Quando falha a regulação

O estudo de Joanaz de Melo, presidente do Geota, sobre o impacto energético e ambiental da terceira travessia rodoviária do Tejo e do programa nacional de barragens, divulgado no PÚBLICO, e a entrevista do presidente da Partex, António Costa e Silva, à SIC Notícias têm algo muito em comum.

O estudo do dirigente ambientalista mostra dois pontos fundamentais. O primeiro é a mensagem de fundo: na hora da decisão, tendo de escolher entre um plano de eficiência energética ou usar mais betão, mesmo que seja em alegado benefício ambiental, os decisores políticos em Portugal escolhem o betão. Mesmo que as consequências dessa opção colidam com as políticas oficiais de incentivo à poupança energética e de sustentabilidade.

Há, contudo, um segundo ponto a reter. Enquanto planos de eficiência energética – como outros de complexa execução e de fraco impacto eleitoral – continuarem a existir apenas no plano do discurso, é inevitável a contradição.

O presidente da petrolífera da Fundação Gulbenkian retomou, por seu lado, um ponto em que tem sido muito crítico – a actuação da actual equipa da Autoridade da Concorrência (AdC), liderada por Manuel Sebastião –, para dizer que “é uma autoridade mais de falta de concorrência”.

A investigação ao sector dos combustíveis e à respectiva formação de preços é o ponto da discórdia. Num “mercado onde há muito pouca concorrência”, diz Costa e Silva, a AdC trocou o “papel de regulador pelo de simples grupo de estudos para justificar preços”.

“Temos uma Autoridade [da Concorrência] que é muito anódina, é, digamos, pífia, não intervém no mercado. (…) O presidente até pode fazer um bom trabalho noutros sectores do mercado, mas nos combustíveis pura e simplesmente não existe”, declarou.

E agora vem o ponto em comum. Nem sempre o betão é mau, nem indagar preços é fácil, mas para isso é que a regulação eficaz e eficiente é necessária. Para assegurar que na hora das decisões, estas não sejam reféns dos grupos de interesses e que a sociedade tenha ao seu dispor o máximo de informação sobre uma opção que lhe diz também respeito.

Se a ‘rede regulatória’ não se for aperfeiçoando, diminuindo os buracos da sua malha, não há como pedir responsabilidades, nem perceber seriamente as alternativas em jogo. Desse modo, a eficiência estará condenada a ser uma “chatice” e a discussão sobre os preços dos combustíveis um assunto sem solução.

É de falhas na rede da regulação que os dois dirigentes se queixam.

 

Lurdes Ferreira

Levar a sustentabilidade um pouco mais a sério

A decisão da BMW de se afastar da Fómula 1 pode ser uma má notícia para quem gosta de desporto automóvel, mas é sobretudo uma notícia interessante.

O construtor alemão justifica a decisão pela sua reorientação estratégica para uma linha ‘verde’ e de sustentabilidade. E acaba por confessar que a sua participação na F1 não promove essa imagem. Isto chama-se coerência, mesmo que digam que a verdadeira razão estará na poupança de uns bons milhões de euros.

As marcas entram na F1 à espera de um retorno, em termos de imagem, e a BMW já não o encontra lá. Por outro lado, para a marca alemã, parece que a sustentabilidade pode ser umpouco mais do que o slogan publicitário que as empresas têm explorado sem limites. O sector automóvel que o diga.

Só falta ver se, na verdade, a sustentabilidade é levada um pouco mais a sério na BMW ou se esta é mais uma acção de marketing.

http://desporto.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1393755

http://www.ft.com/cms/s/0/3148757e-7c27-11de-a7bf-00144feabdc0.html

Lurdes Ferreira

Obama/Steven Chu: Vem aí uma revolução na energia?

Na parada de expectativas sobre a próxima presidência dos EUA, a de Steven Chu, futuro secretário da Energia, é das mais elevadas. Hoje, o FT cita algumas declarações deste Nobel da Física defensor de medidas de combate contra as alterações climáticas. Foram proferidas quando ele nem sequer sonhava que Obama poderia ver a ser presidente dos EUA quanto mais ele secretário da Energia. São provocações a velhos tabus da sociedade americana.

Dizia há dois anos: “Se eu mandasse no mundo, metia prego a fundo na eficiência energética e na conservação, na próxima década”.

