Quando se comemoraram em Berlim os 50 anos do Tratado de Roma, o documento fundador da actual União Europeia, o ambiente era mais optimista do que o de hoje: a queda do Muro ainda era lembrada efusivamente e o sucesso do Euro parecia retumbante. Só Bento XVI destoou, declarando que a Europa estaria a caminho do desaparecimento por não sublinhar a sua fidelidade cristã mas, com franqueza, o Papa era visto pelos governos como um fundamentalista extravagante cuja proposta teocrática vinha ao arrepio das tradições europeias. Merkel concedeu no discurso que a “herança judaico-cristã” foi importante e, tratando do que interessa, ameaçou que a “Europa precisa de mais poderes e mais claros”. Foi assim há dez anos.
No mesmo verão, poucos meses depois da cimeira, o mercado hipotecário norte-americano desabou, arrastando a falência de um grande banco e da maior seguradora mundial, e depois disso de dezenas de bancos nos EUA e na Europa. A partir daí, tivemos a mais longa recessão desde a Segunda Guerra e a única em que o produto de todo o mundo se reduziu. Depois, a crise das dívidas soberanas e do euro e ainda estamos nisso.
Dez anos depois e dentro de semanas, a Cimeira em Roma comemorará os 60 anos e o ambiente é portanto mais soturno do que o de Berlim. Será aprovada uma declaração “árvore de Natal” (em que cada um pendura o seu enfeite) e isso já é um alívio: para os governantes europeus, é mesmo melhor uma declaração que seja irrelevante e que é para esquecer do que arriscarem decisões que sabem divisoras e perigosas. Ou seja, Roma será uma farra e espera-se que a ressaca se dissipe bem depressa.
Entretanto, para tranquilizar os espíritos e garantir que não se passará nada, a Comissão Juncker apresentou vários cenários para o futuro da União Europeia , num Livro Branco em que se resumem a grandes escolhas: ir para trás, ir para a frente, ficar no mesmo sítio. Sobre para onde se vai, Juncker não tem opinião. Gato escaldado, ele bem sabe que, se toma posição, se arrisca a que Merkel o desautorize e, por isso, fica-se pelo mapa, cada um que se divirta indo para o seu lado.
Como seria de esperar, Merkel reagiu e convocou os chefes da França, Itália e Espanha para os fazer aceitar a doutrina das “várias velocidades” (a imprensa portuguesa refere “duas velocidades” mas Merkel fala de “várias”). Para estas “velocidades”, os exemplos do governo alemão são a segurança e a defesa. Mas, se lermos o tal Livro Branco, verificaremos que são admitidas mais algumas hipóteses: além de segurança (polícia e investigação criminal em conjunto ou a fabricação de um drone militar), estaria em pauta uma lei comum para as empresas e uma legislação laboral unificada. Aos que se entusiasmam com este menu, pergunto simplesmente: encontram aqui alguma garantia de convergência, a tal aproximação que permita aos cidadãos reconhecer uma democracia com vontade comum? Soluções para a dívida, para o desemprego, para a humilhação? Não, temos polícias, um drone e uma lei laboral unificada – e escuso de elaborar sobre o que será essa lei, não acham, caros leitores?
A estratégia parece portanto clara e está a ser repetida na Cimeira que termina hoje: mobilizar as ameaças externas para criar um núcleo político europeu em torno da resposta militar e assim subjugar todas as perguntas sobre a vida das pessoas; prosseguir a destruição da relação laboral; e, se tudo correr bem, construir um drone.
Tudo bem, desde que Portugal continue no “pelotão da frente”, esclarece o primeiro-ministro. Como sempre, António Costa procura ganhar tempo: ele não quer fazer conflitos na Europa. Percebo a estratégia, os conflitos só se devem travar quando permitem algum avanço. Mas, entendamo-nos: a “árvore de Natal” de Roma e as “várias velocidades” são bombas ao retardador contra uma União em que possa haver convergência. Neste projecto das “várias velocidades” não há um único emprego a criar, nem há protecção contra a pobreza, nem há investimento, nem há educação; pelo contrário, as “várias velocidades” são mesmo contra nós. E sem convergência a União é um projecto falhado e perigoso para as democracias.
