Tudo Menos Economia

Por

Bagão Félix, Francisco Louçã e Ricardo Cabral

António Bagão Félix

6 de Setembro de 2016, 11:10

Por

Acentos sem assento

A relação dos portugueses com os acentos não é pacífica, sejam eles agudos, graves ou circunflexos. E, já agora, também não é boa com alguns assentos, mais os lavrados do que os sentados. Já dizia Machado de Assis que “escrever é uma questão de colocar acentos”.

Há dias, a selecção portuguesa jogou com a equipa do rochedo britânico de Gibraltar, certamente para preparar os difíceis jogos de apuramento para o Mundial 2018 em que enfrentará as Ilhas Feroé e Andorra. Pois nesses dias, antes e durante a gloriosa vitória lusa, não houve vivalma nas televisões que tivesse pronunciado bem a palavra Gibraltar. Este nome não tem origem anglófona, antes deriva do árabe (corruptela de Jabal-al-Tariq, que significa monte de Tariq). Em vez de acentuarem a última sílaba, todos a transformaram em palavra grave pronunciando-a como “Gibráltar”. Felizmente que Trafalgar, outra palavra que é de origem árabe e não inglesa, já só faz parte da história, senão lá teríamos que gramar nos noticiários “Trafálgar” em vez de “Trafalgár”.

Estes são erros que, pela insistência, se tornaram “normais”. Já Horácio dizia nas suas Epístolas que “uma vez lançada, a palavra voa irrevogável.” E de tal sorte que, quando certas palavras são bem pronunciadas, é como se fossem mal ditas (e quase malditas…). Outro exemplo bem consolidado é Flórida em vez de Florida. Tal qual – saindo agora da geografia – quando em vez de se dizer acordos com o o fechado (ô) , se prefere erradamente pronunciar com esta vogal aberta (acórdos). Será que a moda vai chegar aos “abórtos”?

Já no domínio da saúde há, entre várias, três palavras que são, amiúde, mal pronunciadas: hepatite, bactéria e vacina. Se quanto a esta última, o costume de abrir o a da antepenúltima sílaba  que é átona (cina) é mais regional do que nacional, quanto às outras duas, as televisões e a maioria dos profissionais de saúde preferem o esplendor da “acento tónico” deslocalizado, “hetite”. Caso ainda mais estranho, é ouvir-se “ctéria”, ou seja como se tivesse dois acentos, quem sabe se para melhor eficácia antibiótica…

O velhinho acento circunflexo vem ficando reduzido a uma insignificância e, em alguns casos (dos quais o novo AO está absolvido), simplesmente despedido como nas palavras paroxítonas terminadas em duplo o. No futebol, por exemplo, teria que escrever: abotoo a bota, enjoo com os truques de certos jogadores, roo as unhas em alguns jogos, moo o juízo depois de uma derrota, abençoo a sorte que, por vezes, é preciso ter. Mas não voo como a águia, nem leiloo o meu cartão de sócio.

Enfim, uma plétora de erros ou alterações a despropósito, perdão pletora.

Comentários

  1. O “acordo” ortográfico além de ser um erro crasso, que a seu tempo irá ser corrigido, tem consequências a vários níveis. Os portugueses estão a desaprender a escrever e a falar. Até na imprensa a iliteracia ortográfica se tem visto de forma recorrente… Felizmente que há muitos, como nós, que defendem a nossa identidade e o nosso maior símbolo de identidade, ou seja a língua portuguesa. Parabéns por este texto, que aborda algo que não tem sido propriamente falado nos fóruns. Contra o desacordo marchar, marchar!

  2. O artigo foi corrigido pelo autor, anteriormente estava escrito:
    “Agora com o (des)acordo ortográfico, o velhinho acento circunflexo foi despedido nas palavras paroxítonas terminadas em duplo o. No futebol, por exemplo, teria que escrever: abotoo a bota, enjoo com os truques de certos jogadores, roo as unhas em alguns jogos, moo o juízo depois de uma derrota, abençoo a sorte que, por vezes, é preciso ter. Mas não voo como a águia, nem leiloo o meu cartão de sócio.”

    Aprendi a escrever no início da década de 90 (para mostrar que o AO é algo que tive de aprender mais tarde) e sempre escrevi voo da mesma forma (sem acento circunflexo) que é a norma em portugal desde 1945. Sinceramente sou a favor de uma revisão no novo AO, no entanto, quando for para o criticar, existem muitos bons exemplos para apresentar… não é preciso de uma forma ignorante “inventar problemas” onde eles não existem.

