“No questions asked”

Por João Paulo Batalha, membro da Direção da TIAC

Há não muito tempo, sempre que um governante português visitava Angola, tinha de pular esta poça do embaraço: à saída da inevitável reunião de trabalho com o homólogo angolano, vinha a pergunta recorrente dos jornalistas: “Falaram de corrupção?” O talento político do governante media-se em boa parte pela agilidade com que respondia à questão – e a resposta geralmente variava entre um tímido “discutimos as questões relevantes para a cooperação económica entre os dois países irmãos” ou uma menos corajosa variante de “não cabe a Portugal intrometer-se nas questões internas de um país soberano”.

Quando o então ministro dos Negócios Estrangeiros Freitas do Amaral anunciou o “ciclo do pragmatismo” nas relações com Angola e despachou a questão com um olímpico encolher de ombros, explicando que Portugal não tem lições a dar em matéria de combate à corrupção, eu devia ter percebido que aquilo não era apenas um veterano político a gerir o ritual habitual. Era uma nova política oficial que se anunciava, e que hoje é absolutamente flagrante: falido e sob intervenção externa, Portugal deixou-se de peneiras. Hoje procura onde conseguir (na China, em Omã ou em Angola) dinheiro estrangeiro que ajude a compor as contas e a vender a imagem de uma economia aberta e apetecível ao investimento externo. Vendem-se os anéis, os dedos – e os rins, se alguém os quiser! – para pagar o estado de emergência em que o país se encontra. O preço a pagar por essa “hospitalidade” ao investimento: ninguém faz perguntas.

Os processos de privatização, a vaga de participações estrangeiras em grandes empresas portuguesas, as viagens regulares dos nossos governantes a esses novos “mercados potenciais” revelam os contornos da nova política: se tiver dinheiro para gastar, não lhe perguntaremos onde o arranjou. Nem lhe perguntaremos o que quer fazer com ele, nem que propósitos serve. Na urgência de pagar a crise, o país entrega, nem sempre a investidores transparentes ou a empresários insuspeitos, tudo que eles quiserem comprar. Sem cerimónias. Hoje já ninguém faz perguntas sobre corrupção aos governantes que visitam Angola e Portugal prepara-se, com entusiasmo “lusófono”, para acolher na CPLP a Guiné Equatorial, um país onde as riquezas, as liberdades e as vidas pertencem por inteiro ao Presidente Obiang e à sua quadrilha – hoje, precisamente, estão reunidos em Lisboa os ministros dos Negócios Estrangeiros da CPLP, e da reunião sairá um sinal (o sinal errado, temo) sobre essa adesão.

Como dizia o meu avô Batalha, “Quem não tem colher sua nunca come quando quer”. Desperdiçada a nossa soberania económica num vazadouro de dívida estoirada em obras públicas de duvidosa utilidade, em Parcerias Público-Privadas nebulosas ou resgates bancários bilionários, resta-nos assistir ao espetáculo perturbador dos “investidores” que se servem sem cerimónias da pouca comida que ainda temos na mesa, partilhando connosco os restos que lhes aprouver oferecer-nos (geralmente, sob a forma de lugares nos Conselhos de Administração para os rapazes do costume). Tudo isto levanta questões urgentes de política económica. Mas, mais do que isso, levanta questões morais e éticas que nos tocam a todos. E não, mesmo em recessão, a ética não é um luxo.

Não há dúvidas de que a corrupção tem culpas pesadas no cartório da crise. Basta contabilizar o dinheiro perdido em derrapagens de obras públicas, em concessões que entregam o risco ao Estado e o lucro ao privado, em arranjos feitos por governantes que depois se transferem para as empresas privadas com quem negociaram negócios ruinosos. Basta registar o agravamento das perceções de corrupção em Portugal, revelado pelos estudos da Tranparency International. Não somos um país transparente e íntegro. Se fôssemos, não teríamos chegado onde chegámos.

E agora, como saímos disto? Há duas maneiras: limpar de conflitos de interesses a Administração Pública, o Governo e o Parlamento; fechar a cadeado a porta giratória entre interesses públicos e vantagens privadas; tornar mais transparente o atual labirinto de normas, leis e regulamentos para que as atividades económicas possam ser licenciadas de forma simples e expedita, com regras claras e responsabilidades assumidas; pôr a Justiça a funcionar e dar-lhe meios para que de facto funcione. Ou então ir pelo outro lado: criar isenções PIN para projetos milionários, com direito a suspensão das regras e despachos amigáveis; escancarar a porta das privatizações a dinheiro fresco, venha de onde vier; dar todo o tipo de vantagens e acesso político a quem trouxer os bolsos cheios.

A escolha não é indiferente, nem sequer no impacto que terá no combate à crise. Porque a corrupção afasta o bom investimento, o investimento estrutural, de longo prazo, construtivo, inovador e empenhado. Porque, apesar do entusiasmo com que os nossos governos promovem os “novos mercados potenciais”, já tenho ouvido mais do que uma história de pequenos empresários portugueses que perderam tudo o que tinham – em Angola, por exemplo – porque ficaram presos às malhas da corrupção, porque não conseguiram pagar aos poderosos para descarregar as suas mercadorias ou porque não fizeram os sócios certos dentro dos corredores do poder. Isto, senhores governantes, não é “internacionalização” da economia portuguesa. É perder riqueza, é queimar potencial, é destruir valor. Num sistema aberto ao banditismo, só sobrevivem os bandidos. E com bandidos, o que se produz é o imposto da desigualdade social, da anemia económica, do saque e do desespero.