A convergência poderá ter sido objectivo, ou mera figura de retórica, antes do virar do século e pouco depois do aniversário festejado há vinte anos atrás. Era o tempo da PAC, dos QCA para derramar milhões nas regiões desfavorecidas, periféricas, ou ultraperiféricas.Depois, ao mesmo tempo que a gigatesca China foi admitida como parte no Tratado de Livre Comércio e a “geometria” da UE, foi sendo alterada a leste, tudo foi mudando, sem que a convergência deixasse de ser o que sempre foi, o êngodo brandido aos pequenos para permitir aos maiores ampliar a sua quota de mercado.Com a crise dos 50, provocada, em grande parte, pela influência da derrocada iniciada com o subprime no outro lado do Atlântico, ficou à vista de todos que a convergência estava perdida, talvez, para sempre, no meio da crise das divídas que passaram a ser sistémicas nos países da periferia e ultraperiferia, enquanto os superavits dos países do centro se acentuaram, perdurando e aumentando cada ano.A segurança, a gestão dos refugiados e as leis laborais, que são apresentadas como as prioridades para o futuro da UE, são as prioridades do conforto e bem-estar dos países do centro , numa Europa de “geometria variável”que nunca deixou de ser, mesmo quando a convergência não se reduzia, ainda, à criação de um drone robocop com manifestação de sinais de andropausa avançada.
Antes de mais, faço a minha humilde Declaração de Intenções: sou europeísta convicto e sou-o por dois motivos fundamentais. Primeiro, acredito sinceramente que a melhoria de qualidade de vida dos portugueses, e da maior parte dos povos integrantes da União, far-se-ia a ritmos muito mais lentos fora do projecto de integração europeia. Acredito que foi a integração na União Europeia que permitiu aos portugueses, de forma mais rápida, a ceder a um conjunto de bens (materiais, culturais, sociais) que aumentou exponencialmente a sua qualidade de vida, algo que, na minha opinião, não teria acontecido tivéssemos nós ficado fora do processo integracionista. Segundo, no actual quadro da geopolítica internacional, em que o geopoder transita por entre o populismo dos EUA, o totalitarismo da Rússia e o “desumanismo” da China, se existe esperança para o mundo essa é a de que a União Europeia se possa fortalecer e tornar-se a referência nessa mesma geopolítica internacional, algo que nenhum país europeu conseguirá individualmente. Por isto, entre outras razões, sou europeísta. Mas acompanho o “não-europeísta” Francisco Louçã quando refere que, no que a convergência diz respeito, os 5 cenários do Livro Branco de Juncker apontam para lado nenhum. Aliás, acho piada que um dos cenários propostos, e pelos vistos o preferido até agora, se refira a uma Europa a Duas Velocidades. É que, em termos de convergência, essa Europa já existe. Actualmente, temos duas concepções de Europa diferentes dentro do único espaço da União Europeia. Temos um modelo de desenvolvimento economico-social assente em actividades de alto valor acrescentado e necessitadas de mão-de-obra altamente qualificada para os países do centro e do norte da Europa e temos um modelo de desenvolvimento economico-social assente na desvalorização e precarização do factor trabalho enquanto factor de competitividade para os países da periferia. Portanto, esta Europa a Duas Velocidades já existe. O que a Alemanha agora pretende é que à Europa a Duas Velocidades em termos substanciais se some a Europa a Duas Velocidades em termos formais. Para quê? Para quando chegar a altura de, inevitavelmente, se debater a integração fiscal, poder, formalmente e sem penalizações, recusar integrar o processo de integração fiscal e das dívidas públicas, as Eurobonds. E assim, poder continuar a alimentar, artificialmente via sub-valorização da sua moeda, as suas Balanças Comerciais superavitárias e, subsequentemente, continuar a cavar o fosso da divergência que a moeda única criou no processo de integração Europeia. Por isso, compreendo como este possa ser o cenário, dos cinco propostos, preferido pela Alemnha. Já não consigo é compreender como é que países como Portugal, Espanha e Itália também defendam esse cenário. Este é o tempo de assumir corajosamente o que é necessário para o processo Europeu. E do ponto de vista dos países periféricos, e do ponto de vista de quem pretende um processo de integração europeu sustentável, robusto e por isso necessariamente convergente, o cenário da Europa a duas ou mais velocidade jamais poderá ser o escolhido. É altura dos lideres políticos destes países assumirem frontal e corajosamente uma posição de defesa intransigente dos interesses das populações que representam e dizer NÃO às pretensões divergentes alemãs. É por isso que digo, pegando numa expressão usada recentemente por Francisco Louçã, que com “europeístas copinhos de leite” não vamos lá!
