Não lhe sobram muitos dentes e o seu rosto exibe marcas de uma vida que não pareceu fácil, mas nem isso lhe rouba o sorriso. Maternal. Obviamente, não entende uma única palavrinha do que lhe tento dizer.
Achará piada ao facto de insistir numa conversa que, no seu íntimo, sabe não ter muito por onde se lhe pegar. Mas entra na ‘dança’. Responde-me em russo. E imita-me em alguns gestos, sempre guiados por umas mãos de quem fez do trabalho a vida. A amiga junta-se à cavaqueira e completa o cenário. Rimos por tudo e por coisa nenhuma. Não estarão muito habituadas a este inesperado. Por estas bandas não há muito turismo e o pouco que aparece não é suposto ser ‘assim’.
“Rui” é palavra que devo evitar em russo. Dependendo da forma como o pronuncio, corro o risco de ser rude. Indelicado. Digo-lhes que sou o “Batista”. Podem tratar-me assim. Assentem com a cabeça. Alina e Valentina, a dupla de resistentes septuagenárias que me embeiça.
Como as nossas avós de aldeia, Alina usa um lenço na cabeça, que não é negro. Camisola com borboto, sob um pequeno casaco sem mangas, também avermelhado, e um avental em tons de castanho. Valentina aposta nos castanhos e beijes, num corpo mais débil em cima de inesperadas sapatilhas brancas. Usa gorro, camisola de gola alta, gabardina e um avental por cima que combina na perfeição com a sua companheira de luta. Ambas são vendedoras de rua. À moda antiga, sem qualquer luxo.
Alina é uma artista, sobra-lhe criatividade no ofício. O que poderei dizer quando alguém cruza dois carrinhos de bebé, adapta um tampo por cima e assim tem uma banca móvel pronto-a-vender? É verdade que não tem muito. Peixe seco, uma espécie de queijo, legumes em calda, uma cerveja de litro e uma balança. Comparada com Valentina, soa a bem-sucedida comerciante. Mais modesta, a sua ‘sócia’ tem apenas um caixote de cartão virado com algumas monocórdicas peças de cebolinho em cima. Juntas, proporcionam-me o diálogo que recordo com mais carinho, na minha passagem por Tiraspol.
Atrás de ambas, há um sonolento cão refastelado no meio da estrada. Pachorrentamente, segue o burburinho que atrapalha a sua rotina. Uma ou outra vez ainda levanta a cabeça, mas não se manifesta. Não se move nem late. E não me diz o seu nome. Tal como ficarei sem saber o nome de outra septuagenária que, não muito longe, alimenta a vida a vender jornais. Sentada, em aparente desconfortável banco, com os periódicos encostados a uma árvore. Os sapatos são castanhos. As meias pretas. Aposta numa saia azul e em sobretudo verde. O lenço na cabeça dá-lhe todo o colorido, em tons de castanho, laranja e verde. Não chego a abordá-la. Contemplo apenas o seu olhar absorto. Imagino a sua vida. Faço filmes mentais e prefira não saber a realidade. Vende um jornal. Pouco depois outro. Pega em todo o dinheiro e conta-o. Ali. No passeio. Torço para que não demore o seu regresso a casa.
Dois outros anciãos trocam galhardetes. Sentados em banco de jardim. Um, ainda mais velho do que o outro, parece artista. Longas barbas brancas a fazer ‘pendant’ com a boina preta. Ambos oscilam entre tristes cores escuras no discreto traje. Acredito que a conversa tenha uma paleta de tonalidades mais joviais.
A que vos descrevo é a minha Transnístria favorita. Aquela que jamais será adulterada. São postais de difíceis tempos soviéticos. E que já não vão a tempo – nem o quererão – de mergulhar em ritmos de vida capitalista que já assoma Tiraspol. Aliás, este é o grande e surpreendente contraste na capital da Transnístria, em que o tradicional e a modernidade ainda procuram um equilíbrio: aqui, o comunismo já anda de beijo na boca com o capitalismo.
Rui Barbosa Batista relata no blogue Correr Mundo a sua invulgar aventura por Palma de Maiorca, Roménia, Moldávia, Itália e São Marino. No site www.bornfreee.com pode aceder a outros relatos e imagens sobre a viagem.