Tudo Menos Economia

Por

Bagão Félix, Francisco Louçã e Ricardo Cabral

Francisco Louçã

28 de Maio de 2015, 08:00

Por

Sabe o peso da canga que leva ao pescoço?

cangaA fotografia é esta. Diz-se que a dívida pública portuguesa é de 226 mil milhões de euros. Mas, se considerarmos as empresas públicas que não são incluídas no critério de Maastricht, esta dívida passa para 289 mil milhões, ou 166% do PIB. E se considerarmos toda a dívida de toda a economia portuguesa então são 702 mil milhões, contas de Março, ou 404% do PIB, quatro anos do produto total do país. Se esta dívida fosse da responsabilidade de todos, desde as crianças recém-nascidas até aos reformados, cada um deveria algo mais do que 70 mil euros (se recair só sobre a população activa e dispensar as crianças e reformados, conte, cara leitora ou leitor ainda em idade de trabalho, que a “sua” dívida andará pelos 140 mil euros).

Também há, do outro lado, créditos da economia portuguesa na balança, ou seja dívida do estrangeiro a empresas e agentes residentes em Portugal, mas a conta fala por si e é muito negativa para Portugal. Somos um país mais endividado do que a Grécia.

Tudo isto tem sido muito discutido. No entanto, há um aspecto que tem sido secundarizado e que foi o tema de uma investigação recente do Economist, que levou João Silvestre, do Expresso, a procurar os dados portugueses: quanto é que o Estado paga de juros em cada ano e que parte dessa conta é o juro pago em substituição das empresas e dos compradores de casas que têm hipotecas?

A primeira pergunta é a mais fácil de responder. O Estado paga directamente 8,8 mil milhões em juros da dívida pública (o que subestima o valor total, porque há ainda o que pagam as empresas públicas que não são registadas na dívida directa do Estado).

Mas a segunda pergunta é mais difícil: o Estado abate nos impostos a receber uma parte dos juros que as famílias pagam aos bancos pela compra de casa e abate ainda uma parte dos juros que as empresas pagam. Assim, recebe menos IRS e menos IRC porque perdoa uma parte destes impostos. No primeiro caso, a diferença é qualquer coisa como 400 a 500 milhões de euros e, no segundo, entre 740 e 1250 milhões. No total, o Estado paga em juros das pessoas e das empresas cerca de 1% do PIB total.

Somadas todas as parcelas, contabiliza o Expresso que, entre 2005 e 2014, o Estado pagou entre 72,6 mil milhões e 77,5 mil milhões de euros em juros. Não fica longe das receitas fiscais de dois Orçamentos de Estado. Ou seja, em dez anos o Estado dedicou dois anos das suas receitas ao pagamento de juros, incluindo os das famílias e das empresas que não são sua responsabilidade directa.

No caso dos Estados Unidos ou de outros países do euro, a conta é ainda maior e anda pelos 2% do PIB. Isso cria problemas difíceis: em 2007 a Grã-Bretanha gastava mais em juros do que em defesa, mesmo que tenha um dos maiores exércitos do mundo. Resolveu o assunto terminando com o desconto fiscal dos juros hipotecários.

Quando vemos o detalhe das contas, que está disponível para outros países mas não para Portugal, descobre-se que esta gestão da dívida tem duas consequências negativas. A primeira é que acentua a desigualdade (nos EUA, 90% dos benefícios fiscais em juros de crédito à habitação vão para famílias que têm rendimentos superiores ao equivalente a 70 mil euros por ano). Os mais ricos ganham mais com as vantagens fiscais. A segunda desvantagem é que estes benefícios favorecem uma economia de dívida, estimulada pelo sistema financeiro: desta forma, os bancos podem aumentar o crédito e as casas são mais caras graças a este sistema de perdas fiscais para o Estado.

Mas tudo isto tem também um custo, que é a fragilidade acrescida do sistema financeiro, em particular dada a sua densíssima interconexão. Exemplo do Economist: o crash financeiro de 2000-2002, a bolha das dot-com, as empresas de comunicação e informação, custou quatro triliões de dólares aos accionistas e não houve efeitos sistémicos, quem perdeu, perdeu; mas o crash de 2007-2008 com a bolha do imobiliário nos EUA custou metade, dois triliões de dólares, e mesmo assim desencadeou um colapso financeiro e uma recessão mundial. Um abalo numa pequena parte da dívida hipotecária propagou-se a todo o sistema financeiro e levou ao congelamento dos mercados monetários e do crédito inter-bancário. Não estamos livres de que volte a acontecer uma coisa parecida.

