(fotografias de Miguel Madeira)
Sem telemóvel, como avisar alguém se tiver um acidente? Sem Internet, como saber o que se passa? Uma jornalista do PÚBLICO esteve sete dias desligada e diz que se sentiu a viver num mundo mais pequeno.
Isabel Coutinho
A culpa foi da Bárbara, uma das directoras do jornal. Em Março, apareceu sorrateiramente. “Tenho um trabalho para ti.” Nas mãos trazia um jornal britânico. Na capa lia-se: “Tanya Gold fica uma semana sem acesso às tecnologias modernas.” O Guardian pedira a uma jornalista que durante uma semana desligasse os telemóveis, só usasse o telefone fixo e não consultasse a Internet para nada. “Queremos que faças o mesmo”, pediu. “É uma ideia boa de mais para não experimentarmos”. Comecei a rir-me. Um riso despreocupado. Passado uns minutos tornou-se um riso nervoso. Por que se teriam lembrado de mim? Esta pergunta nem sequer me passou pela cabeça. Eu sabia e eles sabiam muito bem por que é que se tinham lembrado de mim.
Os meses foram passando. Eu fui adiando. É uma reportagem boa para se fazer no Verão, não acham? A Ana, editora da Pública, começou a enviar-me e-mails a querer marcar uma data de publicação. “Começo no dia 1 de Agosto”, respondi às tantas. Estávamos na última semana de Julho. Só de pensar nisso ficava mal disposta. O nervoso miudinho durava há dias. Ainda não tinha começado e já estava deprimida.
E com medo. Se tiver um acidente, como é que aviso alguém? Sem telemóvel?! Como vou saber como estão os meus amigos do outro lado do mundo? E se lhes acontece alguma coisa e ninguém me avisa? Como é que vou ler os jornais que só leio na Net? Vou perder as notícias no Twitter. Vou perder as novidades no Facebook. Não vou poder ir ao Google, nem ao YouTube, nem ao Friendfeed, nem guardar coisas no Publish2. Vou ser a pior jornalista do mundo. Ou será que não? Há 19 anos, quando eu era estagiária no PÚBLICO, não havia Internet em Portugal e eu também não tinha telemóvel. É um regresso ao passado. Mas o mundo mudou. E os outros sabem mais do que eu: têm acesso à Web 2.0.
O sábado 1 de Agosto chegou e não consegui. Arranjei várias desculpas. Tinha de se fazer um vídeo para o site do jornal e as fotografias para a revista, era necessário desligar os aparelhos num momento em que estivessem a olhar para mim.
Mas no domingo ganhei coragem e escrevi um post no blogue. Era um “aviso à navegação”, ficou online às 19h03. “No dia 3 de Agosto entro em retiro. A pedido do meu jornal, vou estar uma semana afastada de parte do meu mundo. Vou servir de cobaia”, começava. “Quem quiser falar comigo tem que me ligar para o 351-210111271. Quem quiser comunicar comigo tem de me escrever uma carta, como antigamente, para Jornal PÚBLICO, Rua Viriato, 13, 1069-315 Lisboa, Portugal. Nada de e-mails, por favor. Eu não os vou ler, a caixa do correio vai entupir e alguns certamente nunca chegarão ao seu destino. O blogue vai ficar parado. Não vou aprovar comentários. Oooooh! Por favor, não me abandonem. Eu volto. Não sei em que condições, mas volto.”
Pouco tempo depois, já estava a receber mensagens através do Twitter. Algumas de pessoas que nunca vi na vida. “Só uma semana, ainda por cima em Agosto, não vale.” (João Miranda). “Para a experiência ser completa tem que ir pagar contas à EDP, PT, companhia da água, etc. Marcar viagens na agência …”, acrescenta. “Levantar dinheiro ao balcão do banco, encomendar livros estrangeiros na livraria, consultar horários na estação de comboios.”
