O desaparecido

Os silêncios de Robert Redford são eloquentes testemunhos de uma solidão que povoou o cinema americano dos anos 70. All is Lost é uma cerimónia  com esse legado   

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O silêncio dos WASPs, dos white anglo-saxon protestants. “Sim, eu sei. Fui criado no silêncio. Sinto-me confortável com o silêncio. O meu argumentista era um judeu e não parava de me dizer: ‘Porque é que vocês não falam sobre as coisas?’. Mas não falamos.” O retrato, no Baltimore Sun  de 1992, no lançamento de Duas Vidas e o Rio: “E assim acontece que  Redford, que como estrela de cinema representa a beleza WASP, se tornou, como realizador, no poeta do silêncio WASP.” Essa timidez, o retraimento, como reserva das elites, foram olhados de forma depreciativa como cultura da arrogância e sinónimo de impotência. Por exemplo, David Thomson, no seu Biographic Dictionary of Film, concedendo crédito a Redford por ter  acreditado no timing de Os Homens do Presidente (Alan J. Pakula, 1976), verte ironia sobre a utopia Sundance, o festival que Redford criou em 1981 (“uma maneira de pensar bem de si mesmo e, eventualmente, um catálogo de presentes”). E olha para a carreira do actor/realizador como promessa não cumprida, já que a reserva é, segundo ele, resistência ao humor, à raiva e até ao sexo. Em suma: Redford terá sido homem do modish glamour em vez de real character.

Yfilmeredfordj)2colYfilmeredfordn)2coloriginalE se esse silêncio for um eloquente testemunho de uma solidão que povoou  o cinema americano dos 70s, esse “breve movimento modernista no cinema comercial americano” em que “os indivíduos tiveram oportunidade de impressionar e de exprimir os seus pontos de vista e de perseguir a possibilidade romântica de ainda haver intervenções individuais dentro da homogeneização do cinema”? Era assim que Robert Philip Kolker descrevia a Nova Hollywood, mas Redford está ausente do seu livro, A cinema of loneliness. Talvez tivesse havido desígnio nessa ausência, a partir do momento em que o actor, inicialmente designado para o Benjamin Braddock de A Primeira Noite (1967), foi preterido em favor de Dustin Hoffman, escolha de Mike Nichols. Sabe-se o que aconteceu a seguir, a  invasão dos judeus e dos italo-americanos, os Hoffman, os Pacino e os DeNiro, viscerais, morenos… Tal como aconteceu a Clint Eastwood, Redford, atleta louro, era um anacronismo face aos ares que sopravam no seu tempo. Mas onde Clint foi ao fundo da sua persona com violentas  pulsões sadomasoquistas, Robert foi desejando (delírio deste lado…) a  invisibilidade. Em O Cowboy Eléctrico (Sidney Pollack, 1979), cowboy de  rodeos a vender cereais em Las Vegas, ele diz a Jane Fonda, uma jornalista que paira sobre uma expectativa de cadáver: “Não quero ser uma história” — o primeiro terço do filme é uma espera, a ver se a       personagem se apaga. E é nisso em que ele se torna, numa não-história, no final de Os Três Dias do Condor (Pollack, 1975), investigador da CIA  que fica com existência suspensa a partir do momento em que, por obra do  acaso, escapa a um sacrifício com que o sistema se regenera. Redford estava sempre à beira de ser engolido pela escuridão — nos encontros com Garganta Funda, em Os Homens do Presidente, iluminados pelo Prince of  Darkness Gordon Willis, ele não simbolizava a contra-cultura a desafiar as instituições (como Hoffman, Warren Beatty, Pacino ou DeNiro nos barrocos veículos que tiveram para as suas solidões); ele era o establishment que se aniquilava. Os seus heróis românticos, na sua tristeza à beira da inexpressividade, já quase sem sinais vitais (O Nosso Amor de Ontem, Pollack, 1973; O Grande Gatsby, Jack Clayton, 1974;  África Minha, Pollack, 1984; Havana, Pollack, 1986), não diziam outra coisa: desaparecer. E não havia fuga salvífica, como se viu em Jeremiah  Johnson (Pollack, 1972).

É com o silêncio desse filme que All is Lost/Quando Tudo Está Perdido, de J. C. Chandor (segunda longa de um protegido de Sundance, o realizador de Margin Call/Um Dia Antes do Fim), estabelece  diálogo terminal. Nesta negociação material de uma personagem com o seu fim — gestos de um homem sozinho no mar, depois de um abalroamento —,  Redford, 78 anos, pode representar aquilo que Hoffman, Pacino ou DeNiro talvez já não possam porque os seus corpos, entretanto, se viram desapossados da memória viva de um tempo – porque se esqueceram das suas mortes. O “desaparecimento” de Redford — de novo: a reserva — manteve silencioso e intacto esse elo com o passado. All is Lost é, para além do retrato de uma persona, um exercício, no limite do possível hoje no  mainstream, sobre a existência individual dentro da homogeneização. É um filme que tem de negociar a solidão, contornando e cedendo (música aqui, peixes ali…) — o que o torna pungente mesmo quando cede. Quando se estrear a 6 de Fevereiro, será a coisa mais bonita em cartaz. A solidão de  Redford, que faz a barba antes da tempestade, que esbraceja perante navios que não o vêem, começa por estar cercada pelo filme. “Lamento. Sei que isso conta pouco nesta fase, mas lamento. Tentei. Acho que todos concordarão que tentei. Ser verdadeiro, ser forte, ser gentil, amar, estar certo. Mas não estava.” Quer dizer, os seus silêncios são eloquentes testemunhos de uma solidão que povoou o cinema americano dos anos 70. All  is Lost é uma cerimónia com esse legado. E, se calhar, neste naufrágio all is lost.

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