A economia da dívida é um barril de pólvora e favorecer o crescimento da dívida tem sido um erro. Vamos todos pagar por ele.

Comentários

  1. Mais um para a comissão de censura: sim, eu sei qual é o peso da canga que levo ao pescoço, como português, porque dá-se o caso de pessoalmente ter o pescoço limpo. Levo o peso de um regime socialista de desastres e bancarrotas em cadeia, cerca de 200.000.000.000 de euros de dívida pública LÍQUIDA, que é aquela que é relevante, e que dividida, digamos, por 10.000.000 de mamíferos tugas, dá cerca de 20.000 euros a cada um deles. Quanto às cangas privadas dos outros, não são minhas, e nada darei para elas, a não ser aquilo que me consigam sacar à força, e aquilo que eu decida e possa dar aos mais aflitos. Não gostaria de ver a canga a aumentar mais, de ver Portugal na situação da Grécia, de ver o meu país transformar-se em mais um pardieiro de fascistas e de sociais-fascistas, e na chacota do mundo ocidental. Mas isso não depende mesmo de mim. E vai à censura!

  2. Coloco-lhe a seguinte questão: acha errado que o Estado admita a dedução dos juros pagos com as dívidas contraídas para aquisição de casa própria? Faço-lhe a pergunta atendendo ao que escreveu e à situação concreta do nosso país que os seus números – números oficiais, certamente – evidenciam. A parte das famílias, na tal década que custou à volta de 75,05 mil milhões, não ultrapassou os 4,5 mil milhões de euros, em valores médios. Menos de 6% do total dos juros pagos nesse período, tomando como boas as contas feitas pelo jornalista do Expresso. Não mais de 31% do valor “perdoado” conjuntamente a famílias e empresas em cada ano. Menos de 0,5% do PIB, mais coisa menos coisa. Coloco-lhe esta questão porque como sabe a opção, generalizada, das famílias pela aquisição de casa com recurso ao crédito hipotecário resultou – neste caso devemos falar do passado – duma opção política dos sucessivos governos. Uma opção política que beneficiou enormemente o sistema financeiro e que não se alterou ao longo de décadas. O que se alterou recentemente, com este Governo, foi a redução dos valores dos juros hipotecários que podem ser deduzidos em cada ano. Uma injustiça que afectou centenas de milhares de famílias, agravando a sua situação já degradada pela austeridade impiedosa. Não me parece que no nosso caso sejam os mais ricos que sejam os mais beneficiados com esta medida. Até porque sendo tão elevada a percentagem de pessoas com casa própria essas pessoas não podem ser “os mais ricos”. A menos que as periferias de Lisboa, estejam pejadas de “mais ricos”. Como sabe Portugal é, do ponto de vista da política de habitação (e não só ), um dos países mais liberais em termos europeus e um dos que menos gasta com ela em percentagem do PIB. Menos de 1% do PIB, já considerando o “custo fiscal” em termos de IRS. Julgo que aceitará que o Estado deve tomar medidas de redução das deduções com juros hipotecários apenas quando adoptar um conjunto de políticas públicas de habitação e de crédito público que visem permitir aos cidadãos o acesso ao direito constitucional à habitação nos exactos termos em que a Constituição o determina.

  3. Ao negar a dívida, está a negar a possibilidade de os seus descendentes se endividarem. Só os credores fazem reestruturação de dívida. Foi assim com a Alemanha e, em benefício dos credores. A reestruturação das dividas soberanas na zona euro vai fazer-se, sem duvida, mas pelos credores, e só quando os países criarem as condições para o povo europeu dizer, sim. Na realidade o dinheiro que está nos bancos credores não é mais do que o dinheiro que os Europeus lá colocam. Talvez os banqueiros não façam uma boa gestão, afinal são homens de carne e osso.

