O Banco de Portugal (BdP) publicou a 16 de Maio o seu “Relatório de Atividade e Contas 2015”. É o primeiro ano em que as contas do BdP reflectem o efeito do programa de expansão quantitativa do BCE – programa alargado de compra de activos – e, em particular, de compra de dívida pública portuguesa.
Uma breve análise do Relatório levanta algumas interrogações:
– No âmbito daquele programa do BCE/Eurosistema, até 31 de Dezembro de 2015, o Banco de Portugal (BdP) adquiriu 10 100 milhões de euros (M€) de dívida pública portuguesa e cerca de 1 200 M€ de activos financeiros emitidos pelo sector privado português (“covered bonds”). Seria natural esperar que os juros auferidos dessa dívida pública e privada tivessem dado um contributo positivo para os resultados líquidos do Banco de Portugal. Se assim fosse, o BdP poderia distribuir mais dividendos ao Estado em 2016. Ou seja, o programa de compra de activos do sector público adoptado pelo Conselho do BCE teria, nesse caso, um efeito favorável no défice público de 2016.
– Mas, por um lado, a queda das taxas de juro tem reduzido a receita com juros do BdP. E, mais importante, o BdP constituiu uma provisão de 480 M€ para riscos gerais, um nível de provisões muito superior ao de anos anteriores. De acordo com o BdP, essas provisões eram necessárias para fazer face a potenciais perdas do programa de compra alargada de activos (leia-se, com a compra da dívida pública portuguesa).
– O relatório do Banco de Portugal não é inteiramente claro sobre os critérios utilizados para constituir essa provisão. Uma nota (ver p. 73 do Relatório) remete para o Plano de Contas do Banco de Portugal, mas o texto do relatório parece sugerir que essa provisão resulta de critérios para imparidades e riscos definidos a nível do Eurosistema. E refere ainda o problema do risco de perdas sobre esses activos ser assumido exclusivamente pelo Banco de Portugal. Porém, esse parece ser um argumento pouco relevante. É certo que não há partilha de risco com o resto do Eurosistema, mas isso também significa que o Banco de Portugal não assume os riscos de perdas com a dívida italiana, espanhola, irlandesa, francesa ou alemã. O banco central da Irlanda, por exemplo, aborda essa questão das provisões para riscos genéricos da dívida adquirida no programa de compra alargada de activos, de forma detalhada no seu relatório anual e não constituiu provisão alguma para riscos genéricos (ver p. 105, p.122 e p. 136 deste relatório)
– Sabe-se também – de uma posição tomada em relação à Grécia – que o BCE defende que antes de registar quaisquer lucros (e dividendos), os bancos centrais nacionais devem utilizar ganhos com títulos para compensar prejuízos do passado e para constituir provisões financeiras.
Perante estas considerações, é interessante analisar o que fizeram outros bancos centrais em relação aos rendimentos de juros que resultam da dívida adquirida no âmbito do programa alargado de compra de activos do BCE/Eurosistema.
– O Bundesbank adquiriu 122 000 M€ de activos (ver p. 83 do relatório anual do Bundesbank), dos quais 104 000 M€ de dívida pública da Alemanha; ou seja, o Bundesbank adquiriu 10,8 vezes mais activos financeiros no âmbito do programa de expansão quantitativa do que o BdP, mas só constituiu provisões para riscos gerais de 780 M€, i.e., apenas 1,6 vezes mais do que o BdP.
– O Banco Central da Irlanda (BCI) apresenta o relatório mais transparente sobre esta matéria. Adquiriu 8 500M€ de activos no âmbito do programa de expansão quantitativa, dos quais 6 800 M€ de dívida pública da Irlanda. Não constituiu quaisquer provisões para riscos gerais e, aliás, diminuiu as suas provisões sobre títulos de dívida em 70 M€, para um total de aproximadamente 190 M€ de provisões para riscos gerais, enquanto as provisões do Banco de Portugal para esses riscos aumentaram 480 milhões para cerca de 4 046 M€.[1]
– Em suma, no caso do Banco de Portugal, as provisões por conta do novo programa de expansão quantitativa são tão elevadas que o Resultado Antes de Impostos do BdP, em 2015, diminui face ao ano anterior. E, em consequência, o imposto sobre o rendimento pago pelo BdP ao Estado diminui de 129 M€ em 2015 para 90,8M€ em 2016, i.e., diminui 38 M€ face a 2015. E os dividendos distribuídos pelo BdP ao Estado caem de 243 M€ em 2015, para 186 M€ em 2016, i.e., diminuem em 57 M€.
De forma simplificada: o programa de expansão quantitativa do BCE, (que é, ao contrário do assegurado pelo BCE, um programa de monetização de dívida), ao invés de ter um efeito directo[2] favorável na redução do défice orçamental de Portugal em 2016, tem um efeito negativo, prejudicando o esforço de consolidação orçamental e o défice público de 2016 em mais de 95 (=38+57) M€, em comparação com 2015. Surpreendente!
No caso do Bundesbank, as provisões para riscos gerais são tão mais baixas, que se afigura provável que o programa de expansão quantitativa do BCE tenha um efeito favorável na redução do défice público da Alemanha em 2016.
