O génio dos democratas

A brutalidade da campanha para a nomeação democrata em 2008 abriu feridas profundas tanto no campo Clinton como no campo Obama, mas quem assistiu ontem ao discurso do ex-Presidente Bill Clinton em defesa da reeleição do actual Presidente Barack Obama não vislumbrou sequer uma cicatriz.

Clinton, o grande comunicador do Partido Democrata, argumentou com dedicação, com humor e com impressionante detalhe as razões por que considera que a América está melhor hoje, quatro anos depois de Obama ter entrado na Casa Branca, do que estava quando o poder estava nas mãos dos republicanos. E discutiu com igual pormenor, clareza e paixão, como os americanos ficarão ainda melhor se concederem ao Presidente a oportunidade de acabar o seu trabalho — até porque o projecto, tendo em conta o estado do país que Obama herdou, nunca poderia ficar completo em apenas um mandato.

“O argumento para a reeleição de Obama é este. Ele herdou uma economia profundamente danificada. Mas pôs um fundo ao poço, e começou o longo, duro processo de recuperação, construindo uma economia mais moderna e mais equilibrada, capaz de produzir milhões de bons empregos, novas e vibrantes empresas e riqueza para os inovadores.

Agora, estamos onde gostaríamos de estar? Não. O Presidente está satisfeito? Claro que não. Mas estamos melhor do que estávamos quando ele tomou posse?

Quando o Presidente tomou posse, a economia estava em queda livre. O PIB acabava de encolher 9%. Estávamos a perder 750 mil postos de trabalho por mês. Estamos melhor agora? A resposta é SIM.

Agora: este e o desafio que ele enfrenta, e aqueles que o apoiam enfrentam. Eu sei, eu percebo. Há muitos americanos que ainda se sentem zangados e frustrados com o estado da economia. Quando olhamos para os números, vemos que o emprego esta a crescer, que os bancos estão a emprestar outra vez, e em muitos locais o preço das casas já começou a recuperar. Mas há muita gente que ainda não sente esta melhoria. Aconteceu comigo em 1994 e 95. Nós sabíamos que as políticas estavam a funcionar, que a economia estava a crescer, mas as pessoas ainda não estavam a sentir. Felizmente, em 1996, a economia estava a vibrar e não houve quem não sentisse: foi a maior expansão económica em tempo de paz da história dos Estados Unidos.

A diferença para agora são as circunstâncias. O Presidente Obama começou com uma economia muito mais fraca do que eu. Ouçam o que vos digo: nenhum presidente, nenhum presidente — nem eu, nem nenhum dos meus predecessores — ninguém poderia ter reparado todos os danos que ele encontrou em apenas quatro anos. Mas ele conseguiu lançar as fundações para uma nova economia de sucesso, moderna, onde a prosperidade e partilhada por todos. Se vocês renovarem o contrato do Presidente, vão senti-lo. Vão sentir.

Se o povo americano acredita no que eu acabei de dizer ou não pode ser a chave desta eleição. Por isso, o que eu quero que vocês saibam é que eu acredito. De coração, acredito.”

Clinton traduziu em miúdos os benefícios das políticas da Administração Obama e demoliu a plataforma económica, política e social da candidatura Romney-Ryan — exaustivamente, implacavelmente, com graça e elegância e uma eficácia quem em linguagem militar, poderia ser equiparada a uma ofensiva letal. Clinton aproveitou todas as aberturas dos republicanos para atacar: embalado, desviou-se frequentemente do guião que corria no teleponto e improvisou, numa arrebatadora e substantiva intervenção em que expôs e desmontou o bluff dos seus adversários.

Pelo caminho, Bill Clinton, o Comeback Kid, provou ser o maior animal político dos Estados Unidos da América. Barack Obama é, sem dúvida, um dos oradores mais dotados e inspiradores que a política americana já viu, e também um dos políticos mais sólidos, astutos e calculistas que já passou pelo Senado e pela Casa Branca. Mas a política corre nas veias de Bill Clinton — Bubba tem um talento inato para apresentar argumentos sofisticados de forma clara e cristalina e tem uma química inigualável no relacionamento com os eleitores. Só Bill Clinton, que forçou um braço de ferro com o Congresso republicano que levou a um shutdown do governo federal poderia subir ao palco e laudar o espírito de cooperação bipartidário ou sustentar parte do seu sucesso no espírito de colaboração dos republicanos. E só mesmo Bill Clinton, que enfrentou um processo de destituição na presidência por ter mentido ao povo americano, teria a coragem de olhar para a câmara de frente e dizer, com genuína tristeza e choque, que a campanha republicana mente, inventa, distorce.

O discurso de Clinton, que todos os analistas políticos sem excepção reputaram como brilhante — a Economist chamou-lhe uma “master-class” e a The American Conservative elogiou o ex-Presidente como um “virtuoso” — salvou a segunda noite da convenção democrata, que ficou marcada pela controversa (e anti-democrática) revisão do texto da plataforma eleitoral para incluir a referência a Deus e também a Jerusalém como a capital indivisível do estado de Israel, e por uma sucessão de trocas e baldrocas no alinhamento dos oradores que fez perder o fio à meada da ordem de trabalhos.

A apresentação de Bill Clinton foi entregue a Elizabeth Warren, a outrora discreta professora da universidade de Harvard que foi convocada pelos democratas primeiro para supervisionar a aplicação do programa de resgate de Wall Street aprovado no ocaso da Administração Bush e depois para pôr de pé uma nova agência de protecção dos consumidores de produtos financeiros — duas missões que a transformaram numa das figuras mais admiradas pela ala mais radical do partido.

Elizabeth Warren é agora candidata a um assento no Senado pelo Massachusetts (precisamente o que ficou vago com a morte de Ted Kennedy), actualmente nas mãos do republicano Scott Brown. As sondagens praticamente dão a reeleição de Brown como garantida: a campanha de Warren tem sido marcada por erros estratégicos crassos, e teve já o condão de produzir o refrão “You didn’t build that” que Obama repetiu, para deleite dos seus adversários que nunca mais deixaram de o azucrinar .

Em Charlotte, Warren terá conseguido limpar um pouco a sua imagem. Contou o seu (comovente) trajecto de vida e temperou o seu populismo, reposicionando a sua candidatura e redefinindo os termos do debate económico e fiscal. A questão, sublinhou, é de justiça, igualdade e oportunidade. O problema, criticou, é que as regras do jogo estão feitas para beneficiar sempre os mesmos.

Rita Siza

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