    1. A reestruturação da dívida da Alemanha foi feita por um acordo e em benefício dos devedores.

    2. A mim não me parece que comparar a situação de alguns países europeus em 2015 com a da Alemanha física e moralmente devastada do pós-guerra faça sentido. Do ponto de vista económico, essa dívida, certamente ínfima dada a pobreza e os padrões do mundo de então, poderia ter sido paga integralmente. O seu perdão, creio que muito parcial, mais não constituiu do que um “empurrão” e um gesto de apaziguamento, que era do interesse dos vencedores. A Alemanha Federal, que, por exemplo, foi pagando enormes compensações a judeus e outras vítimas do nazismo, poderia ter suportado essa dívida integralmente. A outra não, a RDA estava noutro “campeonato”! Houve quem dissesse que a História nunca se repete, e é verdade. Tentar um perdão de dívida à alemã em 2015 não passa de um anacronismo. Quando vejo os gregos reclamar “indemnizações de guerra” de há 70 anos à Alemanha, não consigo sentir nada senão desprezo. Quanto à dívida portuguesa actual, é possível que aquela que neste momento é detida pelo BCE, venha um dia a desaparecer em algum buraco, discretamente. Mas nunca por manifes e exigências ultrajadas de Portugal. Discretamente, muito discretamente…

    3. Não foi só o perdão de metade da dívida… os Aliados aceitaram (Acordo de Londres 1953) em exigir o pagamento da dívida em função da evolução da economia e das exportações alemãs – o objetivo era assegurar que a Alemanha tivesse excedentes que pudessem garantir o seu desenvolvimento. Ademais, não obstante velhas rivalidades e traumas da guerra, havia o reconhecimento das interdependencia crescente das economias europeias, como se verificou um ano antes (1952) com a formalização da Comunidade do Carvão e Aço, que conduzirá à genese da CEE… Medeiros Ferreira explica isto bem em “Não há mapa cor-de-rosa”.
      – Agora, quem na Europa se preocupa verdadeiramente com o desenvolvimento de Portugal e dos países periféricos – desemprego, emigração, divergência aos padrões europeus? Para dar expressão ao subtítulo daquele livro, esta é a “história (mal)dita da integração europeia”!

    4. António Anchas, como se ilude com a sua pergunta! A pergunta que interessa não é quem na Europa se preocupa com a pobreza de Portugal, a pergunta é mesmo quem em Portugal se preocupa com isso. A Troika, uma das únicas entidades que deu um contributo apreciável nos últimos tempos, já está de fora. E cá por dentro é o que se vê, promessas a rodos e depois logo se vê quem as paga.

  4. As deduções aos impostos são politica fiscal. Os governos utilizam para orientar o sentido dos investimentos privados. Reorientar a política fiscal é governar, retirar as deduções é aumentar os impostos.
    Há 30 anos, quem quisesse iniciar uma atividade por conta própria, pedia dinheiro ao pai, ou ao padrinho ( se estes não tivessem…). Hoje vai-se ao banco ( se lá houver dinheiro…). Se o sistema não funciona bem, a culpa é dos homens (logo, é evidente que não pode funcionar bem).
    A dívida está então a gerar igualdade de oportunidade.

    1. Excepto se a taxa de juro da dívida for superior ao crescimento do produto. Nesse caso, está a criar um efeito de bola de neve de endividamento.

    2. Oh Francisco Louçã, como se o nosso problema nacional tivesse sido causado pela taxa de juro! Cuja bitola é a inflação, e não o crescimento do PIB. Na verdade, como o PIB cresce quase sempre (falo das décadas passadas), o seu crescimento nominal é sistematicamente muito superior à inflação, e logo, à taxa de juro. Porque convenhamos, tirando nos empréstimos tresloucados de Pinto de Sousa em 2010/2011, Portugal nunca pagou nenhum juro especialmente aliciante.

    3. A comparação entre a taxa de juro da dívida publica e o crescimento do PIB chama-se, em termos técnicos, efeito de bola de neve. Acho que se percebe. Se não for o caso, a leitura do livro de Cavaco Silva pode ajudá-lo.

    4. Qual taxa de juro, e qual crescimento do PIB, Francisco Louçã? Olhe que eu não sou economista, mas não sou completamente ignorante! Não faz sentido nenhum comparar a taxa de juro (yield) dos empréstimos soberanos com o crescimento real do PIB, a comparação terá que se fazer com o crescimento nominal, e é esse que eu estou a dizer que é maior do que taxa de juro, por norma. Quanto ao Cavaquinho, dou-lho a si para o tocar!

