Tudo Menos Economia

Por

Bagão Félix, Francisco Louçã e Ricardo Cabral

Ricardo Cabral

8 de Agosto de 2016, 18:33

Por

O relatório sobre o Banif

O relatório preliminar da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) ao Banif, cujo relator é o deputado do PS Eurico Brilhante Dias, está muito bem escrito, com uma estrutura clara e revela o imenso e competente trabalho tanto da CPI como do deputado relator. Contudo, se tivesse de utilizar duas únicas palavras para descrever o relatório, seriam as palavras “extenso” e “difuso”, com 471 páginas, mais de 200 (203) com as “conclusões”.

O relatório final, a aprovar pelo plenário do Parlamento em Setembro, deverá incorporar ainda as propostas de alteração do PCP, Bloco de Esquerda e CDS. Mas esses contributos julgo que são sobretudo sobre questões de pormenor, não alterando a essência do relatório preliminar. O PSD votou contra o relatório por considerar que o deputado relator não estava preparado para incluir na versão final do relatório as propostas de alteração do PSD.

Em contraste com as 471 páginas do relatório da CPI sobre o Banif, por exemplo, o relatório[1] da comissão presidida por Anton Valukas (“examiner”)  sobre o colapso do Lehman Brothers em 2008, um banco com um balanço mais de 50 vezes superior ao do Banif e com vasta presença internacional, tinha aproximadamente 2200 páginas e cerca de 1800 páginas de apêndices. O “relatório Valukas” tinha por objecto responder a 10 questões específicas relacionadas com o apuramento de responsabilidades na falência do Lehman Brothers, bem como deveres identificados no código de falências dos EUA (Chapter 11). O relatório da CPI do Banif tinha por objecto responder a 6 questões, algumas de âmbito mais genérico, e com um horizonte temporal mais alargado, relacionadas com a resolução do Banif a 18 de Dezembro de 2015.[2] Ou seja, o relatório da CPI sobre o Banif, embora de teor e objectivos diferentes, parece, considerando a dimensão e complexidade do Banif em comparação com o Lehman Brothers, muito mais extenso que o “relatório Valukas”.

Considero que falta ao relatório maior capacidade de síntese e falta também uma análise dos factos apurados, que porventura se explica por ser mais difícil chegar a um consenso sobre a interpretação dos factos, entre os diferentes partidos políticos. Como a declaração de voto do PCP indica, o relatório apresenta os factos, deixando a interpretação dos mesmos (sobre a responsabilidade dos diversos intervenientes) ao cuidado do leitor.

E, faz falta um sumário executivo com as principais conclusões sobre o Banif onde, à semelhança do relatório da comissão presidida por Anton Valukas (“examiner”) sobre o colapso do Lehman Brothers em 2008, fossem identificados, de acordo com os autores do relatório, os agentes sobre quem, em concreto, recaem as responsabilidades pelo que ocorreu,  embora se compreenda que a função da CPI é distinta da da comissão presidida por Anton Valukas.

A maior parte do texto das “conclusões” do relatório sobre o Banif é na realidade uma descrição temporal excelente, detalhada e eficaz, dos principais elementos e fio condutor do Banif sobretudo desde 2011. Esse apanhado é um texto útil, objectivo, factual e, dir-se-ia, imparcial, de fácil leitura, embora extenso, e em alguns pontos repetitivo.

Na sua essência afigura-se que, das 200 páginas de “conclusões” (i.e., descrição), são de salientar os seguintes factores identificados no relatório que parecem ter tido maior impacto na resolução do banco:

– Transparece a ideia de que a supervisão do Banif pelo Banco de Portugal falhou, numa crítica que poderá atingir o vice-governador do Banco de Portugal, Pedro Duarte Neves, que já tinha sido afastado em 2014 dessas funções de supervisão, supõe-se, pelo Governador Carlos Costa. Na minha perspectiva[3] essas críticas à supervisão do Banco de Portugal são algo injustas porque no caso Banif, mais do que o problema com a supervisão pelo Banco de Portugal, parece estar mais em causa a deficiente, injustificada e dispendiosa aplicação da medida de resolução a esse banco pelo Banco de Portugal;