No fundo, não é uma questão complicada: podemos criar um país limpo de regras claras, ou uma feira da ladra de “no questions asked”.

A boa notícia: o sistema, como está, não fica. A crise está a despertar-nos para as falhas e para os abusos, obriga-nos a quebrar o silêncio e a exigir mudanças. Esgotadas as opções do comodismo e da complacência, o país está a acordar.

A má notícia: isto pode mudar, sim, mas para muito pior. Sem a voz poderosa dos cidadãos, corremos o risco de ver derrubadas as últimas fronteiras de integridade que nos protegem do descalabro.

Nesse sentido, a decisão que se avizinha sobre a entrada da Guiné Equatorial na CPLP é um bom indicador do que aí vem. Novas adesões têm de ser aprovadas por unanimidade. Basta Portugal dizer não. Basta o país decidir que nem tudo vale, que nem tudo está à venda, que queremos um país íntegro, não uma Riviera para ditadores e mafiosos.

É esta a escolha: ou seguimos em força para a frente, ou seguimos com força para o fundo. Receio que, se deixarmos esta decisão nas mãos dos nossos políticos, nos arrependeremos do resultado.

4 comentários a “No questions asked”

  1. Estão aqui os pontos de um possível “carta de princípios” que podia e devia unir todos os portugueses de bem. Não é preciso mais nada.

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  2. Caro Sr:

    Dou-lhe razão em quase tudo o que, no seu artigo, li.
    Mas, não tenha qualquer dúvida, que os projectos PIN – com a administração pública que temos – são indispensáveis para termos algum investimento.

    Só quem já tentou passar essas “teias” sucessivas – onde o mais pequeno funcionário público leva ao limite o seu “apetite” para “sacar algum” e o seu limite de decisão temporal (que pode ser, muitas vezes interrompido com questões, insignificantes, ao promotor do projecto) – pode avaliar a necessidade de um mecanismo alternativo a estas “aranhas”.

    Corrupto ou não, nenhum investidor suporta a loucura (tantas vezes interesseira) da catadupa de exigências administrativas…

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    • Caro Luís Silva,

      Não duvido de que há muitos empresários honestos e empreendedores a apoiar o regime PIN, e compreensivelmente, porque permite avançar projetos que chegam a estar entravados durante décadas no labirinto administrativo. Compreendo perfeitamente o seu argumento, acredite.

      O meu argumento é que os atalhos são má política. Porque podem encobertar negócios corruptos, mas porque o que sobretudo importa, para todos os investidores (grandes ou pequenos) é ter uma Administração Pública sã, transparente e eficaz. Criar apenas atalhos para os grandes investidores é condenar os pequenos empreendedores e os cidadãos a um sistema que, como bem aponta, é capaz de nos levar à loucura.

      Um remendo, às vezes, ajuda, claro que sim. Mas do que precisamos mesmo é de roupa nova.

      Um abraço amigo!

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    • Os negocios PIN e PIN+ não são de facto necessários. Nem sequer estão pensados para o empresário médio português. É uma ilusão conveniente.

      O que é necessário, e os governantes têm todo o poder para o fazer se realmetne desejassem, é mudar certas regulamentações que permitem e até forçam a existência dos PIN. É dar condições iguais (nos impostos e obrigações sociais exigidas aos empresários portugueses e estrangeiros) para investimentos iguais. Hoje, em Portugal, faz quase mais sentido ir montar uma empresa em Espanha e vir depois para cá fazer “investimento estrangeiro”.

      Os PIN — ou as medidas de excepção que já existiam anteriormente — têm servido para tudo o que há de pior no investimento da última década, desde o descalabro ambiental ao desgoverno urbanístico (caso da IKEA que se instalou em zona protegida quando já existiam DOIS parques industriais disponíveis no concelho).

      «A consequência dos PIN para o ambiente é que os projetos podem ser instalados sobre zonas protegidas como a Reserva Ecológica Nacional ou a Reserva Agrícola Nacional ou até mesmo na Rede Natura ou nos Parques Naturais. De acordo com dados divulgados este mês pela Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal ( AICEP), há 46 projetos PIN em acompanhamento que significam um investimento de 21,6 mil milhões de euros ( o equivalente a 13% do PIB nacional) e criaram 77 958 postos de trabalho. Amaioria são na área do Turismo.»

      Com os PIN em linha e o que o Paulo Batalha escreveu só poderemos concluir que o concelho alemão dado aos gregos para “venderem as suas ilhas” será aplicado em Portugal e em grande velocidade.

      O exemplo do que o Ministro Paulo Portas ofereceu aos colombianos que tenham €1M para investir em Portugal é inacreditável e deveria pasmar e indignar todos os portugueses.

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