Na manhã seguinte ao referendo no Reino Unido, Juncker apareceu numa conferência de imprensa emotiva para fazer uma comunicação e responder a duas perguntas. Lá disse o que pensava, que era pouco, mas terminou dizendo “não” a quem quis saber se a UE ia acabar. Com o “não”, saiu da sala em apoteose, aplaudido por funcionários que se tinham juntado para saber do susto. E, ao que me dizem, aplaudido também por bastantes jornalistas que se levantaram quando ele saiu.
Ponho-me a pensar sobre o que isto quer dizer, os jornalistas a aplaudirem Juncker. Percebe-se o contexto, há uma comunidade bruxelense que se habituou ao circuito fechado do europês, das instituições e das suas regras iniciáticas, das pequenas e médias excitações com cimeiras e intrigas, e que engloba muitos políticos, funcionários e jornalistas, tantos irmanados nesse enlevo que é o “projecto europeu”. Falam a mesma língua e pensam o mesmo, mesmo quando lastimam as mesmas incongruências e confidenciam a contra gosto que os dirigentes europeus são “pequenos” demais para as suas tarefas. Em todo o caso, sentiram que o referendo do Reino Unido era uma afronta pessoal contra si e contra o “projecto europeu” e aplaudem Juncker, agarrando-se-lhe como se fosse uma bóia de salvação.
Já escrevi a minha opinião sobre casos deste tipo e outros: a transformação do jornalismo numa proto-política, misturando informação com opinião, opinião com tomada de posição e tomada de posição com condenação ou elogio, ou seja, com um instrumental alinhamento político e partidário, degrada a comunicação social como espaço público. Não é só um problema da imprensa ideológica com um projecto de tipo militante, como o Observador, que escolheu tentar ser um Independente um pouco mais pé de chinelo, é mesmo um problema geral que contamina até a comunicação de referência.
Uma consequência deste curso é que caíram barreiras à afronta (Assis é sempre dos melhores neste exercício de ódio, mas tentar imitá-lo é uma arte partilhada por outros). Vejam o caso de André Macedo, o director demissionário do DN, que desliza alegremente para o insulto quando discorda da opinião de uma dirigente partidária: escreve ele ontem um editorial sob o título rasca de “Catarina Farage” (um editorial!).
Pensam os leitores que um director de jornal não deve actuar como um chefe partidário, mesmo que tenha convicções partidárias? Esqueça, pelo menos neste caso. Essa diferença parece não ser limite para nada: o texto de André Macedo é pior, exibe uma arrogância que nenhum dirigente partidário se atreveria a assinar, pois vai mais longe do que Passos Coelho ou Assunção Cristas jamais ousariam (mas não Francisco Assis, fica a ressalva). Mesmo assim, ver Macedo descer ao nível de um Henrique Raposo ou de um Duarte Marques não deixa de ser algo surpreendente.
A forma é esclarecedora: como se trata de uma mulher e jovem, sai o “Catarina Farage”, sendo intuitivo que André Macedo jamais se atreveria a escrever “Jerónimo Farage” quando o líder do PCP repete no mesmo dia a proposta de preparação para a saída do euro. Além disso, a tese em si não é muito imaginativa, vai buscar aos baús da trivialidade (“os extremos tocam-se”) o argumento contra um referendo em Portugal, sugerindo que a esquerda portuguesa partilha a demagogia populista e anti-imigrante de Farage, o dirigente do britânico UKIP. A amálgama é sempre um argumento fácil quando se critica o campo oposto num referendo binário, sendo evidente que o campo de Cameron e Juncker e Merkel e tutti quanti era uma colecção de anjos emplumados (só aprovaram retirar o direito a apoios sociais aos imigrantes portugueses no Reino Unido, e aos outros, mas porque é que isso havia de amofinar André Macedo?).
Claro que um director de jornal escolhe os seus temas. Respeito que Macedo não se incomode com os Panama Papers ao ponto de lhes dedicar alguma atenção especial, afinal ele vem do jornalismo económico e a reverência pela finança é muito bonita. Aceito que ferva de indignação quando se critica a União Europeia e a sua ameaça de sanções a Portugal e imagino até que, se tais sanções se concretizarem, Macedo as fulmine pelo menos com algumas palavras e até, se perder a cabeça, com um editorial, que certamente aterrorizará Juncker e Merkel. Mas fazer alguma coisa para que a população possa pronunciar-se, isso não é democracia, é demagogia e nem pensar, a Europa está nos nossos corações.
