Tudo Menos Economia

Por

Bagão Félix, Francisco Louçã e Ricardo Cabral

Francisco Louçã

8 de Dezembro de 2014, 10:00

Por

Mário Soares, um relutante gramsciano por adaptação

soaresO 90º aniversário de Mário Soares suscitou homenagens sentidas, agradecimentos precoces, silêncios significativos e, sobretudo, um eflúvio memorialista de um mar de gente que entendeu que convinha partilhar os “melhores momentos de Soares comigo próprio”, uma forma particularmente interessante de lembrar outrem. A história também se faz de pequenas histórias e até de anedotas, mas só quem viveu muito tempo e muitos acontecimentos fundadores mobilizaria esta precipitação multitudinária dos que se assim se querem fazer recordar, sabendo que, como Soares disse um dia, saborosamente, “já todos estiveram contra mim e já todos votaram em mim”.

Em todo o caso, Soares foi uma das figuras dominantes da política portuguesa do pretérito século XX, com António Salazar, o ditador, e Álvaro Cunhal, o dirigente do PCP. Mas esse tempo já lá vai há muito e ele continua aqui, pelo novo século fora, a provocar ondas com gosto matreiro e a ensaiar uma nova política que grita que quer renascer contra a roleta financeira. O seu prazer da hipérbole, da impaciência, da imprevisibilidade, lastimáveis defeitos para o mundo arrumado que legisla as nossas vidas, essas são as suas virtudes para quem estima tal atitude de descompromisso.

Mas fica sempre a pergunta: o que é que o trouxe a esta pujança, a este poder de chamar a atenção e de fazer? Ou, o que significa este voluntarismo esforçado? Dom Quixote no seu Rocinante? Fastio de ficar de lado?

Para saber como Mário Soares chegou aqui e o que o faz correr sempre, a resposta é a luta pela hegemonia. Foi sempre a luta pela hegemonia que construiu a entidade política Soares e foi ele que a fez, sabendo o que fazia. Contra a ditadura mas também contra as forças dominantes na política de oposição, Soares esgueirou-se pela fresta estreita da resistência e de alianças oposicionistas a que não aceitou subordinação, navegando entre o PCP e os budas da 1ª República, depois buscou o apoio da social-democracia europeia, afirmou um partido, levou-o ao governo, desdisse promessas eleitorais, foi primeiro-ministro ao centro e com a direita, acolheu-se na Europa anunciando que ela seria o quantum de modernidade que faltava ao país, mudou de discurso quanto achou que era necessário, surpreendeu aliados, retirou-se para voltar, foi presidente com uma campanha moderada para a primeira volta e à esquerda para a segunda, detestou Blair e esqueceu Hollande, fez trinta por uma linha. E tudo o que fez foi submetido a este único princípio: determinar o jogo, escolher o ritmo e a ocasião, criar ou manter hegemonia.

Esta hegemonia foi um jogo de xadrez e, para alguém que suspeito que nem deve ter paciência para um tabuleiro, foi um jogo com basto movimento e poucas regras.

Gramsci, e nada na sua vida o aproxima de Soares, um comunista na prisão de Mussolini e o outro social-democrata (no sentido europeu, a língua portuguesa é muito traiçoeira) da viragem do século, tratava a hegemonia como “a supremacia de um grupo social que se manifesta de duas formas, como ‘dominação’ e como ‘liderança intelectual e moral’”. Mais, este “consentimento espontâneo” dos grupos dominados será a forma de exercer o poder pela burguesia, que, assim, cria o consenso suficiente para as suas ideias e para a naturalização da desigualdade social e da relação entre as classes. A noção gramsciana de hegemonia evoca portanto uma forma de poder dominante e dominador, estabilizador portanto.

Ora, Mário Soares, gramsciano relutante e adaptativo, que não cuida dos objectivos históricos do comunista italiano, nem dos seus revolucionários conselhos operários, nem aliás de qualquer dos seus conselhos (como modestamente diz de Marx, “nunca tive capacidade de o entender”), dedicou-se a uma versão mais tu cá tu lá desta noção de hegemonia, simplesmente a que ele queria realizar: o movimento antes de mais nada, a luta pela conquista de cada vitória, triangulando forças, aliando-se se necessário com a “avó do Diabo”, para usar o termo leninista que ficou esquecido, mudando logo que fosse útil. Essa é a sua história da luta instável por uma hegemonia sempre periclitante, mas o certo é que nenhum político português dos tempos modernos teve o sucesso que ele alcançou.