    5. Parece evidence que a bola de neve em Portugal esta incontrolavel. No entanto, a divida nao sera paga, nao por ser impagavel, mas porque isso seria a negacao da politica que temos. O facto de 0s credores Aida nao terem proposto a reestruturacao prova-0

    6. Caro Francisco Louçã, esta é para si, publique-a se quiser, mas não me sentirei prejudicado se não o fizer. Penso que ontem me excedi algumas vezes, e tentarei no futuro ser mais gentil consigo. Não é o meu forte. Nem alguma vez supus ou reivindiquei uma especial coragem, por isso o Francisco Louçã não me magoa quando me vai pondo o carimbo de cobarde. Também não pode estranhar que um liberal seja especialmente cioso da sua liberdade. Não tenho motivos para desejar que a minha identidade seja conhecida por aqui, por exemplo havia um louco furioso que aparecia nos comentários do DN e que tinha apetites homicidas muito sérios em relação a mim – se há coisa que um fascista não tem mesmo é sentido de humor. Quanto ao meu nickname, a que o Francisco chama pseudónimo, afeiçoei-me a ele, e acha-o
      também muito útil, porque precisamente não esconde onde me situo politicamente, sendo a política o prato forte dos debates nos espaços de comentários. Sem ressentimentos, e com o desejo de que escreva mais umas coisas que excitem a minha curiosidade (não é tão fácil como isso, sobretudo da parte das esquerdas). Por outro lado, se o Francisco Louçã preferir que eu não o volte a visitar neste blog, estou disponível para me ausentar.

  5. Há uma confusão que muitos fazem, ou fomentam, entre as dívidas financeiras do Estado, e as dívidas financeiras dos agentes económicos. As dívidas de um privado só a ele respeitam, não é à comunidade que se exigem esforços, é a ELE, que as contraiu, e que até deu garantias, o mais das vezes. Eu não estou nada preocupado com as dívidas financeiras dos meus concidadãos – não são minhas! Quanto ao mito da “espiral recessiva”, é pena não haver impostos sobre a tolice.

  6. Mas Francisco Louçã, a economia da dívida, como lhe chama, foi provocada por socialistas oficiais e oficiosos! Um deles, pois, … é você! Um nota para o seu argumento dos juros, ele não é correcto no que respeita às empresas. Os juros pagos pelas empresas são um custo da sua actividade, e um custo sobre o qual não há dúvidas nenhumas, isto dando de barato que os empréstimos bancários em causa serviram para financiar os seus activos.

  7. Não vale a pena esconder a expressão: o que nos descreve neste post é uma “casa de horrores”. Um presente repleto de dificuldades e um futuro negro, para um pequeno País como Portugal, que se encontra inserido numa união política económica e financeira. Um professor de Economia de Coimbra, o José Reis, costuma utilizar a expressão “armadilha” da dívida, e num dos seus comentários na TSF, há uns meses atrás, explicava para leigos em Economia, onde me incluo, como essa “armadilha” oprime, cria pressão, qual “panela de pressão”, impede a respiração financeira do Estado e do tecido social, obriga a aumentos crescentes de impostos, e à canalização dos saldos primários para um buraco sem fundo. A resposta só pode ser política, para um tamanho desafio. Bem sei que já houve o “manifesto dos 70”. E sejamos honestos: não há muito por onde escolher. Os instrumentos são conhecidos: hair-cat, perdão, renegociação das condições de pagamento da dívida. A grande incógnita é saber como os agentes políticos se vão comportar, em função das pressões internas e externas. Que políticas? Que medidas devem ser tomadas? Que opções? Que estratégias se podem encontrar, no quadro político, económico e social, por parte de um País que já não depende de si próprio?

    1. Não existe nenhum saldo primário positivo em Portugal. Nunca existiu, desde Salazar, provavelmente.

    2. Tem toda a raão, José Figueiredo, armadilha da dívida tem sido fatal para Portugal.

  8. “Favorecer o crescimento da dívida tem sido um erro. Vamos todos pagar por ele.” Claro que sim, mas a bem da coerência, não se pode vociferar simultaneamente contra a dívida e contra a austeridade. Ou existe uma solução indolor para reduzir a dívida?

    1. Não há soluções indolores para pagar dívidas. Soluções indolores só há para as empurrar para a frente, maiores, claro!

  9. E o que é mais triste é que o discurso dominante continua a ser profundamente anti-Grécia, que as dívidas são para pagar e que “nós não somos a Grécia”.
    Até quando?…

    1. Penso que será até todos percebermos que a Grécia se vai mesmo afundar. Depois disso, ninguém vai querer “ser a Grécia”, excepto algum lunático sobrante… O detonador poderá ser a saída da Grécia do euro, isso faria muito tolo abrir os olhos. Disseram-me há pouco tempo que a esquerda é simbólica!