“foi a integração na União Europeia que permitiu aos portugueses, de forma mais rápida, a ceder a um conjunto de bens (materiais, culturais, sociais) que aumentou exponencialmente a sua qualidade de vida, algo que, na minha opinião, não teria acontecido tivéssemos nós ficado fora do processo integracionista.” – Aumentar a qualidade de vida em quê, em telemóveis e carros topo de gama, casas e todos os bens materiais adquiridos à custa de crédito (escravidão dos tempos modernos)? O custo de vida ter aumentado para o dobro ( mas não os salários, pelo contrário) na aplicação da moeda única? No aumento de peso pela má alimentação (fast food) num mundo de ditadura da imagem? Em saltar de um emprego para outro, saindo de manhã e voltando à noite sem tempo para se estar com os filhos e em que os pais/avós são metidos em lares (os que podem) ou deixados ao abandono? No aumento do número de pessoas com distúrbios mentais e suicídios devido à crise? Na aplicação de custos, até então gratuitos, para visitar museus? And so on… Não vejo grande qualidade de vida nos dias que correm.
Para onde? Espero que não seja a caminho da União das Repúblicas Socialistas da Europa. Se for o caso, terei que mudar de continente. Prefiro uma ditadura assumida do que viver entre “gramscinianos” que para nazis só lhes falta serem nacionalistas.
Complectamente de acordo, com o Snr. Professor Francisco Louçã, mas…
Como se pode ter seja o que for a velocidades diferentes, e essa COISA nunca existiu ?
…e o que foi CRIADO foi só para assaltar os POVOS !
(1) O argumento principal para a Europa a várias velocidades é o enunciado por Hollande:”…a unidade não é a uniformidade…cooperações diferenciadas para que alguns países possam em conjunto caminhar mais depressa”. Quem são estes países? Alemanha, França, Espanha e Itália. A acrescentar o conjunto Benelux. E, “…sem que outros países sejam descartados mas sem que outros países se possam opor a este projecto”;
(2)A eleição de Trump e a ameaça da Russia criaram um novo problema: o reforço e a prioridade da defesa, para mais, tendo em vista o Brexit, a França é a única potência nuclear;
(3)Um dos alvos desta reestruturação são os países que rejeitam refugiados(Polónia, Hungria, República Checa e Eslováquia). Estão no ar sanções por “quebra dos princípios de solidariedade”;~
(4)Os quatro países dominantes concluíram pela perda do “espírito europeu” a favor dos “egoísmos nacionais”. Está cada vez mais presente, dizem, o lema: não pagar mais do que pode receber. E também a famosa fórmula de Thatcher:”I want my money back”.
(5)Consultando online o paper do Prof.António Mendonça, de 1999, “O conceito de Zona Monetária Óptima e o problema da sua aplicação à discussão sobre o processo de integração monetária na Europa”, conclui-se que a a realidade se tornou bem diferente daquilo que se previa.
como diz Louçã , velocidades na direcção do fim da democracia, da autodeterminação e de facto, da dignidade. É difícil não reconhecer a Magareth Thatcher ter-nos avisado que esta era a direcção em que seguíamos nestes 2 minutos do discurso de despedida em 1990 https://m.youtube.com/watch?v=5TPpuIslzG4. Um dia, a tal esquerda progressista vai ter de explicar porque foi tão míope durante estes 27 anos no seu “europeismo”, e permanece tão acobardada mesmo agora. Estamos, a grande velocidade de erosão demográfica, social e económica no fim da nossa picada.
as velocidades são 3: primeira, ponto morto e marcha-a-trás. A Angela mete as mudanças e o João Cláudio carrega na embraiagem. Tem tudo para correr bem.
Não seja injusto. O João Claudio publicou um documento onde defende que se pode discutir a intodução da segunda e mesmo da terceira. Enquanto se discute, a ordem é para alternar primeira com marcha-atrás, para fingir que estamos em movimento. Não vá aparecer mais algum incomodativo referendo. Seria horrível!
O Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia foi assinado em Roma a 27 de Março de 1957.Julgo por isso que os 50 anos referidos pelo Professor Francisco Louçâ são uma gralha.
Não creio: a cimeira de Berlim comemorou os 50 anos (2007) e a de Roma comemorará os 60 anos (2017). Certo?