O caso do editorial do PÚBLICO sobre esta matéria é distinto, porque tem outra contenção segundo os princípios de deontologia, como seria de esperar, e é parte de um debate político. Mas a ideia é clara, escreve o jornal que a palavra referendo é “tabu”.
Espero que quem escreveu o editorial (no caso do PÚBLICO os editoriais não são assinados) tenha lançado a mesma injunção quando todos os partidos, em 2005, escreveram nos seus programas eleitorais o compromisso de um referendo europeu. Mas não me lembro de alguém então invocar que um referendo europeu seria um”tabu”, deve ser falha minha (e muito menos me atreveria a lembrar que Assis foi eleito com esse programa que prometia um referendo, claro que depois votou para impedir que ele se realizasse, não fosse dar-se o risco de um programa eleitoral ser cumprido). Claro que então se sabia, nem era difícil adivinhar, que para quase todos os partidos era simplesmente uma mentira eleitoral pois, mesmo com uma inclinação da população portuguesa na época ainda mais positiva sobre a Europa, não queriam arriscar-se ao debate e ao direito de escolha. Portanto, “tabu”, olhe que não, caro editorialista do PÚBLICO: já não foi tabu e depois bem se pode querer que volte a ser, mas o que deixou de ser nunca mais pode voltar atrás, como a água dos rios não volta do mar para a fonte, pois não?
Aceitemos no entanto que seja um “tabu”. Que na UE as consultas populares correm tão mal que é melhor esquecer ou mesmo interditar a votação e em todos os países de uma assentada. Fica no entanto o problema: e se houver mesmo sanções? Basta dizer que a culpa é do governo de Passos Coelho que, entre 2013 e 2015, o período a que se reportam as sanções, cumpriu demasiado bem as regras da troika e por isso somos por sancionados por essa aplicação troikista? O problema é que somos nós que pagamos a multa. Basta protestar, sei lá, com um comunicado preocupado escrito pelo Palácio das Necessidades? Basta uma conferência de imprensa e venha lá a continha que são horas de ir para casa? Uns discursos e toca a pagar? Encolher os ombros e vamos lá a aumentar o défice de 2016 quando somos punidos por causa de um défice putativo de 2013 e 2014 e 2015?
A André Macedo não pergunto o que pensa dessas sanções, adivinha-se, é a Europa, todos perfilados em sentido e caladinhos que se vai ouvir o hino. Mas ao editorialista do PÚBLICO perguntaria: e não se faz nada se houver sanções? Em nome da Europa desistimos de dizer o que quer que seja na Europa? Em Portugal desistimos de fazer alguma coisa por Portugal?
Temo que este “tabu” tenha pouco a dizer sobre o presente e o futuro. Afinal, um “tabu” é somente uma proibição de pensar mesmo sobre o passado, quanto mais sobre o futuro. E as proibições de pensar costumam dar-se mal com a realidade.
Desculpe, mas não acho que o artigo de André Macedo seja insultuoso. Onde é que a discordância passa a insulto. A palavra “insulto”, embora nos dias que correm se tenha banalizado, continua muito forte.
Pois. Mas se, para exprimir uma discordância, alguém lhe chamasse “Raul Camarão”, V. Exa era capaz de não gostar…
O Europeismo evolui para uma ideologia?
Os seus comentário sobre a crescente insularidade do aparelho da UE é aqui também uma nota de crescente preocupação. Dos valores aos tiques, há claramente uma coisas estranha a nós e aos mecanismos da democracia a emergir entre essa outra gente. Não só em Bruxelas, há uma corde crescente de acólitos, muitos deles bastante jovens.
Haverá estrutura suficiente nesta coalescência de interesses e exclusões que alimentam e são alimentadas pela UE para emergir aqui uma ideologia? Estaremos a assistir à emergência de partidos políticos europeistas bem defenidos: na interceção que João Ferreira do Amaral identifica entre o capitalismo financeiro e a suserania por uma administração central?
Afinal durante o Salazarismo o sufrágio em vez de ser cancelado foi reconfigurado como uma reafirmação de lealdade a uma autocracia que decidia quem eram os candidatos. O mesmo parece acontecer com os media, como nota, que crescentemente dependem da UE para acesso e custos de deslocação a eventos promovidos por esta. Ainda mais patente, vemos o mesmo no favorecimento de corporações como o Santander, BBVA e o CaixaBank que foram conduzidos pela mão do BCE para o controlo da banca privada portuguesa.