No ano passado, numa aula universitária, comparava o perigo do aquecimento global a uma instalação eléctrica defeituosa e com 50 por cento de risco de incendiar a casa no prazo de cinco anos: “podemos continuar a contratar inspecções até encontrarmos um engenheiro em mil que nos diga o que queremos ouvir – ‘a família não corre perigo’ – ou mudar a instalação”.

Em outra aula, defendeu vivamente a obrigatoriedade de tectos de emissões de CO2. “Os mercados livres não vão lá. Precisamos mesmo de uma combinação de políticas orçamentais e regulação mais restrita e tem de ser a nível internacional”.

No ano passado, numa entrevista ao Wall Street Journal, avisou os norte-americanos que no caso de os EUA começarem a reduzir as suas emissões, o país tinha de abandonar a sua (muito querida) cultura da energia barata. “Temos de encontrar um caminho que eleve os preços da gasolina para os níveis da dos europeus”.

Chu também diz que o carvão é o seu “pior pesadelo”. Isto promete!!

Lurdes Ferreira

O acto mais significativo do ano

Agora que entramos num novo ano, indago: o que fiz eu de substancial em 2008? Ao longo de 365 dias, que decisões, que atitudes tomei para ajudar a melhorar o mundo? A pergunta, reconheço, é um ex-libris da banalidade, ainda mais quando declarada no fútil momento do balanço anual, em que olhamos para o que passou e projectamos o que virá, para esquecer ambos logo em seguida – tudo isso em poucos segundos.

Mas não deixa de ser pertinente fazê-la. Lamento o desapontamento, mas o que tenho para oferecer como resposta é o seguinte: o que fiz de melhor para ajudar o mundo em 2008 foi consertar um autoclismo lá em casa. O equipamento tinha um defeito irritante, uma fissura capilar no reservatório, que deixava escapar uma gota de água a cada três minutos.

Há anos que o problema estava diagnosticado e a solução, idem. O mais fácil seria telefonar a um canalizador. Mas como aprecio a autonomia nos consertos domésticos, em prol do desenvolvimento sustentável do orçamento familiar, disse que eu próprio arranjaria o autoclismo. E assim fui repetindo, inconsequente, ao longo de alguns anos.

Por cada doze meses, quase mil litros de água iam para o caneco – literalmente. Até que, enfim, venci a inércia, comprei um novo reservatório e pus mãos à obra. Julguei-a fácil, coisa de dois parafusos e uma junta. Mas menosprezei a resistência de todo o conjunto, que estava imobilizado há duas décadas.

Não recomendo a experiência. Passei uma manhã agarrado à sanita, experimentando novos níveis da dignidade humana. Mesmo depois de vencer os parafusos, não acertava com a junta, que deixava a água correr solta para o chão. A situação caminhava perigosamente para o desastre físico e sanitário.

Estive a um dedo de desistir e chamar o canalizador. Mas seria um vexame perante a família, que presenciou a minha agonia. Até que, com os brios refeitos, concluí a obra.

Fiquei tão satisfeito que elegi o arranjo do autoclismo como o meu acto ambiental mais significativo do ano. Mil litros de água é muita fruta.

Ricardo Garcia

(Nós no Mundo, PÚBLICA, 4/1/2009)

O Natal mais ecológico do mundo?

Uma organização canadiana, ligada aos cristãos menonitas, propõe o Natal mais ecológico do mundo. A mensagem é simples: não compre presentes. E o argumento está inscrito num poster que o grupo disponibiliza no seu sítio na Internet (www.buynothingchristmas.org). Nele, aparece uma imagem de Jesus Cristo a questionar os fiéis: “Onde é que eu disse que vocês deveriam comprar tanta coisa para celebrar o meu aniversário?”

Alternativas, os próprios seguidores da ideia apresentam várias: fazer os presentes em casa, como velas, calendários, um bolo, uma camisola; organizar uma festa para troca de roupas e tarecos usados; oferecer algo gratuito, como o sistema operativo Linux, para computadores. A lista é longa e vale a pena conferir.

