Tiraspol: Misterioso beijo comunismo-capitalismo

Na verdade, o nosso Mundo é bem mais igual do que todos julgamos. A diferença está apenas na nossa mente. Na perspetiva com que o nosso olhar se interessa pelo que está diante de nós.

Seja por que prisma for, a Transnístria, um país que não existe e vive envolto e má fama, tem muitos ingredientes para ser experiencia que se recomenda.

Sim, é mesmo o que parece: comecei pelo fim. Faço-o para que não corras o risco (muitas vezes habitual) de menosprezares o que desconheces, principalmente se as primeiras linhas não te ‘agarram’. Agora que, eventualmente, chamei a tua atenção, volto ao caminho…

Quem chega a Tiraspol logo se depara com surpreendente realidade: comunismo de beijo na boca com o capitalismo. Pode soar estranho, mas explorem este distinto lugar e logo me dirão.

O ‘comunismo’ está lá. Nas estátuas do ‘querido’ Lenine. Na arquitetura sóbria dos edifícios austeros. Nas inúmeras bandeiras da cor do sangue. Num indelével ‘controlo’ da sociedade que alguns sugerem. E na propaganda sempre presente. O capitalismo? As grandes marcas começam a espreitar a sua oportunidade. Chegaram as cadeias de ‘fast-food’ (não as norte-americanas… ainda) e a sua popularidade ‘esmaga’ o tradicional. As roupas tristes dos mais velhos já são um contraste com o que a moda internacional dita para a população mais nova, que já usa os acessórios desejados num qualquer país do denominado primeiro mundo.

Estamos a meros 70 quilómetros de Chisinau e a dúvida é se estou na segunda maior cidade da Moldávia ou na capital da autoproclamada independente Transnístria. Os russos estão em clara maioria, seguindo-se os ucranianos na proporção de um terço do global. E nem um quinto da população é de moldavos que, creio, não usufrui dos mesmos direitos cívicos dos seus pares. Complicado para quem não entende de frações, eu sei. A análise de Tiraspol pode mudar mediante a resposta à tal perguntinha Moldávia-Transnístria. Mas isso daria um tratado e estamos aqui para falar do prazer das viagens.

Quem vem de Bender, a primeira imagem da cidade é o moderno estádio do Sheriff de Tiraspol, a equipa de futebol mais endinheirada da região, a ombrear com alguns bons clubes europeus: logo nos anuncia quem manda por estas bandas. Sheriff é marca visível em várias áreas da sociedade, um projeto empresarial que tem merecido demasiados favores do poder político, com o qual está intimamente mesclado. Viktor Gushan é o ‘dono disto tudo’ lá do sítio.

Os arredores não são propriamente um assombro estético e quando chegamos ao centro a inevitável grande avenida, neste caso a 25 de Outubro. Surpreendentemente, respira praticamente sem carros. Nota-se mais a presença da polícia do que viaturas a circular.

Trocar dinheiro é fácil, embora tenhamos de nos sujeitar ao câmbio que se lembraram de inventar para a sua moeda, que ninguém aceita internacionalmente. Levantar ou trocar… apenas para o que for necessário. E para a nota que sempre sobra, neste caso para recordação única.

Em vários pontos, cartazes afixados nas paredes com fileiras de generais condecorados. São tantas as medalhas que não sei como as aguentam ao peito. E aposto que todo o minério do país está ali, para honrar os heróis da Transnístria. Bom, e também para jovens desportistas. Muito repetida uma imagem de quatro ginastas que, juntos, devem carregar uns bons quilos de suposto ouro, prata e bronze. Ninguém me sabe dizer quem são ou o que conquistaram.

Junto ao rio, com uma promenade bastante popular em termos de lazer, uma mãe realiza os caprichos da filha, a rondar os 30 anos. Fotos de todas as formas e feitios. Sem qualquer recato ou vergonha, em sessão ousada nas poses, não no traje. Retribui o sorriso que lhe endereço e até se põe a jeito para foto que lhe tiro. Uma cena impensável quando os sempre unidos jugos político e religioso esmagavam ferozmente as liberdades individuais. Até isso está a mudar…

Um burro devidamente trajado, em tantas tonalidades num ‘casaco’ que até faz inveja ao arco-íris, chama a atenção. Descansa um pouco enquanto nenhuma criança quer alimentar esta iniciativa privada e subir no seu dorso para passeios junto ao rio Dniestre. Há quem pesque nas suas margens, onde está atracado um velho e grande barco. Bar e restaurante. A ousadia empresarial privada, mais uma vez, a florescer. Até no peixe seco que idosa vende na rua… juntamente com diversas ervas aromáticas. Sábia combinação e dedo para o negócio, da ‘ti’ Alina.

Ao lado, um parque para jovens mais ‘radicais’: há música, patins, skates e muitas quedas. Rapazes e raparigas com grande destreza nos desportos até há bem pouco só praticados somente pelo alegado sexo-forte. A farta publicidade de jovens meninas em lingerie – à semelhança do que já está banalizado no ocidente – ajuda a uma emancipação que não aparenta ser acessível a todas as gerações.