A Bruxinha de Papel lança um “Escrevam cartas à Isabel”. O Manuel Ribeiro deseja “boa sorte”. A Guidinha deseja “boas férias”. O Alberto Castro pergunta “Será que aguenta? De certeza q depois n será a mesma.”
No blogue, Leonardo B., de Bizarril, deixa a dica: “‘Os sete dias em que o mundo mudou e eu fiquei de fora!’ ou vice-versa…” A Francisca Sepúlveda lança um: “Vai ver que sobrevive! E depois volte para contar! Abraços de uma (também) sobrevivente!!!” O João Oliveira experimentou uma coisa parecida quando foi acampar e diz: “Conheço esse nervoso miudinho que a corrói. Mas vai ver que vai ser uma experiência fantástica e que até vai sentir-se mais leve e livre de preocupações. Foi assim que eu me senti.” E o Pedro Jerónimo, jornalista, acha que é “um teste de coragem e ao mesmo tempo um exercício recomendável aos jornalistas da nova geração”.
Sim, eu posso, por uma semana, regressar ao passado. Continuar a trabalhar, todos os dias no jornal, como se tudo estivesse na mesma. Não usar os meus telemóveis (tenho dois, um 96 e um 93, um velho Samsung e um moderno iPhone), pedir aos informáticos para me desligarem o cabo de rede do meu PC e ficar sem acesso à WWW, às inúmeras contas de e-mail, ao blogue, etc. Usar o telefone fixo pousado em cima da secretária. À noite, chegar a Alfama, onde vivo, e voltar a usar o telefone fixo que nunca cheguei a mandar desligar. Esconder os portáteis e o Kindle e o Sony Reader (os meus leitores de e-books) na gaveta mais funda.
Parto para a reportagem com vários olhos postos em mim.
3 de Agosto. Os telemóveis estão desligados. Os aparelhos para ler livros electrónicos e jornais também. 10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1… zás (o Luís puxa o cabo de rede do meu computador). Já está? Respiro fundo e digo: “Morri.”
Não tenho acesso à Internet. Fiquei desligada da rede do jornal. Não tenho acesso aos telexes das agências de notícias como a Reuters, a Lusa, etc. (nos anos 1990, os telexes eram distribuídos pelas secções do jornal em papel fininho, hoje chegam aos nossos computadores por via electrónica).
Deixei de ter acesso ao SpeedWriter, o programa que nos permite colocar os textos no “buraco” que nos está destinado na maqueta do jornal, onde ficam disponíveis para serem lidos pelos editores e depois paginados pelos gráficos.
Uma pen passa a ser a minha melhor amiga. Nos anos 1990 tínhamos disquetes, agora temos as canetas que através das portas USB dos computadores deixam que se arrastem para lá os documentos.
Foi isso que fiz toda a semana: copiar os textos que escrevi para a pen, dirigir-me aos editores para voltar a enfiar a pen nos seus computadores e assim entregar-lhes os textos. Nestas andanças ouvi muitos suspiros e exclamações de irritação. Os meus colegas sentiram que, com isto, estavam a perder tempo. Sem eles, eu não poderia colocar os meus textos no SpeedWriter.
Uma semana limitada ao Microsoft Word. Aviso o editor do ípsilon que não conte com a minha crónica Ciberescritas esta semana. É uma coluna semanal sobre o futuro dos livros, a presença de escritores na Internet e a relação entre as novas tecnologias e a literatura que faço para o jornal desde 1996. Para a escrever tenho que referir links e pesquisar na World Wide Web. Estou proibida. Logo, impossibilitada de escrever a crónica.