  3. Transcrevo: «Um artigo desastrado de Bagão Félix, publicado na terça-feira no Público. O autor do texto acredita que, com o AO90, as palavras graves/paroxítonas terminadas em oo (como magoo e enjoo) deixam de ser acentuadas. Sim, é verdade, mas só no Brasil! Nos restantes países lusófonos essas palavras não são acentuadas desde 1945… (ou seja, esta regra só é nova para os brasileiros).
    Disse ele o seguinte: “Agora com o (des)acordo ortográfico, o velhinho acento circunflexo foi despedido nas palavras paroxítonas terminadas em duplo o. No futebol, por exemplo, teria que escrever: abotoo a bota, enjoo com os truques de certos jogadores, roo as unhas em alguns jogos, moo o juízo depois de uma derrota, abençoo a sorte que, por vezes, é preciso ter. Mas não voo como a águia, nem leiloo o meu cartão de sócio.”
    Ou seja: Bagão Félix, ao tentar ridicularizar a grafia de 1990, acaba por criticar mudanças ortográficas que já vêm da reforma de 1945 (que alguns consideram ser a mais pura e a mais genuína)! »

  4. Os senhores querem mesmo padronizar a pronúncia de uma língua falada em oito países e várias comunidades espalhadas (literalmente) pelo mundo, cada qual sujeito, igualmente, a um sem-número de outras influências? Talvez queiram padronizar também o léxico e a sintaxe… Isso nem dentro de um mesmo país é viável!… Quanto à maka (isso mesmo, com “kapa”; não é “maca” de hospital) do AO (que é só para grafar as palavras, nada mais) e sobretudo dos acentos, há línguas sem acentos e onde também há palavras que se escrevem da mesma maneira, só se podendo diferenciar uma das outras pelo contexto, e ninguém morre por isso… Em tempo: “maka”, palavra de origem kimbundu há muito incorporada na variante angolana do português, significa “assunto”, “problema”, “discussão”. Se sugerir não ofender ninguém, aumentem “um poucochinho” o vosso/nosso vocabulário “lusófono”.

  5. Abaixo o “Acordo Ortográfico” de 1990!
    Assine a Iniciativa de Referendo ao AO90, de que o Professor ANTÓNIO BAGÃO FÉLIX é um dos Mandatários!;
    e dê a assinar por familiares, amigos, trabalho,…

    1. Como se pode assinar essa iniciativa se o próprio Bagão Félix não sabe o que diz? «Um artigo desastrado de Bagão Félix, publicado na terça-feira no Público. O autor do texto acredita que, com o AO90, as palavras graves/paroxítonas terminadas em oo (como magoo e enjoo) deixam de ser acentuadas. Sim, é verdade, mas só no Brasil! Nos restantes países lusófonos essas palavras não são acentuadas desde 1945… (ou seja, esta regra só é nova para os brasileiros).
      Disse ele o seguinte: “Agora com o (des)acordo ortográfico, o velhinho acento circunflexo foi despedido nas palavras paroxítonas terminadas em duplo o. No futebol, por exemplo, teria que escrever: abotoo a bota, enjoo com os truques de certos jogadores, roo as unhas em alguns jogos, moo o juízo depois de uma derrota, abençoo a sorte que, por vezes, é preciso ter. Mas não voo como a águia, nem leiloo o meu cartão de sócio.”
      Ou seja: Bagão Félix, ao tentar ridicularizar a grafia de 1990, acaba por criticar mudanças ortográficas que já vêm da reforma de 1945 (que alguns consideram ser a mais pura e a mais genuína)! ».
      Aconselho que primeiro leiam este pequeno livrinho que só gasta poucos minutos: https://pt.scribd.com/doc/311358697/Acordo-Ortografico

  6. Digamos que está latente uma cruzada contra os acentos, de tal modo que ao suprimir-se as consoantes “mudas” se promove igualmente uma adulteração fonética da vogal que precede. Acto (“a” aberto por causa do “c”) atou (“a” fechado), se acto passar a “ato” deverá ler-se fechado e não aberto…em que é que ficamos? Alguém deveria explicar a estes arautos o significado das coisas, nada é gratuito e a existência dessas coisas “mudas” só é anódina para quem se esmera em não perceber o seu significado.

  7. Infelizmente, os tais erros que se tornaram ‘normais’ por contágio ou moda dos nossos jornalistas, atingem aspectos mais graves como, por exemplo, ‘governo norte-americano’, como se na América do Norte só existisse um país.