Estamos na zona central de Tiraspol onde se concentram boa parte dos seus encantos. A começar por igreja singular, na forma e conteúdo, bem exíguo. Não tem mais do que meia-dúzia de metros quadrados e vigia a ‘chama eterna’ dos que já se foram em nome da Transnístria. Todos a respeitam: benzem-se ao passarem pela mesma ou entram para uma pequena oração ou para acender uma vela. É ortodoxa e a sua cúpula parece uma cebola dourada.

Ao lado, a poucos metros, um tanque de guerra. Crianças e adultos brincam com o T-34, que domina a praça e foi aqui colocado para comemorar a vistoria soviética na II Guerra Mundial. Não há atração que mereça mais fotos.
Penduradas as crianças. Em pose militar, de peito-feito, os adultos. Homens. Apesar desta estranha familiaridade com o mundo bélico, a verdade é que este é um destino seguro. Em 2006 rebentou um artefacto num autocarro em Tiraspol… e não houve mais registos, conhecidos, de barbaridades iguais. Nas ruas não vislumbro qualquer detalhe que inspire cuidados especiais ao viajante.

A Transnístria acumulou fama de ser um destino perigoso para viajar. Há fortes evidências de tráfico humano e de armas (ao longo dos anos diversos documentários internacionais com câmaras ocultas), o que certamente explica o raríssimo turismo por estas bandas. Relato unicamente o que os meus olhos vêm e ‘sentem’.

A alguns metros, o ‘cemitério’ dos heróis do país. Chama eterna para quem deu o sangue na luta pela ‘independência’, libertando o território da Moldávia. “Não tens nome, mas as tuas ações são eternas”, pode ler-se no memorial que também alude a quem defendeu a ampla nação soviética na ida guerra no Afeganistão.

Estes memoriais são das principais atrações, tal como a estátua de Alexander Suvorov, o seu fundador. Enorme e ‘plantada’ junto a interessante jardim. A uns 200 metros, o palácio presidencial e a inevitável gigantesca estátua de Lenine, que quase esmaga o encanto do palácio presidencial, que, na realidade, não parece ser muito: o mais puro e frio austero estilo soviético.

Se os memorais e as histórias tristes a eles associados cansarem, nada como um relaxado passeio ao longo do rio. Inclusivamente um pequeno cruzeiro no Dniestre. Esta é, sem dúvida, a zona mais indicada para atividades de lazer. Até a dois…

A deambulação vai longa por esta urbe que já se candidatou a maior museu do mundo a céu aberto. Os passos firmes levam-me a outras paragens em Tiraspol quando sou abordado por um grupo de teenagers. Curiosos e simpáticos. Mesmo sem arranharem convenientemente o inglês. Perguntam, num linguajar mal-amanhado, o que penso da cidade e logo querem saber se gosto de futebol. Dá para nos entretermos uns bons minutos. E para posar para as inevitáveis fotos que todos gostam de tirar com estrangeiros. Tiraspol tem fama de pessoas apressadas nas ruas e sempre de cabeça para baixo. Terão sido outros tempos, não é isso que agora se encontra. As tímidas visitas dos forasteiros ajudarão, por ventura, a uma nova realidade.

Esta abordagem é feita mesmo em frente ao impressionante edifício do parlamento, o chamado “House of Soviets” (Dom Sovetov). Em termos arquitetónicos, é dos pontos de maior interesse, ligando a principal concentração de atrações históricas ao estimulante parque Pobeda. Estamos ainda na 25 de outubro, certamente bem conservada. Entrando numa qualquer paralela, tudo bem diferente. Um ou outro prédio em normal estado de conservação, porém a grande maioria em apurada decadência.

O parque Pobeda – por perto está o Kirov, que bem merece a nossa curiosidade, bem como a próxima fábrica de brandies Kvint – é uma imensa surpresa, e não apenas por ser bonito, cativante. É aqui que encontro famílias inteiras em desfrute da natureza. Faz-me lembrar Portugal dos anos 80. E tudo o que de bom isso representa. Não vislumbro viciados em novas tecnologias, antes pura brincadeira. Risos audíveis, correrias. Cor e música. Um cenário nada típico do que tenho encontrado em ‘paisagens’ sob o manto da cortina de ferro. Grigory Ivanovich Kotovsky, um aventureiro figura militar e política soviética, reside aqui, em autoritária estátua. Ninguém quer saber. Nas suas ‘barbas’ há apenas cor e o som de ingénua felicidade. Aqui encontro um simpático parque de diversões, um pequeno comboio para crianças, carrinhos, patins, pequenos lagos e fontanários com crianças lá mergulhadas em inocente histeria… tudo acontece sem preocupações de maior.

Aproveitamos a esplanada para saborear o sol que gentilmente nos afaga. Contemplar toda esta intensidade – não encontrada em mais lado algum de Tiraspol – é excelente exercício de viagem. Muito aprendo.

Na verdade, o nosso Mundo é bem mais igual do que todos julgamos. A diferença está apenas na nossa mente. Na perspetiva com que o nosso olhar se interessa pelo que está diante de nós. Seja por que prisma for, a Transnístria, um país que não existe e vive envolto e má fama, tem muitos ingredientes para ser experiencia que se recomenda.

Rui Bar­bosa Batista relata no blo­gue Cor­rer Mundo a sua invulgar aven­tura por Palma de Maiorca, Roménia, Moldávia, Itália e São Marino. No site www.bornfreee.com pode ace­der a outros rela­tos e ima­gens sobre a viagem.

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