Tenho de fazer umas legendas para a secção Dress Code da revista Pública e começam as minhas dificuldades. Percebo que deixei de ter acesso ao dicionário on-line FLIP4 da Priberam, que só funciona se o computador estiver ligado à rede. Digo o meu primeiro palavrão da semana (vão seguir-se outros). Os dicionários em papel regressam à minha secretária e nunca mais de lá saem. Pergunto se o acento de Almodóvar está certo e como se soletra o nome do filme do realizador em espanhol, para não cometer erros. Uma coisa que estaria resolvida em segundos, se tivesse acesso à WWW. Aparece-me uma referência a “Jojo Bizarre Adventure”, preciso de saber o que é isto. É um jogo de vídeo? É uma BD? Não sei. Não posso ir ao Google, resolvo ignorar.
Telefonam-me para o fixo a pedir o número de telefone de um escritor. Por sorte está na agenda em papel. Outra dificuldade. Os meus contactos estão todos no Mobile Me, de que sou cliente, e que me permite ter os contactos telefónicos agrupados e sempre actualizados nos computadores e no iPhone sem fazer esforço nenhum (o programa através da rede sincroniza todos os aparelhos). Passo a semana a pedir, por favor, a amigos que me dêem os números das pessoas com quem preciso de falar e que não estão na agenda em papel.
Ao almoço, na esplanada, pergunto à Bárbara se tem o meu número de telefone fixo de casa. A resposta é não. “Podes dar-me?”, diz. Não sei de cor. Espantoso. Procuro na carteira e não encontro a agenda telefónica. Deixei-a na secretária. “Ah, não faz mal. Depois mandas-me um e-mail!” Gargalhada geral. É a primeira das muitas piadinhas. Caio em todas.
“Isabel, estás bem?” pergunta a minha colega do lado, a Alexandra, quando chega de um serviço a meio da tarde. “A vida é um tédio?” É.
Ao longo do dia, de vez em quando, clico no ícone do correio electrónico. Não acontece nada, mas é um gesto mecânico que não consigo deixar de fazer.
Entretanto o telefone toca. Pela segunda vez no dia. São seis da tarde de segunda-feira. É o meu namorado. “Estou farto de te ligar para os telemóveis!”, ouço-o desesperado do outro lado do fio. Avisei-te que ia passar a semana sem telemóveis nem Internet. E que tinhas de me ligar para os fixos. “Pensava que a experiência era só para a semana”, diz. “Acho que não vais resistir. Dou-te 24 horas. Já estás a soar desesperada. Deves estar aí a chatear os teus colegas todos.” Aproxima-se a Maria José. Viu no blogue o meu anúncio. “Estás de férias?” Não, estou a trabalhar. “Para ser publicado amanhã?”, pergunta ela. Não, estou a escrever a entrevista que fiz ao Mia Couto para o ípsilon num dia em que ainda tinha telemóvel. Sem telemóveis não tinha havido conversa, estávamos os dois desencontrados na Expo e foi graças aos telemóveis que tudo se resolveu.
Às 20h50, tenho o pensamento deprimente do dia, sentada à minha secretária: “O meu computador está morto. Não tem graça nenhuma.” Toca o telefone. Atendo. É o meu namorado e as suas gracinhas. “Se calhar esta semana vou mais vezes dormir a tua casa.” ….? “Para nos dedicarmos ao sexo, já que não tens nada para fazer.”
4 de Agosto. Antes de sair de casa lembrei-me de colocar outra vez um relógio no pulso. Tem a pilha a pifar. Vai-se atrasar. Deixei de saber as diferenças horárias em relação a outras cidades no mundo. Vantagens de se usar um iPhone.
Chego ao jornal. Até à minha secretária, lá ao fundo, escondida entre pilhas de livros, passo por uns dez computadores. Estão todos ligados. De esguelha vejo que há quem esteja a consultar o correio electrónico. Quem esteja a navegar no “site” do PÚBLICO. Quem esteja a pesquisar no Google. Quem esteja a ver telexes e jornais estrangeiros. Enquanto atravesso a sala, ouço um telemóvel tocar, tocar, tocar. Alguém o deixou esquecido em cima da mesa. Tenho a tentação de o ir atender, não posso. Sento-me na cadeira e olho para o ecrã do computador: deprimida.