  10. Professor
    Concordo perfeitamente que é um disparate de todo tamanho o que se paga em juros de dívida pública, lembro-me de ver um comparativo há coisa de dois ou três anos em que se gastava mais com ela do que com o SNS. Agora há uma coisa que não consigo perceber: como podemos não «favorecer o crescimento da dívida » e ser contra a austeridade? Não será necessário primeiro aumentar a dívida a fim de gerar o impulso necessário à economia para depois a podermos baixar?

    1. Claro que as coisas não deveriam ter chegado onde chegaram, mas agora Portugal terá que aguentar as consequências. A única coisa que elimina as dívidas é o seu pagamento. O sector privado tem-no feito, as ilusões já lá vão há muito. O Estado não, não pagou nada, nem sequer um excedente primário conseguiu, coisa que até a Grécia fez. O único caminho é o caminho doloroso, e o Estado tem que gastar menos. Os impostos aumentam há décadas, não é Vítor Gaspar nenhum pioneiro. Basta. E quem alimenta ilusões, também deveria explicar o que será o “segundo resgate”. Porque mal Portugal ponha o pé fora do risco, ele virá.

  11. Se bem entendo… o Estado deveria demarcar-se por inteiro da responsabilidade das dívidas particulares – “terminando com o desconto fiscal sobre os juros hipotecários”. Parece bem!
    Caro Louçã, perdoe a minha ingenuidade, mas, entre números e números… o que é, afinal, a Dívida?
    Vou arriscar aqui uma definição! Imaginemos que o mundo caberia numa aldeia de 100 habitantes e que cada um teria 10 moedas para trocar no comércio local – ou seja, teríamos um total de massa monetária de 1000 moedas. Agora, imaginemos que o Sr.A pede emprestado ao Sr.B 2 moedas – ele passa a ter 12 moedas na mão e uma dívida de 2 moedas. Devolvendo as moedas, finda a dívida. Porém, o Sr.A acredita que com o crédito de +2 moedas ele conseguirá comprar mais matérias primas, produzir mais e vender mais os seus produtos originais na aldeia, enquanto o Sr.B quererá agora não apenas receber as 2 moedas de volta, como passa a reclamar o seu quinhão nos ganhos – temos então aqui, de forma rudimentar, uma simples definição de juros, renda e custo de oportunidade. Acontece que na aldeia apenas há 1000 moedas, logo, os ganhos dos Sr.s A e B significam acumulação de capital – que por sua vez significará “dívida”, se entretanto os outros habitantes começarem a adquirir tão desejados bens a crédito. Mas com o tempo, as 1000 moedas serão insuficientes – há, portanto, que minerar o solo e cunhar mais moeda… E, abreviando, emitir mais moeda tem sido a forma comum dos Estados gerirem as suas dívidas. E daqui resultam dois outros fenómenos: inflação / deflação – se a quantidade de moeda em circulação é maior que os ganhos de produção, então, mais moeda repercute-se na subida dos preços dos bens, e temos a inflação (no presente, o simples ajuste aritmético dos preços é “neutro”, mas como a economia está orientada na expectativa de ganhos futuros, mudar o valor da moeda pode ser um grande problema!…); se, por outro lado, há escassez de moeda, logo há capacidade produtiva não aproveitada, o que significa estagnação económica ou, se já estamos numa cenário de depressão, motivará quebra nos preços, mais a retracção do investimento – e aqui temos, num ciclo invertido de perdas, a deflação.
    Ora, mais ou menos “dívida” por si só pouco ou nada nos diz – pois toda a evolução da economia está assente no paradigma da “dívida”. É a “dívida” que motiva os agentes económicos a expandir o crédito, investir, produzir, debitar juros e imprimir mais moeda. A dívida é omnipresente – e está por toda a parte!… Agora, o grande problema da dívida é quando esta cresce acima do volume de massa monetária em circulação e/ou as taxas de juro da dívida estão acima das taxas de crescimento. E daqui várias consequências: 1. sem moeda própria não é possível emitir mais moeda; 2. maior dependência em relação a fontes de financiamento externo motiva a saída de divisas; 3 sem moeda própria não é possível recorrer à desvalorização cambial, de modo a corrigir a estrutura produtiva, desincentivando as importações e estimulando as exportações; 4. não havendo desvalorização cambial, o ajuste terá de ser feito pela desvalorização dos factores de produção (trabalho) – menos salários, menos empregos e menos serviços públicos; 5. a crise da dívida vem penalizar o consumo interno e leva à retracção do investimento, da produção e do emprego, etc…
    Ora, um dos grandes “erros” dos nosso governantes, aquando a adesão ao euro, foi considerar que o país garantiria assim capacidade ilimitada de financiamento, e, por acréscimo, de endividamento. Recordemos as afirmações de Sócrates, quando disse que as dívidas, ad eternum, não são para pagar, mas para gerir – “para pequenos países […] pagar a dívida é ideia de criança!”. No entanto, apesar de existir uma zona monetária comum, o que prevalece é a lógica de penalizar cada Estado individualmente pelas suas “dívidas” (e desta feita cria-se a divisão artificial da Europa entre bons “credores” e “maus” devedores – quando na verdade todo devem a todos, embora uns mais do que outros…) E daqui resulta um outro possível “erro” de apreciação, que é acreditar que os problemas do euro se resolvem não pela saída da moeda única (como quase sozinho tem defendido João Ferreira do Amaral), antes por via do aprofundamento da integração na moeda única. Recordemos a proposts recentes de Passos Coelho para a criação do FME – esperando por essa via uma maior concordância entre a política monetária comum e politicas de estímulo económico dirigidas a cada estado-membro a partir de um orçamento comum gerido por Bruxelas.
    Mas sejamos pragmáticos… se a dívida cresce acima da capacidade produtiva, então não há outra via que não seja reconsiderar a renegociação / reestruturação dos termos da dívida – como insistentemente tem defendido Louçã!
    E daqui outra observação: Ora, se os ganhos do Sr.B dependem do engenho do Sr.A, logo tem de haver uma partilha mais equilibrada do “risco” entre ambos. Mas não é isto que sucede, os planos de assistência financeira são desenhados para que o Sr. B, os credores, não só não tenha perdas, como mantenha alta a expectativa sobre os ganhos. Já para a família do Sr.A, a dívida tornou-se quase sinónimo de escravidão – ou, no caso de se tratar de um Estado, de perda de soberania a que se resume o “protetorado” na definição de Paulo Portas.

