pereira (mensagem recebida às 15h43 de 13/06).
Mensagem do leitor Filipe Grácio
“É lamentável um título de uma notícia ser desmentido no conteúdo da própria notícia. Um minimo de integridade jornalística por parte do jornalista do PÚBLICO requeria que não se pusesse no título de uma notícia algo que um jornalista israelita escreve (sem citar fontes), que objectivamente favorece a posição de israelita, e que ainda por cima foi desmentido por fontes próximas de Abbas. Um título de uma notícia não pode ser um boato que a própria noticia depois desmente. Espero uma alteração do título.
Filipe Grácio (mensagem recebida às 17h15 de 13/06)
Respostas da Direcção do PÚBLICO
A propósito deste caso dirigi oito perguntas à Direcção Editorial do PÚBLICO, e aos editores da secção Mundo e do publico.pt. As respostas que me chegaram são assinadas pelo director adjunto Miguel Gaspar. Seguem-se as perguntas e as respostas (estas em itálico):
1) Como se explica a escolha do título afirmativo “Mahmoud Abbas concorda com o bloqueio…”, aparentemente baseado apenas numa notícia do Haaretz, que diria isso em tom condicional e sem citar fontes?
R.- É um erro que assumimos. A notícia não poderia ter sido titulada de forma tão assertiva, até por a primeira leitura do título sugerir tratar-se de uma declaração do líder da Autoridade Palestiniana.
2) Não foram consultados outros relatos sobre o encontro, dias antes, entre Abbas e Obama, que não coincidissem com a versão do Haaretz?
R.- O Haaretz é um jornal muito bem informado e publica com regularidade histórias em exclusivo, citando fontes próprias. O mesmo acontece com outros jornais de Israel. Aqui, a questão era o valor da própria informação do Haaretz. Os elementos de enquadramentos da notícia poderiam focar as declarações públicas feitas por altura do encontro ou o montante da ajuda americana à Autoridade Palestiniana aí oferecido.
3) A notícia colocada on line às 11h09 incluía já, no lead, a frase “Um porta-voz de Abbas negou entretanto estas declarações”, tal como se lê após a actualização das 15h35? Se incluía, como se explica o título? Se não incluía, porque se manteve o título?
R.- Na primeira versão não existia o desmentido.
4) Em que consistiu, exactamente, a actualização da notícia on line?
R.-Na inclusão do desmentido, precisamente.
5) Porque é que a notícia on line tem a assinatura “Por PÚBLICO”?
R.- Por existir material de contextualização nosso.
6) É verdade que um comentário crítico de um leitor (anterior à actualização) não foi publicado, e que o desmentido de Abbas foi a seguir incluído na notícia? É verdade que, nesse dia, outros comentários críticos da notícia não foram publicados, ou foram apagados?
R.- Não tenho conhecimento de qualquer comentário que não tenha sido publicado ou apagado. A decisão de publicar o desmentido foi editorial e foi tomada depois de ser conhecido o desmentido à notícia. Em tese, um desmentido não anula necessariamente uma informação que o precede. Neste caso, no entanto, a informação que é desmentida é frágil, mas não devia ser ignorada.
Israel é um tema muito sensível e é frequente os media serem acusados de estarem a favor de um ou do outro lado. Houve um erro na valoração da informação do Haaretz, que assumimos, mas num outro plano, queria recordar que o jornal tomou uma posição clara, em editorial, a favor do fim do bloqueio. Isso não nos impede, naturalmente, de publicarmos notícias sem nos perguntarmos primeiro se elas “favorecem” um lado ou outro.
7) Porque é que a informação, segundo o próprio Haaretz, de que diplomatas europeus “afirmaram que Abbas se declarou a favor do fim do bloqueio” (na conversa com Obama, presume-se), que se lê na notícia no papel de 14/6, não foi incluída a 13/6 (nem depois) na edição on line?
R.- Nem todas as notícias do on line estão no papel. O desmentido tirou-lhe relevância. A informação é integrada numa peça que resume vários acontecimentos do dia, em particular a primeira visita de um secretário-geral da Liga Árabe a Gaza desde que o território é controlado pelo Hamas.
8) Porque é que a notícia de 14/6, no papel, também não é assinada?
R.- Por opção da secção.