Parece mesmo morto. O único sinal de vida é um documento aberto no Microsoft Word. Um texto sobre Gay Talese, o escritor norte-americano e jornalista que perto dos 80 anos continua a dizer que só utiliza o computador como se fosse uma máquina de escrever. “Afastem-se do vosso computador!”, está sempre a aconselhar a jovens jornalistas. “Não obtenham as vossas informações através das novas tecnologias.” Abaixo a preguiça do Google! Abaixo a preguiça dos telemóveis que permitem encontrar uma pessoa em qualquer lugar. “Levantem o rabo dessas cadeiras. Vão aos sítios. Sejam curiosos.” Eu sou curiosa, por isso mesmo é que necessito de usar todos os meios de acesso à informação.
A meio da manhã é distribuído o correio e a Joana aparece a dizer: “Estão a mandar-te postais!”, exclama. Recebo três. A Sara Belo Luís, jornalista: “Tenho a certeza que descobrirás uma outra forma de olhar o mundo. Acredito que também é possível fazer bom jornalismo off-line.” A Ana Pereirinha, editora: “Resiste à tortura analógica!” E o Luís Bonifácio, amigo de infância: “Boa experiência. Já não escrevo uma coisa destas há mais de 20 anos. Só mesmo tu! Diverte-te.” Quase chorei.
Transformei-me numa pedinchas. A Pedinchas-mor. É o que eu sou. Preciso de ajuda para tudo. A Guerra Civil em Moçambique terminou em 1992 ou em 1993? Preparo-me para ir ao centro de documentação consultar enciclopédias. Passo pela secretária do Jorge. Ele salva-me. Sabe a data de cor. Volto para cima. Perco a notícia do dia na minha área. As duas associações de editores e livreiros vão-se juntar numa só. São quase oito da noite e o director quase a rir-se diz-me que tenho que fazer a notícia. Não tenho o comunicado da APEL – Associação Portuguesa de Editores e Livreiros. “Deve estar na minha caixa de correio electrónico”, penso. A Ana ajuda-me. Imprime os telexes da Lusa. Começo a telefonar a pessoas. Pen para cá, pen para lá. De súbito dou-me conta de que já não estou angustiada. Começo a achar graça a isto, a estar meio desligada do que se passa no mundo. A ninguém me telefonar. A não ter novidades nenhumas para contar. A não andar de carro por ter medo de ter um acidente e não ter telemóvel. Chego a casa meio morta, ouço a SIC Notícias, adormeço no sofá.
5 de Agosto. É o telefone que não toca. São as piadas que continuam. O Alexandre chama-me: “Isabel?! Preciso de ti.” Sim?… “Quero o teu número de telemóvel, para mandar um SMS.” Risos à minha volta. “Como te sentes? Ainda estás a ressacar?”, pergunta alguém. Começo a dar respostas tortas. Ao almoço já estou quase aos berros. Ninguém se meta comigo. Começo a ficar paranóica por estar a perder notícias. Desato a telefonar para as fontes. Depois de uma ronda percebo que nada estará para acontecer. “Está tudo calminho.” Peço por favor para se souberem de alguma coisa me ligarem para o fixo. “Já se sabe quem é o senhor Palomar?”, pergunto com medo que a minha ausência do mundo “on-line” me leve a perder o momento em que todos ficam a saber quem está por detrás do blogue que está a agitar o meio literário português. “Estás em pulgas para voltares a saber do mundo, não é? Antigamente ia-se aos cafés onde toda a gente se encontrava. Vai ao Snob, aos lançamentos de livros…”, gozam-me. “Escolheram-te a dedo, não? Deves ser a rapariga que mais gadgets tem na secretária.” Leio todos os jornais em papel que encontro à minha frente. Sinto falta de os ler on-line, pois arquivo tudo o que me interessa no Publish2. Leio na revista Sábado que o Miguel Esteves Cardoso está no Twitter. “O MEC no Twitter e eu perdi isso?!” Bolas.