Apregoar um Natal menos ofensivo para o ambiente tornou-se um padrão entre organizações não-governamentais – inclusive em Portugal. Tenho muitas dúvidas, porém, sobre a bondade de concentrar num só momento aquilo que deveria ser feito todos os dias. Senão vejamos. Sem abdicar dos presentes, um Natal ecológico implica, entre outras penitências, comprar produtos menos embalados, evitar brinquedos com pilhas, planear bem as compras para não andar tanto de carro, não comer bacalhau e desistir do pinheirinho, que representa um infanticídio vegetal.

Tudo somado, o impacto da quadra natalícia seria de facto menor. E mesmo para a consciência, o alívio é quase espiritual. Mas também podíamos aplicar o raciocínio inverso. Ou seja, fazemos tudo aquilo, e mais um pouco, ao longo do ano todo. Escolhemos criteriosamente os alimentos, utilizamos os transportes públicos, reduzimos o consumo de electricidade, levamos o saco de casa para as compras no supermercado.

Ao chegar a Dezembro, o benefício ambiental teria atingido tal ordem que uma parte do saldo poderia ser esbanjada numa festa natalícia mais recheada. Nada mais é do que um exercício de poupança. Guarda-se ao longo do ano, para gastar-se no Natal.

Tenho a certeza de que, dessa forma, a transição para um Natal menos perdulário seria mais fácil.

Ricardo Garcia

(Nós no Mundo, PÚBLICA, 30/11/2008)

A noite vai ser a melhor amiga do carro eléctrico

Em um qualquer dia de 2011 é um dos primeiros portugueses a ter um carro eléctrico. O comando do veículo informa que está na hora de abastecer. Em casa ou numa estação de serviço, o combustível necessário sai de uma ficha e, em vez da gasolina ou do gasóleo, paga uma tarifa eléctrica.

A chegada do carro eléctrico ao mercado nacional que se promete, para já, com a Renault-Nissan a partir do final de 2010, comporta uma série de mudanças que não são apenas tecnológicas.

Também o sistema tarifário terá de ser alterado para acolher este novo consumo e sobre ele há, por enquanto, mais cálculos do que respostas.

Por exemplo, a chegada de um carro eléctrico a casa de uma família com um consumo anual de 3Mwh equivalente à média nacional de consumo doméstico -, duplicará muito provavelmente este consumo. A nova conta de “combustível” deverá ficar, assim, por 300 euros/ano (600 euros no total), isto tendo em conta que três pressupostos foram cumpridos: que se tratam de veículos que não fazem mais do que 10 mil quilómetros por ano, que o seu carregamento foi feito no período de vazio nocturno da tarifa bi-horária e que se tem por base uma dos dois milhões de famílias portuguesas que registam este nível de consumo.

Para os entusiastas do carro eléctrico, esta é uma boa novidade, em termos de custos, a que se junta o facto de se tratarem de motores sem emissões e mais eficientes. Outro ganho em perspectiva, mais colectivo do que privado, é o de o carregamento nocturno servir para estabilizar a gestão da rede eléctrica nacional e deixar de ter as grandes variações ao longo do dia, o que optimiza o seu funcionamento. Logo, tem menos custos também.

Aos entusiastas, haverá que dizer, porém, que o veículo eléctrico continua a não ter a autonomia dos motores de combustão interna, uma “objecção” que José Sócrates promete ultrapassar, no caso português, com uma rede de 1300 postos de abastecimento no final de 2011 por todo o país, interior inclusive, tendo por objectivo chegar a 2020 com 10 por cento do parque automóvel com emissões zero.

Num parque automóvel com cerca de quatro milhões de veículos, as previsões apontam para uma entrada gradual e lenta dos veículos eléctricos, à ordem de 40 mil por ano. Se o consumo unitário anual de electricidade com o carro for de três MWh, isso equivalerá à entrada em funcionamento de um grupo gerador semelhante ao da central do Carregado, com 120 MW, por ano.

Apesar de parecer um bom cenário, especialistas como Oliveira Fernandes avisam que é necessária uma disciplina tarifária que obrigue os carros a carregar durante a noite, incentivando o uso das renováveis e o aproveitamento da eficiência que o sistema pode ganhar, sob risco de se desperdiçarem as vantagens que o carro eléctrico oferece.

“Tem que ser vendido com a ideia de que só pode abastecer em período nocturno. É impensável ter carros a abastecer às duas da tarde, na Baixa de Lisboa”, afirma este professor da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto e actual presidente da agência de energia do Porto (AdEPorto).

