É triste que a política económica (e monetária) europeia seja, com frequência, um puzzle, mesmo para especialistas. E, é de questionar se não será intencional.
O novo e aguardado programa de “quantitative easing” do BCE, com o valor global de 1,1 biliões de euros, descrito em três meras páginas – com partes fundamentais do programa num único parágrafo – e com informação pertinente adicional descrita num Perguntas & Respostas com Mario Draghi segue a tradição. Enquanto as políticas públicas da União Europeia, de que este programa é um exemplo, continuarem assim, com esta falta de transparência, a Europa vai mal.
Mas, voltando ao programa, o diabo está sempre nos detalhes. E a falta de detalhes representa um enorme desafio para quem tem de ler as entrelinhas e tentar adivinhar como serão implementados aspectos chave deste novo programa de política pública.
As duas componentes mais importantes deste programa de “quantitative easing” são: (i) a sua dimensão para cada país; (ii) a forma como são repartidas as suas receitas, i.e., os juros que o Eurosistema (BCE e Bancos Centrais Nacionais) irá receber da dívida pública que adquirir.
Em relação à primeira componente, não é definido o montante exacto das compras de dívida pública[1]. Wolfgang Münchau refere 800 mil milhões de euros (mM€) no máximo, cerca de 10% da dívida pública da zona euro se o programa for executado até ao fim (Setembro de 2016), o que pode vir a não ocorrer se a taxa de inflação subir.
A confirmar-se esse valor, no caso português, as regras utilizadas (percentagem do Banco de Portugal no capital do BCE) determinariam que o Eurosistema (BCE e Bancos Centrais Nacionais) adquirisse até 20 mM€ de dívida pública portuguesa[2]. Mas, no âmbito do anterior “Securities Market Programme (SMP)”, estimo que o BCE possua actualmente cerca de 17mM€ de dívida pública portuguesa[3]. Isto significa que o Eurosistema só poderia vir a adquirir, entre Março de 2015 e Setembro de 2016, um montante de dívida pública portuguesa correspondente ao remanescente (20mM€-17mM€) a que acresceria dívida (adquirida no âmbito do “SMP”) que vencesse entretanto (aproximadamente 5mM€).
Assim, estimo que o programa de “quantitative easing” possa resultar em compras de dívida pública portuguesa de cerca de 4 mM€ em 2015 e outro tanto em 2016. Ora, em 2015 e 2016 o Estado prevê financiar nos mercados, respectivamente, 16,1 mM€ e 5,8 mM€ de dívida de médio e longo prazo. Ou seja, as compras de dívida por parte do Eurosistema deverão representar cerca de 36,5% das novas emissões nesses anos. Por conseguinte, o efeito do programa de “quantitative easing” na taxa de juro no mercado secundário será moderado no caso de Portugal.
Em contraste, os principais beneficiários do programa parecem ser os países credores da zona euro e, sobretudo, bancos e instituições financeiras que detenham dívida pública desses países credores e que a revendam agora. Por exemplo, como o défice orçamental da Alemanha tem sido ligeiramente excedentário (0,1% do PIB em 2012 e 2013 e próximo de zero em 2014), a Alemanha não tem emissões líquidas de dívida até 2018. Só precisa de refinanciar dívida que vence. Assim, no âmbito deste programa, deverão ser adquiridos perto de 205 mM€ de dívida pública da Alemanha. Esse montante representa cerca de 76% das necessidades de financiamento de médio e longo prazo do governo alemão nesse período. Ou seja, é de esperar que o programa de “quantitative easing” tenha um efeito significativo na taxa de juro da dívida alemã. É pois provável que a Alemanha venha a fazer emissões de dívida pública a taxas de juro negativas[4], baixando a taxa de juro média da sua dívida pública e a despesa com juros.
Em relação à segunda componente, isto é, ao modo como são distribuídas as receitas do programa, é de salientar que a compra de dívida pelo Eurosistema não faz desaparecer a dívida. O aspecto que determina o impacto económico do programa de “quantitative easing” resulta do que ocorre aos juros que são pagos sobre essa dívida. Se, por exemplo, o governo português pagasse os juros ao Banco de Portugal e os recebesse integralmente de volta na forma de dividendos, então é como se essa dívida pública adquirida pelo Banco de Portugal desaparecesse de facto. Contudo, esta questão não é esclarecida no comunicado do BCE nem nas Perguntas e Respostas sobre o programa. Compreende-se em parte, porque isso seria uma forma de financiamento monetário aos Estados, proibida pelos Tratados da União Europeia e, por conseguinte, um tabu. Mas é estranho fazê-lo e não falar sobre isso.