O primado da política é, para Soares, ganhar e perder em eleições, mas erguer-se sempre até à força suficiente para fazer uma rota. Creio, por isso, que o cerne da sua história, tão secundarizada pelos seus adversários que nela antes registam as oscilações e deambulações, é a demostração por todas as formas de um caminho persistente, de uma política duramente pragmática tantas vezes no limite ou para além do limite das convicções, na penumbra e na luz, mas sempre determinada pela decisão de conquistar a hegemonia. Se há alguma coisa a aprender nesta história irreplicável, então aconselho todos os adversários e críticos de Soares a que aprendam que a luta pela hegemonia é a prova da política. Não são as alianças, é a hegemonia, a política pura. É preciso sempre começar por se saber para onde se quer ir ou nunca se chega a lugar nenhum.

Resta a moral desta história que está a ser escrita. É que Mário Soares não está satisfeito com o lugar a que chegamos, como podia? Ele quer ser “o gajo que lhes atira mais às trombas” por isso mesmo. Olha à sua volta e a Europa é Merkel, a economia são as empresas chinesas ou quejandas, a finança é a lotaria, o Orçamento é a dívida, Belém é Cavaco Silva, a França é Le Pen, o futuro tresanda. E por isso quer reconciliar-se consigo mesmo, com o fulgor da sua luta anterior pela hegemonia, como se tudo ainda fosse possível: quer mexer nas coisas, afastar obstáculos, estimar novas promessas como se fossem filhos, tentar juntar consigo tribos desavindas, apontar baterias ao casino da especulação, citar a palavra de Bergoglio contra a economia que mata, esperar sempre esperançosamente.

Sentimos-lhe no fôlego que já lá vai muito tempo e muita desilusão. Mas desenganem-se os que festejam as velas como se fossem curtas: se há alguém que sabe que a social-democracia de Willy Brandt, de Olof Palme e de Mitterrand já não tem lugar neste mundo, é ele. Quando se chega longe, aprende-se a humildade de querer recomeçar.

Comentários

  1. Fazem cada vez mais falta pessoas como o Francisco Louçã, um olhar isento e acutilante sobre a nossa sociedade, é exasperante ouvir este novo estilo de comentador político ultra partidarizado que a todo momento revela falta de objectividade e verdadeiro sentido crítico, muitos parabéns pelo artigo.

  2. Reconhecendo-lhe méritos e deméritos, estou contra o “culto da personalidade” prestado pelo PS a Mário Soares que já só conta para preencher espaço mediático em fins de semana de marasmo político.

  3. Nunca tinha lido tão interessante visão sobre Mário Soares. E dou os parabéns ao Autor, pela perspicácia e intelegência que revela. O que me deixa perplexo são os comentários deste ou de qualquer outro artigo… . sinceramente que não percebo, se é que é mesmo para perceber…!?

    1. neste “texto” , Louçã é quase como que se acendesse um fogo que não gera entropia. mas que a nega. é isso que faz dele um grande político. não sem o seu soldo

  4. na minha modesta opiniao
    soares atesta do maior realismo quando diz que nao teve capacidade para entender marx
    do maior realismo . é assim que se faz historia , pelo entendimento.

  5. cru e negro
    o que nao diz este aartigo é imediato e geral – soares fôra um estrtito aliado da burguesia.
    tão aliada aliada que ganhou asas – voou alad o

  6. junta “oscilações e deambulações” com “penumbra e na luz”
    + sangue suor e lágrimas e tás pronto para operar ou cirandar

    1. oscilas-se na penumbra , deambulas-se à luz ; sangue suor e lágrimas é o empreendimento humano , que se joga na operação ou que é como uma dança

  7. O SENHOR DOS ANÈIS

    “Três anéis para o Reis Elfos debaixo do Céu,
    Sete para os Senhores dos Anões nos seus palácios de pedra,
    Nove para os Homens Mortais condenados a morrer,
    Um para o Senhor das Trevas no seu negro trono
    Na Terra de Mordor onde moram as Sombras.
    Um anel para a todos dominar, um anel para os encontrar,
    Um anel para a todos prender e nas trevas os reter
    Na Terra de Mordor onde moram as Sombras.”

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