  8. Prezado António,
    sou um razoàvelmente assíduo e longínquo (João Pessoa/Paraíba/Brasil) leitor de seus ótimos artigos.
    Aqui, como aí, agressões como as que você mostrou são corriqueiras com o agravante dos incontáveis sotaques.
    De qualquer maneira, agradeço penhoradamente os momentos de alegria que você me proporcionou.
    Cumprimentos!
    obs.: “razoÀvelmente” ainda está valendo?

    1. Obrigado pela sua atenção.
      Quanto a razoavelmente, o acento grave já foi à vida…

  9. Dr. Bagão Félix

    Será por escrever no «Púbico» (manancial de erros ortográficos) que não resiste a dar uma ferroada no acordo ortográfico em vigor?

    1. Apenas exprimo o meu desacordo sobre o AO. É um direito que tenho, como teria se, concordando com o AO, o defendesse.
      Aprecio o facto de no jornal PÚBLICO não se seguir o AO. Mas não é por isso que dele falo e reflicto quando, no meu critério, se justifica.

  10. Obrigado por vir denunciar publicamente o que para aí vai de palavras «mal-dizidas».
    Faço-lhe uma pergunta a propósito do circunflexo: o que acha da língua escrita cada vez se afastar mais da língua falada, como é notório em «vácina» e vacina (que também é verbo) e molho (que pode ser «môlho», ou conjugar o verbo «molhar»)?

    É que pode dizer-se que as palavras de registam simbolicamente e não foneticamente, mas a verdade é que há muitas palavras que vi escritas mas nunca as ouvi faladas…

    1. A língua falada e a língua escrita devem ser convergentes e congruentes. Todavia, estou consciente da constatação que Fernando Pessoa exprimiu ,quando disse que “A palavra escrita é um elemento cultural, a falada apenas social”.
      Mas nem oito, nem oitenta. Sobretudo quando nos extremos estão erros crassos que desvirtuam o respeito por um idioma.
      O exemplo que deu de molho é interessante porque, foneticamnte, admite duas fonéticas no plural: m(ô)lhos, plural de molho de uma comida e m(ó)lhos, por exemplo de couves ou flores.

    2. A Margarida (mais abaixo) e o Filipe suscitaram exactamente as mesmas dúvidas que me ocorreram. Mas mantenho uma questão: “môlho” de tomate e “mólho de flores” fazem de certeza plurais diferentes? Eu digo “posso escolher de entre vários “mólhos” [temperos]”, tal como “aqui estão os “mólhos” de flores”. Parece-me concordante com o plural de “olho”, que é “ólhos”. O mesmo para “novo” e “nóvos”. Também sempre disse “acórdos”. De resto, preocupa-me mais o constante fechamento que se ouve por aí nos telejornais: eu sempre disse “líderes”, com o E aberto, e agora ouço constantemente “lídres”. Estarei errada?

  11. Este é um assunto melindroso porque mexe com a oralidade (difícil de padronizar), pronúncia (impossível e indesejável de eliminar) e ortografia. A tendência em Portugal (mais em determinadas zonas do que noutras) é fechar as vogais o que torna, num discurso corrido, mais difícil o entendimento. Por isso, mea culpa, eu digo e continuarei dizendo “vácina”, “báctéria”, e “àcerca” como se fossem palavras esdrúxulas. Mas também digo “Áveiro” (como se fosse esdrúxula”) e não simplesmente Aveiro (quase como se o “A” não existisse), e faço rimas de Gibraltar com altar. Em relação à ortografia, ela não passa de uma miscelânea de regras muitas vezes inútil: como sei que não devo abrir a segunda vogal de Gibraltar e abrir a primeira de altar. E como devo pronunciar “Eu espeto o espeto” (no sentido “Eu enfio a agulha”) ou Félix (rimando com fénix (s) ou hélix (cs))?

    1. A propósito do espeto, lembrei-me de uma frase que agora com o AO é difícil de entender (fora de contexto, pelo menos): “pelo pelo pelo do gato, mas para com isso”. Antes do AO, escreve-se “pélo pelo pêlo do gato, mas pára com isso”.Havia necessidade?
      Quanto a Félix, a pronúncia correcta é “Félis”.

  12. Agradeço um esclarecimento sobre uma dúvida (grave) que o seu artigo me coloca.
    Aprendi – há muitos anos – que o plural de olho se diz “ólhos”, o de ovo, “óvos”, o de acordo, “acórdos”.
    Estou errada?
    Cumprimentos

    1. Agradecendo a atenção que deu ao texto, o plural de acordo é, de facto, acordos, com o fechado.
      As palavras que são graves mantém, em regra, o “o” fechado: abortos, molhos (diferente de molhos com o “o” aberto) bolos, ferrolhos, namoros, rostos, tolos, etc..

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