Se se admitir que as receitas do programa são distribuídas da mesma forma que os riscos do programa, ou seja, 92% dos juros da compra de dívida pública são retidos pelo Banco Central Nacional e, por outro lado, se mantiverem as regras actuais de distribuição dos rendimentos do “Securities Market Programme”, então o governo português continuará a pagar muito mais do que recebe e, portanto, é como se o Eurosistema adquirisse muito pouca dívida portuguesa. A redução líquida da despesa com juros nos próximos 2-3 anos seria muito reduzida (cerca de 0,17% do PIB, por ano, a partir do final de 2016).[5]
Tal cenário afigura-se consistente com a visão das instituições de governo da União Europeia e da Alemanha sobre o que deve ser a política macroeconómica portuguesa. Os arquitectos do programa de “quantitative easing” parecem ter desenhado o programa de forma a não permitir o “relaxar” da austeridade em países como Portugal. No curto prazo, não resultaria uma redução significativa da despesa com juros, o que obrigaria o governo português a continuar com a estratégia de austeridade se quisesse cumprir o estabelecido no Pacto Orçamental.
Em suma – e parece impensável dizer – o programa de ”quantitative easing” tem um impacto directo marginal nos mercados de dívida pública e nas finanças públicas de Portugal e, muito possivelmente, acontecerá o mesmo nos outros países da zona euro com situação similar à portuguesa. O programa não permite um alívio, mesmo que de pequena dimensão, da estratégia de austeridade.
É, de resto, decepcionante que as políticas públicas europeias sejam jogos de sombras, em que os países que não estão a par das nuances dessas políticas, acabam prejudicados.
Que os responsáveis nacionais estejam contentes com o “osso” que as instituições de governo da União Europeia lhes atiraram, só parece revelar que não estão a par dos impactos do programa.
[1] O envelope financeiro de 1,1 biliões de euros será utilizado para a aquisição de dívida de instituições multilaterais da União Europeia, e.g., MEE e BEI (12%), para a aquisição de instrumentos de dívida privada (“asset-backed securities” (ABS), “covered bonds” (CB)) e para a aquisição nos mercados secundários de dívida pública dos países membros (“quantitative easing”).
[2] Valor inferior aos 24,9 mM€ antecipados numa análise de um futuro plano Draghi num documento de que sou co-autor.
[3] A falta de informação e transparência sobre o perfil da dívida pública portuguesa detida pelo BCE não permite precisar com exactidão o montante de dívida pública portuguesa que será adquirida no âmbito do novo programa de “Quantitative Easing” do BCE.
[4] No presente, antes do início do programa, as taxas de juro no mercado secundário da dívida pública da Alemanha a 10 anos são de 0,39%, mas as taxas de juro de dívidas com maturidades até 5 anos já são negativas.
[5] Se o Eurosistema, na sequência deste novo programa, adquirisse 20 mM€ de dívida pública portuguesa, tal resultaria numa melhoria das contas públicas estimada em 0,42% do PIB, por ano, e numa redução do valor presente da dívida pública em cerca de 18,4 mil milhões de euros (11,5% do PIB). Não seria suficiente para alterar a dinâmica da dívida pública portuguesa mas, pelo menos, seria suficiente para minorar algo os desastrosos efeitos do Pacto Orçamental.
” É pois provável que a Alemanha venha a fazer emissões de dívida pública a taxas de juro negativas[4], baixando a taxa de juro média da sua dívida pública e a despesa com juros.”
O que fará maravilhas à desinflação da zona euro.
Não, esta gente não faz ideia do que faz.
As notícias são sempre “1 bilião!”, mas vai-se a ver e é 1000 vezes menos. São só 3 ordens de grandeza, em tantos zeros passa despercebido.
Ou seja, depois da poeira assentar, para Portugal calha 400€ por ano por pessoa, durante 2 anos. Se dessem literalmente esse dinheiro ás pessoas, directamente, o efeito na economia ainda era apreciável, agora com tantos intermediários esfuma-se tudo.