Por Orlando Nascimento, juiz Desembargador
A criação do Dia Internacional Contra a Corrupção é o reconhecimento da importância desta matéria ao nível da comunidade global, devendo por isso aproveitar-se este reconhecimento para a divulgação do caráter desviante dos comportamentos que a caracterizam e, mais do que isso, para a sensibilização do cidadão comum sobre a importância, quer das ações de prevenção da corrupção, quer do combate que é preciso mover-lhe, sem cessar.
Como todos sabemos, a corrupção apresenta-se ao cidadão comum sob várias vestes atrativas.
Tendo sempre o dinheiro fácil do seu lado, com cuja partilha acena a todos, indiscriminadamente, e em proporção da sua volúpia, toma também as imagens de removedor de obstáculos burocráticos, inultrapassáveis de outro modo, e de acesso nivelador de teres e poderes a cidadãos que, de uns e de outros, se encontram distantes.
É difícil combater um inimigo com um semblante tão atrativo!
Consciente da dificuldades, mas também da necessidade desse combate e do seu sucesso para uma sociedade mais justa e, nela, para um ser humano mais digno e feliz, passarei a identificar alguns dos campos que, numa perspetiva da sociedade portuguesa, se me afiguram merecedores de uma intervenção prioritária.
I. A conquista do cidadão para a causa da prevenção e combate da corrupção
Nenhum combate à corrupção terá sucesso sem a conquista dos cidadãos para essa causa.
Essa conquista começa, antes de mais, por um sinal público da seriedade dos propósitos de combate à corrupção, enfrentando-a onde ela estiver, sem hesitações e com convicção.
Cumprido esse pressuposto será necessário demonstrar que a ausência de corrupção, ao contrário da dita, facilita a nossa vida, individual e coletiva, desarmando as teias da burocracia, beneficiando uns e outros, reduzindo os impostos e distribuindo melhor a riqueza.
Num país como o nosso, com resquícios de uma relação autocrática com o poder politico, do qual tudo se espera, desde o emprego à oportunidade de negócio, o primeiro importante passo para uma ação credível de prevenção e combate da corrupção é, antes de tudo, a deslocalização da prevenção/combate à corrupção para fora do teatro de luta politica entre Poder e Oposição.
Tenho, para mim, como segura a falsidade do axioma de que é corrupto quem está no poder e de que quem está na oposição é contra a corrupção.
Mas, por vezes, assim parece.
Quem está na oposição exibe-se como paladino do combate à corrupção (até chegar ao poder) e quem está no poder nega, até a dos outros (até voltar à oposição).
Ora, a corrupção é um partido único, um partido por si próprio, que dispensa a democracia e que, nesta, se constitui sobre todos os outros partidos e… está sempre no poder.
É por isso necessário combater a corrupção num patamar diferente da luta entre Poder e Oposição.
E, como em qualquer combate, é necessário obter alguns sucessos que acalentem a esperança, senão numa vitória final, pelo menos numa vitória que mantenha a corrupção e os seus agentes num estrato desqualificado da cidadania.
A confiança do cidadão comum, cumpridor, é essencial para qualquer ação séria de combate à corrupção.
Para tanto, é necessário que o cidadão, normalmente cumpridor, possa cumprir.
E isso, muitas (e demasiadas) vezes não acontece.
Se o cidadão médio, cumpridor, não consegue cumprir os comandos legais, tal significa que a lei, independentemente dos valores que prossegue, irá gerar atos de corrupção.
II. A atividade legislativa
Muitos diplomas legais trazem em si os genes da corrupção, quer porque são incumpríveis pelo cidadão cumpridor, levando-o a comportamentos desviantes, de “desenrasque”, quer porque violam princípios jurídicos antes tidos como seguros, colocando o Estado na posição de um cidadão sem palavra nem valores, quer ainda porque favorecem descaradamente um dos interesses em causa, retirando aos cidadãos direitos que já lhe eram conferidos pela ordem jurídica, como acontece com as leis (melhor será designá-las de “não leis”!) que, alegando conferir direitos, afinal os retiram!
O combate à corrupção começa no próprio ato de feitura das leis.
E continuará com a sua aplicação.
III. A aplicação das leis e a ação dos tribunais
A corrupção é um crime sem ofendido.
Muitos são os beneficiários, mas ninguém se queixa em especial.
O ofendido somos todos nós!
E é um crime de difícil e, muitas vezes incómoda, investigação.