– Critica de forma subliminar (quase insinuação de culpa, mas de forma insuficientemente directa) a actuação da Direcção Geral da Concorrência (DGComp) e, em particular, do seu Director Geral Adjunto Gert-Jan Koopman. Há uma parte do texto em que o comportamento da DGComp é descrito como errático e cita o referido Director Geral Adjunto quando este caracteriza os requisitos para o comprador do Banif que, na prática, obrigavam à venda do Banif ao Santander. Parece insuficiente essa forma de crítica e, perante os factos apresentados, afigura-se que o relatório da CPI deveria ter retirado as necessárias consequências e responsabilizado a DGComp e o seu Director Geral Adjunto.

– A descrição da actuação da DGComp que consta no relatório da CPI leva-me a pensar que a DGComp não parece respeitar o princípio da boa fé, nem o princípio da confiança, o que deveria colocar em causa as decisões dessa entidade. Por exemplo:

– A DGComp não aceita o plano de reestruturação apresentado pelo Banif o que, de acordo com a legislação vigente, seria um obstáculo à realização de um aumento de capital pelo Banif no prazo a que se tinha comprometido. Em resultado, o Banif atrasa o aumento de capital e estaria em incumprimento formal com as condições do plano de recapitalização do Banif de 2013.

– A DGComp negoceia e chega a acordo sobre o “Commitment Catalogue” com a gestão do Banif, mas posteriormente afirma em resposta à CPI que tal Commitment Catalogue não a vincula, no que se me afigura uma violação do princípio da confiança.

– No início de 2015, a DGComp procura, de forma pouco explícita, que a Ministra das Finanças introduza alterações ao Conselho de Administração do Banif; da leitura do texto, parece implícito que a DGComp pretendia substituir o CEO do banco, não se sabe com que fundamento;

– A DGComp utiliza a perspectiva de análise de uma empresa de consultoria espanhola N+ sobre os montantes de perdas que resultariam da venda dos activos maus do banco, para argumentar que o valor patrimonial do Banif seria zero ou negativo, não obstante dois auditores internacionais certificarem que o banco cumpria os rácios de capital mínimos (i.e., eram superiores a 8%): parece-me que tal linha de argumentação da DGComp é dificilmente compatível com uma actuação em boa-fé: a DGComp procura defender que o banco não cumpre os rácios de capital, i.e., que tem de ser “resolvido”, e revela vontade de acabar com o banco impondo perdas aos seus stakeholders à revelia de tudo o que a Comissão tinha dito antes e de interesses privados e públicos no banco.

– O relatório da CPI descreve, de forma directa, o fundamento para a aplicação da medida de resolução ao Banif.

– O Banco de Portugal, em carta de 17 de Novembro de 2015, ao abrigo de novos poderes concedidos por alteração da lei, na primeira metade de 2015, impõe a constituição de 177 milhões de euros de imparidades adicionais e obriga ao aumento dos activos (RWA) em 258 milhões de euros, de que resulta uma redução adicional dos fundos próprios de 21 milhões de euros. Não foram consideradas vendas de activos que estavam a decorrer (Banif Malta), nem as melhorias nos resultados do banco que se verificam em 2015. Com esses ajustamentos impostos pelo Banco de Portugal, e sem direito a contraditório, por parte do Banif nem por parte dos respectivos auditores (o que se afigura inaceitável), o rácio de solvabilidade do Banif cai de 9,55% para 7,65%, abaixo do mínimo regulamentar de 8% em cerca de 30 milhões de euros (i.e., 0,35%). Note-se que o Banif excedia em muito os outros dois rácios de capital definidos pela regulamentação Europeia (CRR/CRD IV). A aplicação da medida de resolução por uma violação desta ordem de grandeza parece claramente desproporcionada (30 milhões de euros num banco com mais de mil milhões de capitais próprios mais dívida subordinada e balanço de 12 mil milhões de euros). Ou seja, quase parece que as imparidades foram “marteladas”, para se conseguir que um dos rácios de capital caísse abaixo dos 8% e assim obter o “casus belli” para a aplicação da medida de resolução ao Banif (o relatório da CPI é omisso na análise e nas consequências em relação a esta importante matéria e no pedido de explicações).