Dá como exemplo a entrada em funcionamento do Metro do Porto, em que “houve um abaixamento significativo dos combustíveis na região; com o carro eléctrico temos de reduzir significativamente a procura de electricidade”.

Tarifa variável

Do carro eléctrico, diz que está a ser vendido como um “gadget”, quando deveria basear-se numa visão sistémica da gestão da rede, da cidade e da mobilidade. “Há 50 anos, Ferreira Dias quis o desenvolvimento da hidroelectricidade, mas quando pensou o Douro e o Cávado, descobriu que lá não havia rede eléctrica e não tinha clientes e fez do Porto uma cidade 100 por cento eléctrica. Uma ideia excepcional para fazer projectos hidroeléctricos levou a gerir a procura e agora temos que fazer o mesmo”, conclui o pai do primeiro plano de política energética baseada na eficiência e nas energias renováveis, lançado no final dos anos 90.

Num ponto, estão todos de acordo. Quem tiver carro eléctrico, deve carregá-lo à noite, mesmo que durante o dia precise pontualmente de o fazer também, de forma rápida, para garantir a autonomia necessária. Isso deve reflectir-se numa “tarifa multi-horária”, como diz Carlos Pimenta, presidente do CEEETA e um dos grandes impulsionadores da energia eólica em Portugal. “A tarifa deve variar fortemente ao longo do dia. Às cinco da tarde tem de ser muito mais cara para a compra e para a venda e às 10 da manhã também. A variação de preço ao longo do dia para a compra e venda deve dar ao consumidor incentivo para ajudar a rede e não para exercer mais pressão sobre ela. O resultado deve ser poupar no CO2 e nos combustíveis”.

Este gestor, que preside ao fundo NovaEnergia, diz ainda que a solução tarifária a adoptar deve basearse também numa rede adequada de abastecimento. “O grande problema com os carros eléctricos é criar-se um sistema que conjugue a mudança de bateria e o carregamento, se não ficam limitados à circulação urbana e periurbana”.

O investigador do INESC que se dedica há vários anos a estudar as redes eléctricas do futuro, peças Lopes, responde que o “modelo tarifário vai estar muito dependente do modelo de negócio a desenvolver. Para o carro eléctrico, há a carga rápida, como a estação de serviço normal. Há uma entidade de concessão do serviço que vai fazer um preço. Para a carga rápida, o concessionário vai comprar uma quantidade significativa de energia no mercado grossista para vender durante o dia. A carga lenta é outro modelo de negócio. É sempre uma energia a um preço muito mais baixo. Terá de ser. E seguramente a horas de vazio”.

Peças Lopes não tem dúvidas de que “num sistema que no futuro vai ter muita produção renovável, estamos a encontrar consumidores para essa energia e a tornar tudo mais verde. É uma oportunidade fabulosa para a indústria eléctrica e Portugal tem de apostar na gestão da rede e de interface com os carros eléctricos” Com o carregamento lento em casa ou em parques de estacionamento e o rápido em estações de serviço, que deverão também oferecer serviços de mudança de bateria, há um detalhe inevitável de normalização para as instâncias europeias, agora que o carro eléctrico é prometido: o tipo de encaixe das baterias tem de ser igual para qualquer marca.

Jorge Vasconcelos, ex-presidente da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos e último presidente do congresso da APDC cujo debate cruzou as comunicações com a energia, defende que as futuras tarifas para os carros eléctricos devem ser sensíveis à origem da electricidade (“se for carvão, não é um bom negócio”), ao tipo de utilização (pequena ou média distância) e ao tipo de viatura (moto, utilitário, pequenas transportadoras).

Um quarto ponto refere-se à possibilidade de os carros eléctricos, tal como já fazem hoje os comboios da CP (por serem eléctricos), enviarem energia para a rede. Tem a ver, segundo Jorge Vasconcelos, com o “potencial que um certo número de veículos eléctricos pode oferecer ao sistema para melhorar o desempenho do próprio sistema eléctrico”, também através do armazenamento e da bidireccionalidade. “Os carros eléctricos permitem acumular energia que podia ser desperdiçada e assim aumentar a penetração das renováveis no sistema”, evitando o que acontece hoje na Dinamarca, que tem de deitar fora uma série de horas de energia por dia.

