Em 2009, falámos com José Antonio Portillo na Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa) a propósito da exposição Artefactos para Contar e Criar Histórias, que integrava o Congresso Internacional de Promoção da Leitura (pensado e organizado por António Prole.) O resultado dessa conversa, a que se seguiu uma troca de mensagens virtuais, foi transformado num texto que não chegou a ser publicado. Fomos recuperá-lo porque Portillo está nas Andarilhas, em Beja, Cidade dos Contos.
O título que então demos ao texto foi: “Abrir janelas para o interior” (Ainda vale.)
A dada altura, pediu-se a José Portillo que recordasse um professor que o tivesse marcado, por boas ou más razões. E foi assim que nos deu a conhecer Evaristo, que tinha a alcunha de “Cid Cateador”:
“Foi meu professor de Língua e Literatura quando eu tinha 12 anos. Era muito duro, mas narrava como os anjos. Suponho que foi ele que despertou em mim a ideia da importância da narração no ensino e na vida. A narração, o contar, como actividade fundamental na escola e fora dela: vivo quando narro. Como uma ferramenta de compreensão do mundo e de um tempo. Além disso, fixa-te. Se qualquer de nós se recorda de algum professor, é pela maneira como narrava o conhecimento, a História, a Matemática.”
O texto (um bocado longo…) era assim:
José Antonio Portillo é professor e narrador. Para aproximar as crianças da leitura e da escrita, cria projectos originais e inesquecíveis. Um deles, Artefactos para Contar e Criar Histórias, [está em Pombal até 31 de Maio]. É uma exposição, mas Portillo diz ser “analfabeto artístico”. Ninguém acredita.
Começa por afirmar que não é escritor: “Sou um narrador que algumas vezes sentiu a necessidade de usar a expressão escrita.” E conclui que, nesse encontro entre a oralidade e a fixação da palavra, esta última perde sempre. “Os meus encontros com outras áreas de criação são casuais e de duração incerta. Como aconteceu com o teatro.”
José Antonio Portillo é professor do 1.º ciclo, mas a escolha da profissão não foi uma decisão convicta, nem sequer resultou de grandes reflexões. “Aos 18 anos tens ilusões e não certezas. Escolhi ser professor porque era uma carreira curta (três anos de estudo) e desta forma teria mais tempo para viver.” Afinal, a opção, como nos conta, tornou-se um caminho: “Trabalho e vida ficaram unidos.” Ainda bem.
“Os meus projectos são janelas do exterior para o interior”, diz, explicando como a sua ligação ao ensino se consolidou ao conhecer e trabalhar com Charo, professora de Pedagogía. “Ela ensinou-me a abrir portas na expressão das crianças. Trabalhámos com miúdos com dificuldades de comunicação oral e mais uma vez a vida apanhou-me nos seus paradoxos. Ao relacionar-me com estas crianças, comecei a perceber a importância e riqueza narrativas desses miúdos — logo aqueles a quem a vida lhes havia limitado a expressão oral.”
A mostra Artefactos para Contar e Criar Histórias é o resultado de 14 anos de trabalho com muitos alunos: “Desenvolvi materiais didácticos para aproximar as crianças da leitura, da escrita criativa e da narração, denominados Artilugios para Contar y Crear Historias. Durante a exposição deste trabalho na Biblioteca Valenciana em 2001, houve um encontro com Carles Alberola e Tony Benavent (respectivamente, director e subdirector do Albena Teatro). Pensaram que o universo narrativo e literário da exposição poderia ter algum eco artístico dentro do teatro infantil. Daí surgiu a obra Artefactos e posteriormente Museu do Tempo, com os respectivos livros publicados pela Kalandraka.”
A exposição pôde ser vista na Fundação Calouste Gulbenkian, em Janeiro, durante o Congresso Internacional de Promoção da Leitura, e de 15 de Fevereiro a 2 de Abril na Biblioteca Municipal de Beja [2009]. No folheto de divulgação escrevia-se: “Nascidos numa mala de um professor com o objectivo de serem usados em contexto escolar como indutores da produção de textos escritos e orais, os objectos desta exposição rapidamente ganharam uma outra dimensão. Cruzando o visível e o invisível, potenciando a construção de sentido, esta imensa colecção de objectos, de artefactos para criar e contar histórias são um desafio imenso para quem os lê e uma experiência de fruição artística e estética ímpar.” Tudo verdade.