Assalta-me de repente a ideia que estamos a ver a emergência de um corporativismo europeista no continente. Parece-lhe excessiva esta leitura caro Francisco Louçã? Se sim, isto não vai ser fácil, as coisas vão piorar muito antes de eventualmente poderem melhorar. Há até a possibilidade do tal europeismo ganhar o conflito e daqui a umas gerações gabar-se de ter fundido as nações europeias. Ou talvez vejamos uma rebelião e uma verdadeira guerra, como as outras. Isto faz sentido?
Estimado Dr. Louçã, a realização de um referendo não é a única resposta possível a eventuais sanções a Portugal. Já foi mencionada algures a possibilidade de recorrer aos tribunais, por exemplo. Portanto, embora a possibilidade de um referendo não me choque (desde que as regras do mesmo sejam mais sensatas que as britânicas), não acho que pôr essa ideia de parte seja a mesma coisa que baixar a cabeça e dizer ámen.
Essa de titular “Catarina Faraje” tem mesmo um mau odor. Não conheço o tal Macedo, mas se não é má-fé, então parece covardia. De qualquer modo, posso estar enganado na minha santa ignorância, mas muita gente que hoje lamenta a votação “anti-Europa” e a vincula com algum tipo de visão primitiva, tribal, é daquela gente que contribuiu para deixar para trás, na pobreza primitiva e ressentida, muitos daqueles que, defensivamente, votaram ‘contra a Europa”. O corpo do baleado está ainda quente, depois que esfriar veremos que o mundo não é feito apenas de “europeistas moderninhos” e “fascistas eurocéticos”.
“como a água dos rios não volta do mar para a fonte, pois não?” – Por acaso até volta… pelo ciclo da água.
Até que enfim que alguém prestou atenção às aulas no liceu. É uma afirmação completamente estupida essa de que a água do mar não volta aos rios. É como a expressão “gastar água” que também me errita, dada a quantidade de água no planeta ser sempre a mesma. Temos é que gerir a água para a termos disponível sempre que queremos. Agora, não se gasta água nem ar nem nada na realidade porque nada se perde nada se ganha tudo se transforma.
Tá bem, ó Adriano! Mas se gastar desmesuradamente a água doce disponóvel e pela torneira lhe começar a entrar água do Gincho, e se a alternativa for água da Caparica engarrafada V. Exa. não irá continuar a filosofar em muito boas condições…Nem sequer durante muito tempo…
Esse Macedo não é o que vai para RTP? Deve ser por isso. Nunca é bom conservar um funcionário demissionário. Quer sair, sai no acto. Em relação à substância eu sou suspeito porque sou pró-europeu. Não vejo nenhuma vantagem no FMI em relação ao BCE, nem como poderíamos com uma demografia e emigração como a nossa enfrentar a globalização sem o apoio de uma confederação qualquer. Acho correto que os países convirjam, no nosso caso na Europa, e que seríamos os grande prejudicados se saíssemos. Já em relação ao euro acho que foi um erro que não sei se tem conserto, mas é bom ficar atento às oportunidades que aparecerem agora, com a saída do RU, ou do que restar dele. Também não sou grande adepto da democracia direta.
“Panamá Papers”, disse. Era capaz de jurar que já ouvi falar desse “trabalho de investigação” para onde foram “convidados” a TVI e a SIC/Expresso, mas se calhar é confusão minha.
Consta aí que os referidos “papers” eram “high quality tissue”. É uma questão de se procurar nos WC das referidas instituições, especialmente os privativos das administrações. Devem estar ao pé do que resta daqueles artigos sobre o BES que deixaram de ser publicados após a ameaça de que iriam cortar a publicidade…
tás no ponto f louçã
mas eu é que fiquei com o peso
Vá lá, Francisco: o Público redimiu-se com um excelente texto da São José Almeida!
O Público tem sempre um critério de abertura e diversidade nos textos de análise e de opinião que faz dele um jornal de referência, sem dúvida, e que diferença em relação à escrita de André Macedo, que anda à pedrada. Neste caso, a minha crítica é clara: considerar que há um “tabu” na questão europeia é entregar o ouro ao bandido. Ver também o editoral de hoje rejeitando as sanções.