texto lido na apresentação do livro Uma coisa concreta – Companhia Paulo Ribeiro, Teatro Viriato, 11 Dezembro 2015
Escreve-se um livro para se contar uma história. Ou escreve-se um livro porque há uma história por fazer. A história que me pediram para colocar num livro já tinha sido feita, não existia, era um passado cheio de imagens cheias de ideias cheias de metáforas. A história que me pediam para contar não era a minha porque não era só minha, foi história a que fui assistindo, foi história que fui escrevendo para fazer a história que agora me pediram para contar.
20 anos, 18 coreografias, uma assinatura, agora em livro. Uma coisa concreta, portanto, sobre algo que já passou, que nem existe senão no apelo à memória, colada às fronteiras fluidas dessa memória.
Aos 20 anos, a Companhia Paulo Ribeiro deixa-se ler a partir de pontos muito concretos: a tradução, nos corpos dos bailarinos, da linguagem e do olhar do seu coreógrafo, num texto assinado por Maria de Assis e Paula Varanda, O fruto imprevisto; sobre como uma companhias ajudou a escrever páginas da história da dança contemporânea portuguesa a partir da criação do seu próprio contexto, em tudo paradoxal ao que ia dançando, em Comecemos esta história de frente para trás, um ensaio de Luísa Roubaud; sobre como a dança foi dialogando com a literatura e o cinema e, a partir desse encontro foi propondo diferentes modos de escrita, onde convivem tempos e imagens como se se tratassem de uma única boneca russa, conta-nos Isabel Lucas em Escrever Dançando; e por fim, a dança que foi ficando naquilo que sobre ela se foi escrevendo ao longo dos anos, criando rimas internas, muitas vezes uma surpresa para o próprio coreógrafo, escreve Mónica Guerreiro em Notas de Rodapé.
Uma Coisa Concreta não é, por isso, um livro de história sobre a Companhia Paulo Ribeiro, nem o elogio aos seus 20 anos. Isso faz-se nos convites que a companhia vai recebendo para se apresentar, nos aplausos que o público lhes oferece, na entrega a que os bailarinos se dedicam, no entusiasmo com que Paulo Ribeiro se lança para cada nova criação. Uma Coisa Concreta é um livro que propõe olhares sobre a Companhia, sobre o que sobre ela fica depois de tantos anos num país de memória rápida onde a dança foi a primeira das artes a se tornar contemporânea e a marcar a viragem de uma identidade para lá destas fronteiras.
É um livro que propõe que a história deixe de ser oficial e passe a ser aquilo que é, um acumulado de pontos de vistas, de interrogações, de dúvidas, de surpresas. Que seja, afinal, mais sobre aquilo que não foi ficando do que aquilo em que se tornou. A história não tem nada de concreto senão quando sobre ela se escreve e a dança, a mais efémera das artes, vive esse paradoxo de modo tão intenso que é contrária à própria ideia de fixação da história.
O movimento já passou, não ecoa como a palavra, não rima como a música, não nos fixa como a pintura. O movimento acaba no exacto momento em que começa, ele próprio aproximação possível à ideia que o coreógrafo teve dele. A dança da Companhia Paulo Ribeiro, feita da procura de um centro, do confronto entre o colectivo e a sobrevivência do individual, da vontade de explosão, do desejo de criar um modo de falar sobre o que lhe é próximo, da pele, singular, aparentemente intransmissível, é uma dança que foi, ao longo de vinte anos, revolvendo dentro do seu próprio discurso, dentro do seu próprio tempo, criando possibilidades e coerências que não se encontram de forma tão evidente em outros coreógrafos nacionais.
Ou talvez sim, mas a grande singularidade da dança contemporânea portuguesa, 25 anos depois de ter sido oficialmente reconhecida, continua a ser o modo como discretamente se vai furtando às famílias, às grandes linhas, até, por vezes, aos grandes encontros com a sua própria história. Que história seria a da Companhia Paulo Ribeiro se não tivesse havido Viseu, exemplo praticamente único de uma ideia de descentralização, quando a palavra ainda significava alguma coisa. Mas que história seria a da Companhia Paulo Ribeiro se, ao lado de Viseu, em cada capital de distrito, tivesse havido um teatro a acolher uma companhia de dança, fazendo da descentralização um palavrão, precisamente porque recusava um centro e abraçava a ideia de construção de novos centros?
Que história seria a da Companhia Paulo Ribeiro se em vez de Bruxelas tivesse havido o Brasil e em vez de Paris tivesse havido Moçambique e se em vez de em Bagnolet o primeiro prémio tivesse sido dado em Tunis? Afinal, que história seria contada se a dança contemporânea, antes mesmo de ser portuguesa, já se estivesse a fazer, a dizer-se, europeia? Que história seria, afinal, a da Companhia Paulo Ribeiro se, em vez de peças para seis bailarinos, sempre a mudar, pudessem as peças ser para mais uma meia dúzia, em salas com aquecimento, em balneários com água quente, em teatros com equipamento e meios humanos, e capacidade de investimento e programas traduzidos nas línguas dos programadores que demoraram sempre a encontrar as auto-estradas que a Europa foi pagando mas nunca pareceram chegar até aqui?