Uma pequena central com rodas

O uso dos carros eléctricos como pequenos centros de armazenagem de energia para entrega à rede será possível em casa ou no parque de estacionamento, com a instalação de contadores inteligentes no sistema, que ainda não chegaram ao consumo doméstico. A “‘stockagem’ descentralizada” que se perspectiva, sublinha Carlos Pimenta, vê em cada condutor de carro eléctrico um futuro “trader” de energia que compra à noite e vende de dia, dando mais uso à produção de renováveis durante a noite.

É a aplicação do princípio do “proconsumidor”(produtorconsumidor da microgeração) com a diferença de que aqui a “central” também se move.

Tal como é consensual, entre os especialistas, que o veículo eléctrico deve carregar à noite, também o é a ideia de que a sua capacidade de entregar energia à rede deve ser incentivada para o dia, por ser quando o sistema mais precisa de energia. No entanto, este é um ponto em que os cálculos são vagos, sabendose que, até agora, a operação de venda tem sido remunerada acima do custo de compra, no regime bonificado. É o que acontece na micro-geração: os micro-produtores-consumidores compram energia à rede a 110 euros o Mwh e vendem-na a 195 euros se for hídrica, 650 a fotovoltaica e 450 a eólica. No regime bonificado, a venda está limitada a 4000 horas por ano e a uma potência de ligação de 3,68 Kw, enquanto no regime geral, sem limitações de tempo nem de potência, a compra e venda é feita ao mesmo preço.

“O mundo da energia vai ter uma evolução imprevisível”, diz Carlos Pimenta. “Ninguém sabe quais serão os segmentos vencedores nesta grande mudança. É como a história dos motores de busca. Há 10 anos apareceu o Google e com ele veio uma nova funcionalidade. Veio a Amazon e apareceu outra. O fotovoltaico vai ser com filme fino? A eólica vai para offshore? A microgeração vai explodir? Não se sabe. Haverá uma enorme criatividade de soluções”.

Lurdes Ferreira

(Suplemento de Economia, PÚBLICO, 28/11/08)

Saídas para a crise automóvel

A meio de cada crise profunda, costuma-se dizer que nada será como antes. Eu me pergunto, então, se nada será como antes no sector automóvel, que está atolado no pântano que a própria indústria criou. As pessoas estão sem dinheiro, os bancos têm medo de o emprestar e, com isso, já não se compram carros com tanta facilidade. Com as vendas em queda, algumas fábricas estão a limitar a sua produção, enquanto gigantes, como a General Motors e a Opel, imploram, de joelhos, pelo dinheiro dos contribuintes – norte-americanos e alemães, felizmente – para salvar o património dos seus accionistas e o emprego dos seus trabalhadores.

Para nada voltar a ser como antes, teoricamente o sector não deveria regressar à sua exuberância habitual. O sucesso da indústria automóvel tem assentado sobre o que há de mais insustentável na relação do ser humano com a Terra. A invenção do carro foi notável para a mobilidade. Mas ajudou, com inigualável mérito, a desordenar o território, a depauperar as reservas de energia, a conspurcar a atmosfera. O saldo é francamente negativo, porque, mesmo com as inovações tecnológicas que foram surgindo e com as responsabilidades ambientais acrescidas dos produtores, o que o automóvel fez foi dilacerar recursos globais em proporções galopantes.

Almejar o regresso aos tempos áureos significa endossar um fórmula sem futuro. No presente, até funciona bem. As indústrias vendem os automóveis e ficam contentes. Os cidadãos exultam pela aquisição do conforto locomotor. O resto é quase tudo território de ninguém e de todos: das estradas que é preciso construir, ao petróleo que se esgota; do clima em mudança, aos congestionamentos e ao ruído; da vitória do transporte individual, ao fracasso do colectivo.

Melhor seria aproveitar que o sector está de gatas e reerguê-lo de outra forma. Quem sabe eliminando definitivamente parte da produção e redireccionando recursos humanos e financeiros para produzir outra coisa qualquer, bicicletas por exemplo.

Talvez não. Talvez a economia mundial dependa mesmo da indústria automóvel. Neste caso, estamos feitos.