O Banco Central da Irlanda declara, no relatório de 2015, ter auferido 20,7 M€ de juros relativos aos 6,8 mil M€ de dívida pública irlandesa adquirida no âmbito do programa de expansão quantitativa, distribuindo 80% dos lucros para o Estado irlandês na forma de dividendos. Em resultado, o programa de compras de dívida pública da Irlanda tem um efeito favorável de cerca de 16,5 M€ no défice público de 2016.
A confirmar-se esta análise, o programa alargado de compra de activos do BCE, por via das “provisões para riscos gerais”, daria uma pequena ajuda à consolidação orçamental na Alemanha em 2016 – que não necessita dessa ajuda –, e também da Irlanda, e prejudicaria “ligeiramente” a consolidação orçamental em Portugal em 2016 – que bem necessitaria dessa ajuda.
Interessa finalmente analisar qual o contributo para o esforço de consolidação orçamental de Portugal se o BdP tivesse optado por um nível inferior de provisões para riscos gerais:
– As regras do Eurostat (ver p. 194-195 deste Manual) determinam que os pagamentos do Banco de Portugal que contam para o défice público são o menor de dois números: ou os resultados operacionais do banco central nacional (que excluem as referidas provisões) ou os dividendos pagos ao Estado. Os resultados operacionais do Banco de Portugal em 2015 foram de 432 M€, quase 250 M€ superiores aos dividendos de 186 M€ distribuídos pelo BdP em 2016.
– Assim sendo, estimo que se as provisões para riscos gerais constituídas pelo Banco de Portugal tivessem sido, por exemplo, 100 M€ (e não os referidos 480 M€), então o Resultado Antes de Impostos do Banco de Portugal passaria a ser 703,7 M€ (=323,7+480-100), o imposto sobre o rendimento que o BdP pagaria ao Estado passaria a ser de cerca de 211 M€ (~30% do Resultado) e os dividendos que o BdP distribuiria ao Estado passariam a ser de cerca de 394 M€ (80% dos Resultados Líquidos), que contariam integralmente para o défice público de acordo com as regras do Eurostat, porque inferiores aos resultados operacionais do Banco de Portugal.
– O contributo global da actividade do Banco de Portugal para as contas públicas seria cerca de 605M€ (=394+211), o que representaria uma melhoria de 233 M€ face a 2015, ao invés da deterioração de 95M€ que foi apresentada a 16 de Maio.
– Ou seja, uma diferença face aos resultados apresentados pelo Banco de Portugal a 16 de Maio de 2016 de 328 M€ (=233+95), quase 0,2% do PIB.
– Esse montante não seria despiciendo quando se considera que o Estado comprometeu-se perante Bruxelas a cumprir o objectivo para o défice de 2,2% do PIB em 2016.
Seria, por conseguinte, importante que o Plano de Contas do Banco de Portugal, que orienta o Banco na elaboração do seu Relatório e Contas, reflectisse melhor um dos princípios fundamentais da contabilidade (que acompanha os pareceres de empresas de auditoria): as contas devem “apresentar de forma verdadeira e apropriada a posição financeira” da respectiva entidade. Em particular, as provisões para riscos gerais deveriam permitir menos discricionariedade e não deveriam poder ser utilizadas para “esconder” lucros, qual mealheiro, para um futuro longínquo.
P.S.: Republicado a 27.5.2016 às 17:54 – Corrige dividendos: a diminuição de dividendos entre 2015 e 2016 é de 57M€, não de 67M€, como inicialmente apresentado.
[1] O Banco de Itália e o Banco de Espanha ainda não publicaram as contas de 2015, mas será interessante analisar a respectiva estratégia em relação às provisões para riscos gerais relacionadas com o programa de expansão quantitativa.
[2] Tem ainda um efeito indirecto positivo ao reduzir a taxa de juro das emissões de dívida pública portuguesa no mercado primário.
É sempre interessante saber que se o calote português vier a acontecer, tal como aconteceram dois calotes gregos, o Banco de Portugal, e não o BCE, ficará arder em milhares de milhões de euros. Se isto for realmente assim, o Banco de Portugal nunca deveria ter aceitado comprar a dívida que comprou, operação essa que constitui uma especulação em grande escala nos mercados de capitais. Uma vergonha, para o BCE e para o Banco de Portugal.
Esclarecedor de como se faz muita política enviesada no BdP. Quero ver como se descartam. Quem pode alterar o comportamento do BdP? Ninguém? Parabéns ao autor do texto pela simplicidade com que expôs a questão.
Cada um vê o que quer ver. O autor não vê por exemplo razão para o Bundesbank ter provisões mais baixas do que o BdP.
Uma diferença “fácil”, acredito que existam outras, é a nossa divida publica ser lixo e a da Alemanha AAA.
As provisões antecipam custo, e não há qualquer razão para achar que a divida Alemã/Irlandesa vá ser restruturada, enquanto que em Portugal dois dos partidos do governo querem a reestruturação da divida. A razão para serem bem diferentes é óbvia (se o valor em si é correto já não opino, mas ser muito diferente é normal porque o contexto é diferente).
A seguir fala dos resultados do BdP terem um impacto negativo na consolidação orçamental. So what? Deviam ter por alguma razão? Não tarda nada parece que os lucros do BdP é que têm de ser o motor da economia.