Deixo aqui o texto que fiz para o programa História Devida, de Inês Fonseca e Santos, que passou na Antena 1, no último domingo. O podcast da entrevista pode ser ouvido a partir daqui http://ww1.rtp.pt/multimedia/index.php?prog=2145
Histórias às pinguinhas
Já com os cabelos a ficarem brancos, naquela tarde passada a conversar num bar de um hotel, em Lisboa, Paulo Coelho quase que me convenceu: “Tem anjo. Acredita, não é mentira.” Contou-me que um dia uma repórter lhe disse: “Você não tem nenhum poder.” E que ele lhe respondeu: “Olha que tenho.” “Fiz ventar e chover na hora. Ela escreveu isso, foi honesta e saiu na primeira página do jornal”, contou-me o escritor brasileiro.
Naquele dia, mesmo que eu lhe pedisse para ele fazer chover, o escritor não o faria. Achava que tinha sido um acto de exibicionismo. Mas se naquela tarde do ano de 1994 em Lisboa não choveu, quando Paulo Coelho abriu a mala do seu carro para oferecer os seus livros autografados, acertou ao dizer: “Estou me convertendo no maior vendedor de língua portuguesa no mundo”. Nunca mais esqueci a frase que me disse à despedida: “Tenho que ir atrás do meu sonho e dos meus livros”.
Atrás de um sonho também foi o pai do escritor Moacyr Scliar quando decidiu emigrar aos 10 anos de idade para um país desconhecido. Quando o navio em que viajou da Rússia para o Brasil atracou no seu destino, um gaúcho percebeu que o pai de Moacyr tinha fome e ofereceu-lhe uma banana. “Ele imaginou que era uma coisa para comer. Mas não tinha sido treinado para comer banana e, como não falava português, ficou com perplexidade a mexer na banana”, ouvi o escritor brasileiro contar no encontro literário da Póvoa de Varzim.
O seu pai sabia que, na laranja, havia a casca e os caroços. E quando descascou a sua primeira banana apareceu-lhe uma coisa que ele pensou ser o caroço. E jogou-o fora e comeu a casca de banana até ao fim. Para Moacyr Scliar “o escritor é o emigrante que vê a banana e que come a casca” e com ele aprendi que “transformar o desconhecido em magia é a tarefa da literatura”.
Também foi na Póvoa de Varzim, numa manhã de 2008, que numa escola ouvi Mia Couto, o escritor moçambicano que “entorta” as palavras, a contar que quando era pequeno ficava sentado no passeio da sua cidade africana a ver as pessoas passar. Entretinha-se, dizia ele, nesta coisa de inventar para cada pessoa que passava uma história. E assim o tempo não passava.
Quando Mia fez 17 anos, o seu país estava numa “grande revolução”, e ele viajou para ir conhecer Samora Machel. Decorou frases dos seus discursos para chegar ao pé dele e os recitar na esperança de que ele ficasse muito feliz. Quando Samora Machel escutou Mia e os seus colegas disse-lhes que não queria ouvir os discursos e perguntou-lhes: “Algum de vocês sabe cantar uma canção?” Não sabiam cantar nenhuma canção e os que sabiam tinham vergonha. “Algum de vocês sabe contar uma história?”. Ninguém sabia contar uma história. “Quem não sabe contar uma história é uma pessoa pobre”, disse-lhes o futuro presidente de Moçambique. Mia Couto aprendeu esta lição com Samora e disse-nos, naquela escola, que quando ficamos mais velhos ensinam-nos que as histórias são coisas de crianças, que a gente conta aos meninos para que eles adormeçam. Lembrou até que quando alguém nos está a enganar as pessoas dizem: “Não me venhas cá com histórias.” E acrescentou: “Ora tomara eu que me viessem sempre com histórias. Adoro histórias.”
Esta é a minha “história devida”. Passar a vida a ouvir e a ler as histórias que nos contam os escritores. Adoro histórias, principalmente as que me são contadas pelos outros.
Isabel Coutinho
Um comentário a No História Devida da Antena 1