Os poderosos reagem com os meios que têm.
A justiça age com o temor reverencial retratado pelo teatro, pela literatura em geral e pelo cinema.
Ora a repressão judicial da corrupção está, entre nós, nas mãos exclusivas do Ministério Público, que tem poder de arquivar processos relativos a crimes de corrupção, sem a intervenção de qualquer tribunal.
Muitos deles são arquivados por dúvidas, nomeadamente na condenação, o que se configura como uma autêntica absolvição de gabinete, pois não chega a haver julgamento.
As características do crime de corrupção, sem ofendido que dele se queixe ativamente, aconselham de há muito que seja instituído um sistema de fiscalização do arquivamento pelos tribunais.
Afinal, como diz o ditado: “quatro olhos vêm mais que dois”.
Mas a corrupção não é só dos grandes.
A corrupção vive na sociedade como o peixe na água, na qual nada peixe grande, peixe médio e peixe pequeno.
Não faz por isso sentido a organização de grandes e demorados processos.
Antes de qualquer deles acabar já o peixe médio e pequeno se avantajaram a substituir o grande que caiu no anzol, emaranhando o processo.
O que é preciso é reduzir o número de todos os peixes!
A responsabilidade institucional de combater a corrupção não é só dos tribunais.
IV. A responsabilidade dos partidos políticos
Não temos dúvidas de que os partidos são essenciais à democracia.
Apesar disso, os cidadãos portugueses sabem que muitos militantes se servem dos partidos em vez de os servirem, o mesmo fazendo da democracia.
Os partidos portugueses podem contribuir, ativamente, para o combate à corrupção através da transparência do seu funcionamento, desde as suas estruturas (concelhias, distritais, regionais) aos meios de financiamento da sua atividade.
Ganhará a democracia e a administração da coisa pública, em benefício de todos.
V. A corrupção é transversal a toda a sociedade
A corrupção não é apanágio exclusivo de entidades públicas grassando, também, no seio das empresas privadas, onde desvirtua a concorrência, sonega ganhos de capital, prejudica os mais capazes, os mais empreendedores e o interesse público, em vários níveis, desde o aumento da despesa pública e dos impostos que a sustentam, à própria saúde pública, tantas e tantas vezes, sacrificada a estratégias de lucro, concentração de capital e outras.
Também esta corrupção está perto de nós que, como simples consumidores, podemos sofrer os seus efeitos, adquirindo um produto e não outro, ou um produto a preço diferente daquele que resultaria de uma atividade legal, sem corrupção.
E estando presente em organismos públicos e entidades privadas a corrupção não pode deixar de se encontrar, também, na confluência de ambos.
Grande parte da economia situa-se, atualmente, numa zona nebulosa que, genericamente, podemos denominar como concessão de serviços públicos.
E próxima desta concessão de serviços existe também a concessão de bens públicos.
Em qualquer dessas áreas existem agentes (privados ou públicos escondidos como se privados fossem) que exercem autênticos poderes de autoridade perante o cidadão e que, aos olhos deste, colhem em seu beneficio os proveitos que deveriam ser distribuídos por todos.
Quer queiramos quer não, o que a história nos ensina é que estas “concessões” são uma das formas conhecidas de colocar bens públicos, de todos, ao serviço de alguns.
Não deixaria de ajudar a causa do combate à corrupção saber que o Estado português tem um registo público dessas concessões, com a contabilização do que recebe, para proveito público, pela outorga dessas concessões, em interesse privado.
Esta matéria é tão mais importante quanto é certo que vivemos tempos difíceis pois, pela primeira vez, na história que conhecemos, por tradição oral, as remunerações do trabalho em Portugal vão baixar, nominalmente e na realidade, trazendo ao comum dos cidadãos sacrifícios acrescidos.
E as circunstâncias alteraram-se em ambas as matérias.
A meu ver, o combate à corrupção não pode alhear-se desta importante matéria porque, ou o sacrifício é para todos os portugueses, na medida em lhe seja exigível, que o possa suportar, ou é apenas para alguns, com a desagregação social e a consequente perda de valores, porventura até civilizacionais.
Nesta última situação que, esperamos, não venha a acontecer, não haverá combate à corrupção que resista.
Não foi este o propósito e o ânimo com que iniciámos este texto.
Por isso, para 2012, desejamos
Um ano de mais transparência e menos corrupção!
Orlando Nascimento escreve de acordo com as regras do novo Acordo Ortográfico
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