Orfeu salva Théo

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Há em “Théo et Hugo dans le même bateau“, de Olivier Ducastel e Jacques Martineau (17 Setembro, 22h; 18 Setembro 17h15, Cinema São Jorge, QueerLisboa20) um número suficiente de boas ideias nas quais mergulhar para que possamos esquecemos as pequenas fragilidades do filme protagonizado por Geoffrey Couët e François Nambot. Como dizia Cocteau no início de “La belle et la bête”, tudo o que se pede é um pouco de inocência.

Desde logo, a temporalidade : de um filme – que como “Cléo de 5 a 7”, de Agnes Varda, onde os resultados de exames médicos determinam o tempo de um filme – da noite, também ela transformada em personagem, do tratamento (28 dias) e como fazer ecoar a temporalidade de uma vida, da criação de um tempo-presente no interior de uma vida que deverá aprender a inventar um futuro-presente (viver contra e não com o vírus, diz Hugo).

A primeira sequência permite-nos ver o conjunto de todas estas temporalidade num relógio que enche o ecrã e que marca o início da descida aos infernos (e começamos a ler no filme um diálogo intenso com o mito de Orfeu que, no fim, se mostrará sem pudor e de forma mais clara).

A imagem do homem mais velho que, logo no início, nos guia como se passasse o testemunho a uma nova geração capaz de cometer os mesmos erros, transporta-nos às caves que faziam parte do imaginário parisiense dos anos 1980, no início da descoberta de que havia um vírus que parecia ser só para os homossexuais. Mas, mais importante do que o relógio (e de forma mais evidente todo esse longo plano-sequência na cave do L’Esclave) é como se o filme se permitisse a dialogar com um tempo social e a ficcionar uma genealogia e uma dramaturgia que, estando sempre fora de campo, nos permite ler o filme com outro contexto. E é como se fossemos ouvir a voz de Hervé Guibert a ler o que pensa Théo por entre os olhares cruzados, as mãos que procuram um corpo e a respiração forte que substitui os diálogos. Portanto, “L’Homme Blessé” (Patrice Chéreau, 1983, com Guibert precisamente), “Les Nuits Fauves” (Cyril Collard, 1992) ou “Les Larmes du Sida” (Paul Vechialli, 1997), são referências inevitáveis. Esse homem é como um anjo negro que vigia e antecipa o que se irá passar. Ele já o viveu, imaginamos. E há uma cumplicidade tal com o espectador que temos a impressão que nos transfere o papel de coro mudo.

É por isso interessante que no momento em que Théo (Eros) e Hugo (Thanatos) se apaixonam possamos compreender a dimensão trágica do encontro incapaz de se impor ao lirismo visual e fascinante que evoca o longo corredor com braços a fazerem as vezes de candeeiros de velas (os braços, os braços e a busca de luz para perceber de que corpo se trata) por onde Belle chega à sala de jantar da Bête.

Iremos, mais tarde, ver o reverso dessa sequência arrepiante (o verdadeiro “L’Envers de l’histoire contemporaine” de Balzac, que será citado mais tarde por Hugo) no momento em que os mesmos corpos em negro e vermelho regressam para aterrorizar Théo, agora já não os sexos mas os rostos que observam o abismo para o qual se atraem – e mais tarde, em rima interna, outros se apresentarão anónimos, no hospital, marcados pelo medo. Uma imagem fantasmagórica, espectral onde a inocência se reforça como o motor para a mudança.

E como é interessante que seja Théo, o de Paris, a fazer de inocente e a continuar deslumbrado por tudo o que o rodeia e sobretudo pelo outro, o que veio da província. Aliás, de Besançon, como Jean-Luc Lagarce – e como não ler nos sonhos de Hugo, nessa luta contra e não com o vírus, a resposta negativa à resignação de Louis, 34 anos, o protagonista de “Juste la fin du monde”, chegado para anunciar a sua doença à família mas obrigado a ser a pedra basilar que segura todas as outras ?

Iremos aprender ao longo de todo o filme como a narrativa é pontuada por momentos de confrontação metafórica. O papel das personagens secundárias que o casal encontra ao longo da noite, por exemplo, funciona como visitas – espectrais e ao mesmo tempo luminosas – de um quotidiano a reconstruir. Seres solitários, figuras que saem da sombra, quase bizarras, seres que existem apenas para os confrontar, os alertar, os fazer sonhar.

O velho no hospital – a imagem da morte, que lhes fala de interdições (utilizar o telemóvel) mas sobretudo para os avisar das consequências para os que ousam não respeitar as regras (não usar preservativo numa relação sexual) ; o sírio que lhes vende um kebab e lhes fala de medo, ensinando-lhes que viver com medo não é viver, é sobreviver. O exemplo é o da guerra mas o efeito que produz é outro, sobretudo quando o diz quando ainda já é quase dia mas ainda é noite, no momento em que tudo é possível, e o quão é preciso ousar sonhar – e por isso a fuga, para poder viver; e por fim a mulher no metro, o primeiro da manhã, o de todas as oportunidades, que lhes fala de futuro, de como se constrói com as surpresas do que vi surgindo, e da possibilidade de se sonhar sempre, se se estiver apaixonado, como é evidente, diz ela, que os dois estão.

É aí que quando cumpridos os papéis destas criaturas da noite que os guiaram, eles ficam de novo sozinhos, deixados para que possam escolher, que o filme se torna efetivamente poético quase hipnótico. Vai ser preciso subir até ao sexto andar do prédio de Théo, entrar num antigo quarto de criada e, com a vista sobre Paris, os dois rapazes se tornem protagonistas de uma cidade e não, precisamente e como até então, apenas testemunhas.

Ao vermos como estes dois rapazes que esperam que a manhã de segunda-feira chegue para o teste de despistagem, se dedicam a um jogo de advinhas lembramo-nos de Federico Garcia Lorca e do seu “Quando passarem cinco anos”. Escreveu Lorca : “Se eu fosse… Se eu fosse…” E dizem os rapazes : “E depois ? E depois ?. Depois dessa noite, passados vinte e oito dias, após 3 meses, e quando tiverem passado 20 anos, será o fim? Será o fim. Mas entretanto, como dizia Lorca, “procurei longamente por todos os espelhos da casa o caminho que me conduzisse a esse jardim maravilhoso e no fim, como por coincidência, encontrei-o”.

Eis Théo nos braços de Hugo, como os rapazes em Peixe Lua, de José Álvaro de Morais (2000), precisamente o filme onde esta mesma peça de Lorca irrompe, e os dois rapazes se perguntam como será e o que um fará pelo outro “até ao fim do mundo”.

É, e finalmente, um filme que para responder a um futuro incerto, faz ecoar Orfeu. Hugo, de olhos abertos, pede a Théo para não se voltar, que desaparecerá se o amante ousar voltar-se. E pede-lhe que avance de olhos fechados. Théo, quando dentro dele, já lhe havia perguntado se ele nunca abria os olhos quando fazia amor. E, aquele que apareceu como o que o fez descer ao inferno, será aquele que o pode salvar. É um final comovente.

 

 

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