 – São apresentadas as contas da resolução (p. 438-439), mas não são explicadas várias discrepâncias, nomeadamente o facto do balanço do banco que se apresenta ser muito superior ao balanço do banco no final do 3ºT de 2015; não se analisa em detalhe os fundamentos da venda. Por exemplo: porque se decidiu vender ao Santander, o banco limpo cheio de disponibilidades de elevada liquidez (i.e., cheio de dinheiro) com provisões e capitais próprios de 1942 milhões de euros, por 150 milhões de euros? Porque não outro montante? E como é que, mesmo aceitando as imparidades extraordinárias impostas pelo Banco de Portugal, se passa de uma deficiência de capital de 30 milhões de euros, ligeiramente abaixo do capital mínimo regulatório de 8%, para uma injecção adicional de capital pelo erário público de 3329 milhões de euros (a que acrescem benefícios fiscais para o Santander)?

– O relatório refere que o Santander exigiu beneficiar dos activos por impostos diferidos que resultarem do processo de resolução do Banif, bem como de isenção de IRC sobre mais valias que venham a resultar de reavaliações do “bad will” do banco limpo. Só em 2015 tal significa perto de 30% dos 328 M€ de bad will que o Santander reavaliou em 2015, i.e., cerca de 85 M€ de poupança em sede de IRC. Não é claro se estas exigências foram totalmente acolhidas pelo Banco de Portugal nem quais os seus custos para o erário público nos próximos anos. Ou seja, os ganhos do Santander e os custos para o erário público que resultam da resolução e venda do Banif podem vir a ser superiores aos até aqui estimados.

– A CPI não inclui na sua análise esses custos fiscais, pelo que não produz uma estimativa oficial e mais completa dos custos da resolução do Banif para contribuintes e privados.

– O relatório não aponta críticas à resolução do banco e parece ilibar completamente o Governador do Banco de Portugal, Carlos Costa. Eurico Brilhante Dias, na conferência de imprensa de apresentação do “seu” relatório preliminar, bem como numa entrevista após aprovação do relatório final, chegou mesmo a dizer que “Carlos Costa não cometeu qualquer falha grave no caso Banif”. Ora compete ao Conselho de Ministros deliberar sobre se o Governador cometeu ou não qualquer “falha grave”. Com essa declaração, Eurico Brilhante Dias não só condiciona as conclusões da Comissão Parlamentar de Inquérito, como também condiciona as opções do Governo que, se nota, é do seu próprio partido. Algo muito sui generis.

– Embora apontando algumas falhas importantes, o relatório não culpabiliza a administração do Banif entre 2013 e 2015 e, em particular, Jorge Tomé, o CEO do banco, no que se me afigura um facto importante. Transparece a ideia que a gestão do banco nesse período foi apropriada e, por conseguinte, cria-se um paradoxo – que a CPI não aborda -: uma diferença abismal entre a avaliação da situação do banco antes da aplicação da medida de resolução do banco pela gestão do próprio banco (bem como pelos auditores certificados do banco) e pelas autoridades portuguesas e europeias. Quem é que tinha razão? A CPI não se pronuncia.

– O relatório não analisa a actuação do actual Governo, em particular, do Ministro das Finanças e do Secretário de Estado Adjunto e do Tesouro, no que se afigura uma omissão, mas tece algumas críticas veladas, embora leves, à anterior Ministra das Finanças.