A Sony lança um novo e-reader nos EUA, diz o Filipe ao meu lado. Morre um escritor israelita. Como é que sei? Porque as pessoas me dizem. Talvez se eu tivesse um rádio… Que vida triste. Ouço uma conversa telefónica da Alexandra P. ao meu lado, está a explicar a alguém ao telemóvel: “O telefone fixo eu tenho, mas tenho uma má relação com ele.” Olha para mim (devo estar com olhos assassinos) e desata a rir-se. Começo a bater insistentemente com o pé no chão.
6 de Agosto. A vingança serve-se fria e chegou na quinta-feira à tarde, eram quase cinco horas. O Vasco, atrás de mim, pergunta se os outros colegas estão a conseguir aceder ao Facebook. E a pergunta repete-se para o Twitter. Depois de um enorme burburinho percebe-se que ambas as redes sociais estão em baixo. Agora é a minha vez de rir. Uma hora depois a Joana vê on-line que foi um ataque de hackers. No dia seguinte, está tudo explicadinho nos jornais. Ah, a vida é bela. Durante algum tempo não estive sozinha neste mundo.
Um mundo que numa semana inteira encolheu. No caminho entre a minha casa e a estação do metro de Santa Apolónia tenho nos meus pensamentos uma ideia fixa. O que se estará a passar com os meus amigos do outro lado do mundo? Penso insistentemente no Facebook. Vou imaginando o que se passará por lá. Enfiada na carruagem do metro, olho à minha volta e quase todos têm um telemóvel na não. Estão constantemente a enviar SMS.
No jornal compenso a carência com bombons que roubo à Andreia e à Catarina. Elas dizem que estou estranha, com os olhos muito abertos. “Como eu estava quando deixei de fumar”, diz a Andreia.
A angústia foi-se diluindo, mas instalou-se uma sensação de solidão. Preciso de falar com pessoas. Telefono à minha irmã e digo: “Não me ligas nenhuma!” “Telefonei-te ontem, deixei mensagem no telemóvel…”
O Tiago, um editor, pede-me para fazer a notícia sobre Diogo Morgado e a sua participação como actor principal num filme americano. Já traz na mão os papéis com as informações que tirou das agências e jornais na Internet. Tinha ficado combinado que os leitores não tinham culpa nenhuma desta experiência e por isso, quando fosse necessário saber alguma informação, eu teria que pedir a alguém que me ajudasse. Aconteceu: a referência ao orçamento do filme só estava disponível na Internet. O Tiago pesquisou e comunicou-me. Regresso a casa. Fico horas a falar com a minha mãe ao telefone.
7 de Agosto. Chegam ao jornal duas cartas. O Miguel Garcia, MrJazzMan, que só conheço do Twitter, manda uma carta em forma de “tweets”. “Queremos que voltes rápido. (…) Notícias não tenho mais do que tu aí na redacção do jornal. A maior vivência és tu que a estás a experimentar (…).” E outra do Pedro Aniceto, do blogue Reflexões de um cão com pulgas, escrita à mão (tenho alguma dificuldade em perceber a caligrafia), que no primeiro dia já tinha telefonado para o fixo, a encorajar-me. “(…) Saiba antes de tudo o resto que não foi fácil (de todo!) lobrigar nas papelarias uma folha pautada do velho papel de carta mai’ lo velho costumeiro sobrescrito. Um tipo adentra a loja e pede isto e quase parece ter pedido uma folha de ‘cannabis’ tal é o espanto e admiração… Faz mais de 20 anos que não grafava meia dúzia de mal alinhavadas linhas numa destas laudas, mas quando me apercebi da sua desdita, não resisti a expressar-lhe a minha solidariedade. (…) Coragem, mulher!”