Ricardo Garcia

(“Nós no Mundo”, PÚBLICA, 23/11/2008)

Uma, duas, três pegadas ecológicas

Há duas semanas, ficámos a conhecer o cálculo mais recente da pegada ecológica de Portugal. Se a população mundial tivesse o padrão de vida dos portugueses, seriam necessários 2,1 planetas Terra para suprir as necessidades de todos. Na demografia, o número 2,1 tem um significado mágico: é a média necessária de filhos por mulher para que a população se mantenha estável. Mas para a pegada ecológica, a mesma cifra representa a instabilidade total – se não agora, com certeza num futuro próximo.

O conceito da pegada pode ser cientificamente controverso, como muitos dizem. Mas é indubitável o seu poder de comunicação, para não dizer de persuasão. Qualquer pessoa consciente ficará preocupada ao saber que o seu modo de viver implica tomar emprestado recursos naturais que não será possível pagar no futuro. Os banqueiros, aliás, já tiveram a infeliz oportunidade de aprender que isto não se faz. Eles erraram, mergulharam o mundo numa profunda crise financeira, mas todos nós é que ficámos de castigo. Numa possível crise ecológica global, vai acontecer o mesmo.

Inquieto, resolvi calcular a minha própria pegada ecológica. Há vários sítios na Internet para isso. Fui ao Earthday Network Footprint Calculator (www.earthday.net/footprint/index.html) e segui as instruções, respondendo a um questionário detalhado sobre o meu dia-a-dia. Eu já esperava um desfecho negativo. Foi liminarmente desastroso: cinco planetas Terra para sustentar o meu modo de vida. As contas, porém, foram feitas assumindo que eu vivo nos Estados Unidos – onde, com ou sem Obama, consomem-se recursos como pipocas. Se eu morasse na Austrália, com os mesmos dados teria às costas 2,7 planetas.

Encontrei um sítio que permite o cálculo adaptado a Portugal (www.myfootprint.org). Resultado final: 2,3 planetas. Vou tomar este número como o definitivo. Está acima da média nacional, e sei que as viagens de avião são parte importante da desgraça. Mas não estou mal nos ítens habitação e serviços.

Já tinha feito o mesmo teste antes, mas guardara o resultado na gaveta. Agora fica mais difícil ignorá-lo.

Ricardo Garcia

(“Nós no Mundo”, PÚBLICA, 16/11/2008)

Façam o favor de não matar a ideia

Parece que a discussão entre cientistas está mais acesa do que nunca sobre se o problema das alterações climáticas existe mesmo ou se é uma miragem. O debate já não é propriamente novo. Dos críticos, vai-se ouvindo que o Painel de Alterações Climáticas da ONU “decretou” o combate contra as emissões dos gases com efeito de estufa com base não em relatórios científicos, mas em documentos-síntese para decisores políticos e expurgados do rigor que se deve ter para analisar estas questões. Outra crítica é que se trata de uma ideia que, no final, aproveitará ao lobby do nuclear, e que é este que a tem fomentado.

É mentira? É verdade? Que interessa? Senhores cientistas, procurem a verdade, mas não dêem cabo da melhor ideia política das últimas décadas. Já viram a mobilização global que causou?

Mobilizou os políticos, acusados de falta de ideias, obrigou os governos a pensarem políticas públicas de energia e a terem iniciativas políticas coerentes, obrigou o próprio sector da energia a sair do seu entorpecimento tecnológico de décadas, impulsionou as renováveis, criou uma fileira de novos négócios como nunca acontecera e está a contribuir para um novo fôlego de consciência ambiental. Isto tudo está muito para lá do protocolo de Quioto e do mercado de emissões, as duas dimensões mais visíveis da luta contra as alterações climáticas.

No final, todos ganhamos, uns mais do que outros, é certo. Podemos questionar se o comércio de emissões de CO2 está a ter um efeito de controlo ou de estímulo ao consumo energético. Podemos também questionar se este não se tornou um nicho de mercado fabuloso para a promoção de consultores e ex-políticos. Quanto ao nuclear, as energias renováveis suas concorrentes têm mostrado que conseguem responder ao desafio.

Por isso, senhores cientistas, se provarem que o dióxido de carbono e os seus primos com efeito de estufa são inofensivos, reponham a verdade científca, mas façam o favor de não matar a ideia.

Lurdes Ferreira