    A BANCA ISLÂMICA – Embora não imune à crise e sujeita aos rigores e muitos paradoxos de aplicação dos códigos morais da “sharia” ao mundo dos negócios e das finanças, um dos atributos mais apreciados da banca islâmica – além das restrições impostas à “riba” (juro usurários) – é a partilha do risco (ganhos/perdas) a que estão contratualmente obrigadas ambas as partes – o que por sua vez vem alterar substancialmente o conceito de “dívida”. O objectivo aqui não é, obviamente, promover os bancos islâmicos no Ocidente, antes contribuir, através do diálogo e do confronto com modelos alternativos, para uma melhor reflexão sobre os defeitos e (des)virtudes do nosso sistema financeiro. Pense nisto!
    «Ângela Martins – a brasileira das finanças islâmicas», em: http://epocanegocios.globo.com/Revista/Epocanegocios/0,,EDG84190-8381-18,00-A+BRASILEIRA+DAS+FINANCAS+ISLAMICAS.html

    1. É preciso desmistificar a «Dívida» – e como funcionam os mercados financeiros!

      Finanças Islâmicas – O que tem de diferente? – À parte a moral religiosa (sharia), é possível falar em “ética” financeira?

      I. Entrevista com a especialista lusófona Ângela Martins – «A Brasileira das Finanças Islâmicas»
      Vide: http://epocanegocios.globo.com/Revista/Epocanegocios/0,,EDR84190-8381,00.html

      Ângela Martins – «Todas as estruturas são montadas em torno de um princípio fundamental que é o de evitar a especulação. Na banca islâmica, todas as escolas legais trabalham para evitar que quem tem dinheiro tire vantagem daquele que não tem – ou que precisa dele. Em muitas circunstâncias, os instrumentos são considerados semelhantes aos de bancos tradicionais justamente por que nem todos os produtos e serviços existentes num banco comum contêm elementos especulativos […] No fundo, o que um banco islâmico faz pode ser comparado ao comércio. Para todo título emitido existe um produto tangível por trás, um lastro […]. No islamismo, o dinheiro deve ser usado para fazer a economia crescer. Não há nada de errado em ganhar dinheiro, desde que sua atividade agregue algum tipo de valor. A única proibição é a de que dinheiro não pode gerar mais dinheiro. E assim, fica proibida a cobrança ou o recebimento de juros. No Islã, a crença é de que o dinheiro existe para circular. Ele precisa ser utilizado, posto para girar para que não seja consumido pelo zakah, que é uma espécie de imposto de renda. Não há nada de errado com o lucro, tampouco»