Portillo explica que as equipas de ambas as bibliotecas receberam formação específica para poder comunicar e trabalhar os conteúdos da exposição e sublinha que, “com os seus contributos, a mostra verá o seu conteúdo enriquecido”. Conta ainda que procuraram o envolvimento de vários profissionais de Beja e Pombal para que eles próprios pudessem “seguir novos caminhos de ‘leitura’”. Certamente que o conseguiram.
Fotografar pensamentos
Outro projecto nascido da colecção de material escolar designa-se Que Pensa a Minha Sombra? (produção da Teatrália 2007). E foi-nos narrado assim pelo professor: “Mostra o caminho orgânico de sete adolescentes de Madrid (caminho orgânico significa caminho rotineiro que as pessoas percorrem durante as suas vidas, no bairro ou na cidade que habitam. Nesse trajecto, fixam-se imagens de outros transeuntes, mobiliário urbano, paredes, janelas… que condicionam o pensamento).
Durante os dias soalheiros do mês de Novembro, estes sete adolescentes convidaram-nos a caminhar pelas ruas de Vallecas, Carabanchel, Santa Eugénia, Vicálvaro, Palomerasm Barrio de la Concépcion e Puerta del Angel. Fizeram-nos descobrir diferentes sinais do seu caminho concreto: pontes, passadeiras, bancos em pequenas praças, casas abandonadas, jardins, candeeiros que projectam sombras, transeuntes com que se cruzam, sombras de outras pessoas. “Cada um com o seu significado e sempre no espaço da sua cidade. Depois procuraram um lugar concreto nesse caminho que tivesse um significado especial. Aí, esperaram que o sol projectasse a sua sombra para a ‘captar com o seu pensamento’ através de uma fotografia. Outros alunos/companheiros foram enviando as fotos junto aos seus pensamentos para completar uma colecção de sombras.”
Uma parte do resultado de todo este processo ficou reunida no livro Que Pensa a Minha Sombra? (edição da Kalandraka). Portillo enumera as várias descobertas que o projecto e os passeios facultaram: “Mostraram-nos a capacidade do ser humano para estabelecer relações afectivas e de identidade com espaços absolutamente anónimos, impessoais e clonados em todas as cidades do mundo. Recordaremos sempre Laura (imagem na capa do livro) quando formos capazes de vislumbrar o passeio ao longo do enorme bloco de casas e que se repete em qualquer bairro da periferia de Madrid. Ou Ester e Sandra, quando reconhecem um lugar concreto do seu bairro pelo tipo de muro. Também nos fez descobrir que os adolescentes têm algo para contar e mostram uma forte capacidade de expressão perante uma câmara.”
Por último, concluiu: “A vida emocional e as reflexões profundas contrariam a ideia estereotipada de confusão e ‘obscuridade’ [dos adolescentes]. Cada um com a sua singularidade, mostraram-nos afectos, conteúdos sociais, condutas mágicas, encontros casuais, espaços da cidade, amigos e a frase ‘há que seguir’ que Andreia nos deu a todos.”
Portillo acredita que se deveria criar nas escolas e na formação dos professores “a disciplina de Narrar o Conhecimento”.
E como gostaria o professor-narrador José Portillo de ser recordado? “Às vezes, não é como gostarias, mas como te recordam de facto.” Logo nos conta outra história: “Há uns anos reencontrei numa conferência uns alunos de quem tinha sido professor quando eles tinham oito anos. Na altura, já tinham 20, eram estudantes universitários. Perguntei-lhes: ‘Lembram-se de mim porquê?’ Deram-me três razões: porque nos tratavas com carinho, porque explicavas/narravas muito bem as matérias e porque nos deixavas ir à casa de banho sem termos de pedir autorização.’ Podemos passar a vida a escrever extensos e profundos tratados da condição humana, do ensino… no fim, ficam os aspectos mais significativos e menos realçados do discurso.
Acaba por confessar, no entanto, que também é recordado como “Domador de pulgas”. Não se duvida.
(Texto escrito por Rita Pimenta em 2009, para um projecto improvável)