Bem preciso. Depois de ouvir a gravação da conferência de imprensa de Gay Talese a que assisti há um mês em Paraty, no Brasil, necessito de confirmar uma série de pormenores – nomes, datas – no seu livro The Writer’s Life. Não posso. Só o tenho em versão e-book e só o posso ler no Kindle. Como estou proibida, desato a telefonar aos meus amigos a perguntar se têm o livro em papel. Ninguém tem. Não posso terminar o artigo. Fica em banho-maria até eu ligar os aparelhos.
É possível que as minhas lentes de contacto já tenham chegado. Resolvo passar pelo oculista para saber se já vieram, costumam enviar um SMS. “Não, ainda não estão cá”, respondem. Vou para a Baixa. Combino com o Vasco telefonar-lhe para sairmos à noite. A sensação é boa. Saber que por algumas horas ninguém sabe onde estou. Saber que o telemóvel não vai desatar a tocar por tudo e por nada. Entro numa livraria, passeio pelas ruas e entro noutra. Mas isto só dura até serem horas de ligar ao Vasco. Começa então a minha peregrinação em busca de um telefone público. Escondido nos confins da minha memória, lembrei-me de um no Rossio. Será que ainda existe? Tenho a certeza que na Av. da Liberdade ao pé da saída do metro há. Mas é longe. Começo a descer o Chiado, já estou na Rua Nova do Almada, Praça do Comércio, estou a desesperar. Não se avista uma cabine e nos cafés já não há papéis a dizer o preço por período. No Campo das Cebolas, sorrio. Uma cabine telefónica! E funciona com moedas!!! Ligo ao Vasco e aos meus amigos. Estão algures no Bairro Alto numa esplanada que não conheço. A busca pelo telefone foi em vão. Não tenho coragem de voltar a subir até ao Camões e, sem telemóvel, andar desesperada, à toa, a tentar encontrar a tal esplanada faz-me desistir. Vou para casa. Arrumar papéis.
8 de Agosto. “Isabel, morreu o Raul Solnado”, diz o Tiago. Fico branca. O que eu mais temia aconteceu. Estou a trabalhar no fim-de-semana e tenho que escrever um obituário. “Tiago, como é que vou fazer? Estou a trabalhar sozinha. Não tenho acesso aos telexes, não tenho acesso à Net, não tenho a minha agenda telefónica, não tenho… Alguém vai ter que me ajudar.” A Alexandra é a jornalista de fecho neste fim-de-semana, vem trabalhar ao final da tarde, mas aparece mais cedo. É decidido que as três páginas do destaque do jornal serão dedicadas ao Raul Solnado. Não sei o que se passa no “site” do jornal – se já lá está a notícia e que links temos. Toda essa parte importante da actualidade num jornal dos dias de hoje passa-me ao lado. Vejo a Alexandra desesperada a tentar preparar um dossier on-line. Não interessa, é um mundo que agora me escapa. Enfio-me no Centro de Documentação à procura da pasta com os recortes dos jornais dedicados a Raul Solnado, organizada ao longo de anos. Encontro-a. Uff!
Depois, vou à procura das revistas Pública encadernadas. Está lá a entrevista que Duarte Mexia fez ao actor em 2002. Volto à minha secretária. Dividimos o trabalho. A Alexandra imprime-me os telexes para eu ficar a saber alguns pormenores sobre o que aconteceu, onde estava internado, etc. Parto então para uma tarde toda agarrada ao telefone. Contacto os amigos, actores, pessoas que o conheceram, para que contem histórias. Dactilografo tudo no computador e imprimo. Dou à Alexandra. Copio para a pen, desço as escadas, vou ter com a Ana que está a colocar on-line os textos e copio os depoimentos para o computador dela. Volto para cima. Mergulho nos imensos papéis para escrever cinco momentos importantes na carreira de Solnado. Agradeço várias vezes em pensamento a quem durante anos fotocopiou e organizou aquela pasta onde está contida uma vida inteira. Preciso de pormenores – datas e etc – sobre o programa A Visita da Cornélia. A Alexandra imprime-me informações que estão no site da RTP. Imprime-me também um e-mail que recebeu com mais informações. Horas depois conseguimos. Fazemos três páginas.
