Tudo Menos Economia

Por

Bagão Félix, Francisco Louçã e Ricardo Cabral

Francisco Louçã

29 de Fevereiro de 2016, 09:05

Por

Uma forte náusea

Escreve João Vieira Pereira no Expresso: “Sempre que ouço a palavra nacionalização sofro um reflexo automático que se expressa por uma forte náusea”. Não sei se devo elogiar a candura, pois é raro que o preconceito ideológico se exprima de forma tão eloquente e até tão fisiológica, ou se manifestar alguma surpresa, porque afinal um jornalista com responsabilidades prefere colocar-se de fora do debate que considera suficientemente importante para merecer a sua atenção.

Vieira Pereira é um adepto da espanholização da banca portuguesa e defende mesmo, de modo mais geral, que a concessão da economia nacional é uma vantagem, porque, com a bancarrota da burguesia lusa, é preferível termos outros donos: “A espanholização da banca pode ser um problema se acharmos que numa situação limite a gestão vai apoiar os interesses espanhóis em vez dos portugueses. Tendo a concordar com esta leitura. Mas isso é mau? Nos últimos anos os interesses estrangeiros têm feito muito mais por Portugal do que os interesses nacionais”. Era difícil ser mais claro, venham os espanhóis para comprar o Novo Banco e para expandir os seus “interesses”, são quem nos acode em hora amarga.

Aplaudo sempre quando não se discute em termos das banalidades tradicionais: é indiferente quem explora, porque explora, dizia um argumento esquerdista de velhos tempos, e isso parece-me ter tão pouco sentido agora como antes. Vejamos o caso concreto da banca. Se a banca nacional for dominada por interesses que escapam à capacidade de condicionamento e de deliberação dos poderes públicos, o funcionamento concreto do negócio bancário vai sempre favorecer a selecção e aquisição de empresas por capitais com estratégias inexpugnáveis. É uma escolha possível, mas não vale queixar-se depois.

O facto é que a banca vai colapsar – está a colapsar. Nicolau Santos fez este fim de semana um inventário impressionante sobre o Novo Banco, que declarou 981 milhões de prejuízo, depois de ter o conta-quilómetros a zero, como dizia o governador do Banco de Portugal (que fez escrupulosamente as contas para a resolução competente, foi o que se viu). Para tanto obteve um reforço de capital inicial de 4900 milhões e a limpeza dos passivos; conseguiu agora a anulação de mais 1900 milhões de divida sénior; teve um ano e meio para recompor as operações e ainda anuncia prejuízos de quase mil milhões, que continuarão no próximo ano. Houve testes de stress, há a colecção das obras completas do governador a garantir que o sistema sempre foi sólido, o futuro ex-presidente confirmou, o governo de então assentiu, tudo estava bem, quando tudo estava mal tudo foi bem corrigido e, afinal, o balanço é tóxico e os prejuízos continuam. O resultado é o colapso. Uma náusea, para usar o termo de Vieira Pereira.

Diz-nos isto que foi a portuguesidade dos gestores ou dos capitais que tramou o banco? Parece difícil de acreditar, até porque foram os mais considerados profissionais, a melhor ciência, os grandes especialistas, a coligação de apoiantes no Banco de Portugal e no BCE, todos juntos de Lisboa a Frankfurt. Falharam todos, simplesmente porque o seu sistema era falhar. Assim sendo, vender agora a espanhóis, ou seja, ao Santander ou ao La Caixa, vai resolver este sarilho? Como, se o Santander está em risco, como aqui demonstrei há dias, e os meus colegas de blog têm evidenciado com tanto detalhe?

Talvez o problema não seja então da nacionalidade dos capitais, que aliás são bastante indiferentes a essa mesquinhez. É da natureza da banca e da finança em tempos de crise: joga-se, perde-se, endivida-se, paga-se, pagamos. O controlo público procura simplesmente restabelecer as condições para decisões coerentes sobre o bem comum, como o sistema bancário. E a capacidade de controlo soberano exerce-se de modo diferente quando enfrentamos Ricardo Salgado e Carlos Costa ou Ana Botin e Mario Dragui, como é bom de ver.

Não será então uma náusea continuar esse triste fado de crises e resgates?

Comentários

  1. Obrigado pelo artigo caro Francisco Louça. Quando uma nação não resiste à ocupação, a segunda fase é o colaboracionismo. Estamos nesse tempo dos capatazes sabujos e traidores que são recompensados pela tarefa de manterem o rebanho em ordem a caminho do matadouro com palavras confortantes de que é melhor para todos. Por ora o rebanho irrequieta-se mas não vejo sinais de se querer verdadeiramente libertar do corral onde os meteram. Estamos na fase de Portugal de Vichy, com o exemplo da banca entregue à espanha na sua peça descreve sem enjeitos. A maioria dos Portugueses continua a fingir que as coisas não estão, a prazo, a piorar para todos. Como dar a volta a isto? Será preciso esperar por mais um vendaval na economia para derrubar as ilusões? Ou que emerga uma direita patriótica que se junte à esquerda num programa de saída da EU e do Euro?

  2. Excelente crónica, Francisco Louçã. Em ponto-cruz também com a sua crónica anterior, talvez mereça ser lembrado este artigo da “New Scientist” sobre o extraordinário estudo de Stefania Vitali et al. — visto que dois dos bancos que citava (Deutsche Bank e BNP Paribas) na sua crónica anterior, estão no top 50 do artigo: https://www.newscientist.com/article/mg21228354-500-revealed-the-capitalist-network-that-runs-the-world/

  3. “Não será então uma náusea continuar esse triste fado de crises e resgates?”

    Em que período da história do “mercado” é que não existiriam crises? Quando é que o “mercado” não esteve em crise, ou formação de crise?

    Porque insiste a universidade em dizer que “o mercado” pertence ao domínio da economia, mesmo com as crises contínuas que o desmentem totalmente?

    Brilhe caro Louçã!! Revele que sabe porque é que o “mercado” nunca funcionou, de nenhuma forma. Mostre os seus supostos conhecimentos em “economia” e revele porque é que o “mercado” nunca funcionou nem vai funcionar.

  4. Um comentário mais em jeito de pergunta. Cada vez que o Estado entra com o dinheiro de todos nós para salvar bancos privados mal e/ou criminosamente mal geridos (contas offshore, etc.) abre-se um precedente. No futuro um banqueiro sabe que pode “brincar” à vontade com o dinheiro dos depositantes, pois o Estado estará lá para ser o fiador e cobrir o custo dessas brincadeiras. O Estado vê-se obrigado a intervir (alegadamente) para salvar o sector financeiro, tão importante para a economia. Mas então das duas uma. Ou se regulamenta urgentemente e eficazmente este sector (mais transparência, código penal mais duro, abolição dos paraísos fiscais, etc.); Ou, deixando os “cowboys” fazerem as suas “cowboyadas” o Estado anuncia alto e bom som que a partir de agora apenas os depósitos e investimentos feitos em bancos públicos estão garantidos e cobertos pelo Estado. (Repara-se que nenhuma destas opções implica a nacionalização de qualquer banco.) Eu inclino-me mais para a segunda opção. Mas o que não pode de maneira nenhuma continuar a acontecer é bancos “sistémicos” serem deixados “à solta” e sem supervisão adequada tendo todos nós como fiadores.

    1. Curioso que o conceito de “moral hazard” aplica-se quando não um banco não pode perdoar uma dívida a uma pessoa, senão todos os que pediram exigiriam o mesmo tratamento, mas se for um banco a pedir borlas a um estado está tudo bem.

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