– Porventura em resultado dos constrangimentos enfrentados pela CPI, as 16 recomendações  (p. 454-471) aparecem algo desligadas dos factos, faltando, como referi anteriormente, a análise que suporta as mesmas. As 16 recomendações do relatório abordam temas e fazem propostas que não foram discutidos em detalhe no relatório. Por exemplo, em relação ao papel dos revisores oficiais de contas, parecendo sugerir que estes têm responsabilidade na resolução do Banif e que o respectivo estatuto deve ser alterado, quando no relatório não há discussão nem análise sobre o papel que os revisores oficiais de contas do Banif tiveram na resolução do banco.  As restantes recomendações, sobretudo “lessons learned” e como melhorar o enquadramento regulatório e legislativo português e europeu, embora sensatas, parecem demasiado académicas não tendo, em minha opinião, consequências práticas.

Em conclusão, o relatório, apesar da excelente descrição dos factos, desaponta: porque se passa da descrição dos factos para as recomendações sem que haja análise e sem que sejam identificados os aspectos mais críticos do processo que culminou na resolução do Banif nem que sejam apurados os custos e benefícios finais dessa resolução. Fica tudo demasiado difuso.

Em contraste, no caso Lagarde-Tapie, em França, em que uma decisão da na altura Ministra das Finanças veio a beneficiar o empresário Bernard Tapie, um tribunal obrigou o  empresário favorecido a devolver 404M€. E a antiga ministra de França pode ser condenada por ter aceite a decisão do Tribunal arbitral de pagar 400 M€ a esse empresário.

O caso Banif custou, para já, 4,8 mil milhões de euros ao contribuinte e a privados (mais se existirem benefícios fiscais no futuro). Sabe-se que o Santander realizou enormes mais-valias com a venda do Banif, outros agentes do sector privado ganharão, com certeza, com a venda apressada dos activos da Oitante. O relatório da CPI crítica o papel da DGComp, deixando implícito que as perdas resultam da actuação desta entidade. Contudo, a CPI nada recomenda, nem identifica responsabilidades (aparte questões menores) parecendo aceitar que a resolução do Banif foi bem conduzida e aceitando que o Santander e outros agentes do sector privado tenham ganho esse dinheiro (à custa dos contribuintes e dos lesados do Banif).

Resta notar que Eurico Brilhante Dias esteve sozinho a fazer a apresentação do relatório preliminar. Ora embora a elaboração do relatório preliminar tenha sido da responsabilidade desse deputado, o trabalho da Comissão foi um trabalho de equipa, com a participação e contributo de deputados de (quase) todos os partidos.

 

 

 

 

 

 

[1] Relatório encomendado pelo juiz do tribunal que supervisionou o processo de falência e liquidação desse banco (Chapter 11 proceedings).

[2] Se o relatório da CPI sobre o Banif utilizasse a mesma fonte e espaçamento que o relatório sobre o Lehman Brothers seria, talvez, 30% mais extenso do que é, i.e., teria cerca de 600 páginas.

[3] Em itálico apresento a minha interpretação dos factos descritos no relatório, mas que evidentemente não constam do mesmo.

Comentários

  1. Ou seja, o relatorio passa ao lado das questoes essenciais da resoluçao do Banif, nomeadamente a justificaçao para os dois mil milhoes de euros adicionais injetados pelo estado, justificaçao para o preço de venda ao Santander (150 milhoes) muito baixo do valor contabilistico, potencial ajuda de estado ao Santander e forma do estado se ressarcir, responsabilidades do Banco de Portugal. O cidadao contribuinte deve tomar boa nota.
    Parece surrealista que as opinioes discordantes de qualquer partido nao figurem pelo menos em anexo ao relatorio, junto com declaraçao de voto. As CPI pelos vistos têm razoes que a razao desconhece.

  2. Este caso já cheirava a escândalo, e cada vez se confirma mais. Ainda bem que o campeonato de futebol está a começar para não guardarmos na memória questões aborrecidas.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Tópicos

Pesquisa

Arquivo