9 de Agosto. Vejo a Ana e digo-lhe que devíamos mudar uma referência num dos depoimentos que lhe dei no dia anterior. Ela vai à procura dos depoimentos e diz que não estão on-line. Não os chegou a pôr. “Fartei-me de procurar e não recebi o teu e-mail.” No meio do stress, nunca mais se lembrou que eu não lhe podia mandar por e-mail os textos. Como não tinham chegado da maneira habitual, ficaram perdidos no desktop do seu computador.
Os depoimentos nunca chegaram a estar no site do PÚBLICO, mas depois de uma ronda pelos jornais percebo que fomos os que conseguimos falar com mais pessoas. Fico contente.
Tenho de ir ao funeral de Raul Solnado, marcado para as seis da tarde. Seis da tarde… Ainda são só quatro. Até lá não tenho nada para fazer. Em circunstâncias normais estaria a navegar na Internet, a apagar e-mails. Que tédio, que tédio, que tédio. Nem sequer me apetece ler. Aliás, ler foi o que menos fiz durante esta semana. Vi mais televisão, ouvi mais música. À noite não conseguia concentrar-me na leitura.
Vejo na televisão que Rui Lagartinho está em directo a partir do velório. Telefono-lhe do fixo a avisar que vou para lá, para ele estar atento e me tentar encontrar porque não tenho telemóvel. Cinco e meia, preparo-me para ir. O Tiago diz para eu ligar, se achar que é necessário dar mais espaço no jornal do que o previsto. “Mas como Tiago? Não tenho telemóvel!” Copio de qualquer maneira os contactos dele para a minha agenda. Desço para perguntar quem é o fotógrafo que irá fazer a reportagem comigo. É o Enric, ele vai lá ter. A Ana chama-me para pedir que eu dite de lá um texto curto para o PÚBLICO on-line. Lembro-lhe pacientemente que não posso usar telemóvel. “Como é que mandam para o funeral uma jornalista que não está contactável?” Queres vir comigo?, brinco.
Logo à entrada do Palácio Galveias encontro o Rui Lagartinho. No meio da confusão nunca mais o vi. Mais tarde esbarro com o Enric, o fotógrafo. “Tenho um recado para ti. Telefonaram do jornal a pedir para ligares, mas depois acabaram por me dar o recado. Tens uma página”, diz, mal me vê. Soube mais tarde que no jornal a Alexandra esteve algum tempo a ver quando é que Rui Lagartinho deixava de estar em directo na RTP para lhe ligar para o telemóvel. Queria pedir-lhe para me avisar de que o espaço para o texto tinha aumentado. Nunca conseguiu. Mas o recado acabou por me chegar. É preciso chamar um táxi, o Enric faz isso por mim. Regresso ao jornal. Escrevo. Pen para aqui, pen para lá. Antes de me ir embora aviso a minha mãe e o meu namorado usando o fixo. “Vou sair do jornal e não vou já para casa. Não fiquem preocupados. Estou com as minhas amigas.” Amanhã isto termina.
10 de Agosto. Estou desesperada. É hoje o dia em que voltarei a ligar os telemóveis e a ter Internet, mas só o posso fazer depois de a Sandra me filmar para o vídeo que se está a fazer para o site do jornal. Ela faz-me sofrer. Passo o dia a ir perguntar se ela já chegou. A que horas vem. Estou insuportável. Para passar o tempo ando de um lado para o outro da redacção. Não consigo estar quieta. Pego na bola amarela que tenho para combater o stress e agarro-me a ela. Aperto, aperto e aperto. Tenho o texto do Gay Talese parado porque preciso de ir consultar o livro que está no Kindle. As pessoas já não me ligam nenhuma, já não se metem comigo. Hoje não tenho nenhum texto para escrever para o dia. Por volta das cinco da tarde a Sandra aparece. Câmara a postos. Ligo os telemóveis. Tenho um SMS no Samsung, de uma amiga a perguntar se eu estou de férias, algumas chamadas não atendidas, mas nenhum recado no atendedor. O iPhone fica mudo. Acabará por tocar com aviso de umas cinco chamadas não atendidas umas horas mais tarde. Nada de urgente. Nenhuma notícia. Parece que afinal não perdi nada de especial. Aprendi esta semana que é perfeitamente possível sobreviver sem telemóvel. Mas a nossa vida – quer se seja jornalista ou não – fica muito mais complicada.