Afinal, que história poderia ser a história da Companhia Paulo Ribeiro se tivesse esta companhia escolhido outro lado – outro lado da força, talvez, mais sombrio – do que este que, 20 anos depois, parece permitir que uma só história possa ser contada de diferentes formas?
Na história da dança contemporânea portuguesa, dizia, há poucos exemplos como a Companhia Paulo Ribeiro porque, de facto, é uma surpresa falar-se de um horizonte de vinte anos quando nunca chegou para pagar aos bailarinos para se fixarem em Viseu, quando nunca houve teatros a saber como poderiam programar, porque nunca houve um programa de protecção social para os artistas, porque a cultura foi sempre mais a ideia de uma flor do que a própria imagem do que poderia ficar bem numa lapela. E se, afinal, a história só pudesse existir porque nunca se acreditou que pudesse haver uma página a seguir?
Vinte anos de um movimento à procura de uma identidade, criado no interior de corpos que quiseram ser mais do que a metáfora feita de um país em permanente questionamento. Dança dura, bruta, mais do que nervosa, miúda, como era a do coreógrafo no início. Uma dança bulímica que foi deixando de se parecer com qualquer outra coisa para passar a ser, a cada coreografia, um novo capítulo de um mesmo movimento.
Uma dança que entra por Portugal adentro, que quer saber como o dançar, como agarrar o que já se estava a perder no momento em que o país começou a querer parecer-se antes de ser. E, por isso, uma dança que foi sempre perguntando como podia fixar alguma coisa: a memória, as paisagens, os sons, as frases deixadas pelos poetas, os restos das imagens deixadas pelos filmes, a estupefacção pelo que se ia lendo nos jornais e vendo pela televisão, como se a ficção tivesse deixado os palcos e passasse para outros teatros, esses sim, de guerra. Vinte anos à procura de uma música, de uma luz, de um enquandramento, de um figurino, de algo que pudesse dizer como contar uma história perdida na distância entre o que estávamos a ver e o que depois tínhamos dificuldade em relatar.
De que foram sendo feitas as coreografias da Companhia Paulo Ribeiro por entre os “jogos de sedução e manipulação de homens e mulheres”, como perguntam Maria de Assis e Paula Varanda, num “meio tendencialmente conservador”, onde o “fomentar de energias entre a contemporaneidade e tradições pode contribuir para fundear o projecto no território”, como reflecte Luísa Roubaud a partir das marcas que foi deixando nesta região? Que dança é esta quando lhe é acrescentada a oralidade, pergunta Isabel Lucas? Que palco foi este, desenhado ao longo de vinte anos, quase sempre feito de “dramaturgias do quotidiano, em enunciados plásticos e musicais rico em matizes”, como identifica Mónica Guerreiro
O que este livro mostra são, então, hipóteses de união de todos esses fios soltos, feitos ao sabor das possibilidades, seguindo as intuições reconhecidas, forçando o que ia resistindo, mostrando como abrir um espaço dentro de um tempo que era a marca que o movimento ia inscrevendo. O que este livro mostra, afinal, são recusas de uma ideia de história oficial, recusas de um olhar único, recusas de uma lógica consequente, recusas de consensos, de entendimento, de explicações, de interpretações. Recusas tal como as dezoito coreografias mostraram sempre muito mais o que foi ficando de fora para deixar que nos maravilhássemos com o que não sabíamos dizer sobre o que ia cabendo dentro de cada coreografia.
Foram vinte anos à procura de uma identidade: para um corpo, um discurso, um colectivo, um país, uma disciplina. Vinte anos à procura de modos de contar uma história. Vinte anos, afinal, que ajudaram a escrever a história da dança em Portugal, inscrevendo-a de forma discreta na grande história da dança europeia, das novas danças europeias, onde a portuguesa não sendo parente pobre foi sempre o tio bizarro que nunca se soube bem onde sentar à mesa mas para o qual todos paravam para ouvir contar as histórias. Histórias que nunca se escreveram. Nunca houve tempo.
Paulo Ribeiro nunca escreveu nada. Foi a primeira coisa que me disse quando lhe pedi todo o seu arquivo. Eu não tenho nada, nunca escrevi nada. Havia que inventar, como ele foi inventando a partir do que lhe ia sendo mostrado, Vinte anos de intuições e chegamos aqui, a dezoito coreografias que rimam sem que alguma vez tenham sido pensada como parte de um mesmo poema. É este o livro. Uma coisa concreta.
Uma coisa concreta
Coordenação Tiago Bartolomeu Costa Textos Isabel Lucas Luísa Roubaud, Maria de Assis, Mónica Guerreiro, Paula Varanda Design Raquel Balsa Edição Companhia Paulo Ribeiro