      II. «Conceitos Introdutórios de Finanças Islâmicas», por Fernando Nogueira da Costa (Unicamp/Brasil)
      Vide: https://fernandonogueiracosta.files.wordpress.com/2014/09/financiamento-islamico.pdf

      Fernando Nogueira da Costa («Poupança: Economia Normativa Religiosa», pag. 18-25): «Uma hipótese é que, se a doutrina econômica do Corão fosse aplicada em todo o mundo, a crise financeira recente teria sido evitada, provavelmente, mas não por razões morais, e sim por motivos ligados às proibições. Os princípios das Finanças Islâmicas impedem que existam “ativos tóxicos”, que influenciaram muito para inflamar e explodir a bolha de ativos. Mas os princípios do Corão não são contra a busca do lucro , e isso poderia ter contribuído para a crise. O islã respeita e promove a riqueza, mesmo considerando que a busca do lucro deve ser almejada com a promoção de outros valores, como a justiça. As Finanças Islâmicas são uma atividade arriscada por natureza. Os clientes não podem obter um juro fixo [“riba”] em suas contas, o que significa um risco maior para eles. Significa também que os bancos devem se envolver em atividades participativas, virando acionistas dos projetos financiados, o que implica um grande risco para os bancos [ou seja, os bancos participam diretamente dos ganhos / perdas das empresas, e as operações de financiamento exigem por regra lastro ou bens tangíveis como garantia – o que não significa que a banca islâmica não esteja também ela imune a especulações nos preços, como sucede no ramo imobiliário]. Estudos acadêmicos da relação entre bancos e estabilidade financeira não mostram que os islâmicos são mais estáveis que os convencionais. As Finanças Islâmicas podem ajudar o mercado financeiro, no mínimo, proporcionando diversificação para os investidores. Elas não são apenas para os muçulmanos, mas para todos os investidores. No máximo, oferecendo novos valores éticos para as Finanças, de maneira que elas possam contribuir com justiça e cooperação. Para os muçulmanos que pretendem respeitar “a sharia” não utilizando atividades baseadas em juros, as Finanças Islâmicas significam o acesso ao crédito. Aos não-muçulmanos, é uma opção de investimento.»

    2. Como notou, a moeda de uma economia não é só a moeda metálica mais as notas em circulção, é também o cojunto dos depósitos bancários e outros activos. A economia “cria” moeda.

  12. Bom era perceber que soluções tem Louça… sabemos do endividamento e é absolutamente normal e assim continuará. Porquê? Ao termos uma sociedade organizada de forma socialista, de esquerda, significa que temos elevados impostos, taxas e taxinhas + complexidade burocrática para dar trabalho aos fp tornando o sistema brutalmente ineficiente. Nestas condições nenhum empresário quererá investir o seu dinheiro, quando sabe que antes de ter lucro já tem de dar boa parte do dinheiro ao estado. Se tiver lucro, ainda é taxado em IRC e depois em IRS (taxa liberatória 28,5%). Tudo isto leva a que obviamente nenhum investidor queira arriscar o seu dinheiro. Logo pedem emprestado para investir e muito bem. Se querem acabar com esta dinâmica o estado tem de reduzir fortemente o seu tamanho, diminuir os impostos, para que assim seja recompensador investir o meu próprio dinheiro.

    Outra coisa muito errada no texto é achar que ao acabar com as deduções de juros aos impostos, haverá actividade económica na mesma. Um erro grave típico de quem nunca teve de arriscar, investir, etc. Acaba as deduções, a actividade económica reduz-se.

  13. Caro professor Francisco,

    Então isto não é um blog sobre “tudo menos economia”? Não se preocupe com essas coisas pequenas. Essas preocupações vão lhe dar cabo da saúde. Isso não é importante. O dinheiro vem todo de uma impressora que só precisa de duas condições: luz eléctrica e alguém que carregue no “print”. Faça como o seu colega Bagão Felix escreva sobre os jacarandás ou então como o MEC sobre os dias longos de verão. Não se deprima amigo!

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