O Jordão liga o cabo de rede no meu computador. O correio electrónico começa a descarregar. Caem 100 mensagens e a caixa fica cheia, bloqueia. Antes de descarregar as outras quase 500 mensagens que ainda lá estão, sou obrigada a apagar e-mails. Descubro que na minha ausência forçada se estiveram a discutir imensas coisas no jornal – trabalhos futuros, o que fazer no aniversário dos 20 anos do jornal, etc. – através de comunicados enviados por e-mail. Passou-me tudo ao lado.
Não se pode ser um bom jornalista actualmente sem recorrer às novas tecnologias. Foi isso que aprendi esta semana. A actualidade do dia-a-dia escapou-me completamente. A leitura de jornais e revistas estrangeiras ficou reduzida ao mínimo. Passei os dias a pedir ajuda aos meus colegas para escrever notícias. Não haja ilusões. É impossível chegar a certas informações de outra maneira.
Tenho um sorriso estampado na cara. Recuperei a minha vida normal. Agora quero ficar sozinha. Na companhia dos meus gadgets e dos meus amigos e leitores no ciberespaço. Começo a apagar e-mails. Fico à espera que os telemóveis toquem outra vez. O meu som preferido. Que saudades.
(reportagem publicada na revista PÚBLICA no dia 23 de Agosto de 2009)
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Muito bacana! Realmente deve ter sido difícil viver fora do seu mundo usual.Mas a experiência deve ter sido única.
Com certeza foi uma ótima experiência, porém o resultado fica um pouco distorcido porque os tempos são outros. Quando se tem a tecnologia, fica muito dificil viver sem ela. No passado recente, entretanto,não havia nada disso e nem assim considerar-se-ia uma pessoa sem informação. Quer dizer, embora demorando, a informação chegava no tempo correto para o próprio tempo.
Paga-se um bom preço pela tecnologia. O preço da tranquilidade.
Sou informático, tenho vários blogs, sou presidente de uma associação, uma vez por ano faço mais ou menos o que fez, a diferença é que não estou a trabalhar.
A família pega em mim, mete-me no carro junto com a tenda de campismo e lá vamos de férias. Durante 15 dias não há telemóvel, nem computadores, televisão só a do bar do parque de campismo… sabe uma coisa, volto sempre descansado das férias…
Gostei do post, parabéns.
Jorge Soares
Isabel, eu vivo mais ou menos como descreveu a sua semana de reclusão mas sinto-me muito feliz embora, por vezes, reconheço, desatualizada, ah, mas também não sou jornalista. Os meus parabéns por tão bem ter realizado um objetivo alheio.
A grande maioria da população portuguesa vive assim, uns porque não precisam dos “novos meios”, os outros porque – muito simplesmente – porque o “Portugal profundo” onde vivem não tem cobertura das redes de telemóveis nem a tal banda larga que o mentiroso do primeiro-ministro disse cobrir o pais todo. É uma privilegiada, como eu sou. Mas saia da sua Lisboa e mergulhe no interior. Ou sugira isso no seu jornal. O “país real” é outro mundo… Descubram-no e compreendam.
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Ó Isabel, umas férias teriam sido mais interessantes do que esse fútil e desprestigioso exercício jornalístico (?)